0318/2025 - Re-signification of the ICU as a place of technological innovation and intersubjective recognition in the Covid-19 pandemic
Ressignificação da UTI como local de inovação tecnológica e de reconhecimento intersubjetivo na pandemia de Covid-19
Author:
• Francisco Rosemiro Guimarães Ximenes Neto - Ximenes Neto, FRG - <rosemironeto@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7905-9990
Co-author(s):
• Maria Cecilia de Souza Minayo - Minayo, MCS - <maria.cecilia.minayo@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6187-9301
Abstract:
This opinion piece proposes a critical reflection on the need to redefine care pathways and establish a new praxis in Intensive Care Units (ICU), based on the concept of affect and from the intersubjective perspective of the hospitalized patient. The COVID-19 pandemic has driven a process of productive restructuring in ICU, with advances in technological resources - such as respirators and care protocols, and transformations in professional practices. At the same time, a revaluation of the subjective dimensions of care has emerged, highlighting the relationship of affecting and being affected among professionals, clients, and family members. The health crisis has highlighted the strategic role of ICU in coordinating severe and critical cases and the need to incorporate affect and intersubjectivity as fundamental dimensions of clinical management, demanding a practice with greater cognitive, technical, and ethical depth.Keywords:
Intensive Care Unit. Critical Care. Affection. Covid-19.Content:
Re-signification of the ICU as a place of technological innovation and intersubjective recognition in the Covid-19 pandemic
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Ressignificação da UTI como local de inovação tecnológica e de reconhecimento intersubjetivo na pandemia de Covid-19
Abstract(resumo):
Este artigo de opinião propõe uma reflexão crítica sobre a necessidade de ressignificar as linhas de cuidado e instituir uma nova práxis nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), com base no conceito de afeto e a partir da perspectiva intersubjetiva da pessoa internada. A pandemia de Covid-19 impulsionou um processo de reestruturação produtiva nas UTI, com avanços no arsenal tecnológico - como respiradores e protocolos assistenciais, e transformações nas práticas profissionais. Paralelamente, emergiu uma revalorização das dimensões subjetivas do cuidado, destacando a relação de afetar e ser afetado entre profissionais, clientela e familiares. A crise sanitária evidenciou o papel estratégico das UTI na coordenação dos casos graves e críticos e a necessidade de incorporar o afeto e a intersubjetividade como dimensões fundamentais no manejo clínico, exigindo uma prática com maior densidade cognitiva, técnica e ética.Keywords(palavra-chave):
Unidade de Terapia Intensiva. Cuidado Crítico. Afeto. Covid-19.Content(conteúdo):
IntroduçãoA pandemia de Covid-19 impôs profundas reconfigurações nos modos de cuidar em saúde, especialmente em espaços marcados por alta densidade tecnológica, como as Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Esses serviços e suas equipes enfrentaram desafios significativos que demandaram transformações rápidas e abrangentes nas linhas de cuidado e nas práticas profissionais. Nesse cenário de crise sanitária global, atravessado por incertezas, escassez de recursos e sofrimento coletivo, emergiram inovações que desafiaram a lógica puramente tecnicista do cuidado intensivo.
A reestruturação das UTI durante a pandemia envolveu não apenas avanços tecnológicos, como a introdução de dispositivos de ventilação de alto fluxo e o uso ampliado do Continuous Positive Airway Pressure (CPAP), mas também a reformulação de protocolos clínicos e assistenciais. Tais mudanças evidenciaram a urgência de integrar à assistência dimensões frequentemente relegadas: a subjetividade, a comunicação sensível e a humanização do cuidado. A interação entre profissionais e a clientela usuária, muitas vezes mediada por barreiras tecnológicas e simbólicas, revelou a centralidade do afeto como elemento estruturante de uma práxis que ultrapassa o domínio técnico, promovendo vínculos e reconhecendo a alteridade no contexto do sofrimento agudo.
Neste artigo de opinião, propõe-se uma reflexão crítica sobre como a pandemia ressignificou as UTI não apenas como espaços de inovação tecnológica, mas também como lugares de reconhecimento intersubjetivo e de reinvenção do cuidado. Fundamentado em referenciais das Ciências Sociais e Humanas em Saúde e no conceito de afeto, o texto busca responder: De que forma as experiências vividas nas UTI durante a pandemia mobilizaram transformações nas práticas clínicas, na subjetividade dos profissionais e nas relações entre tecnologia e cuidado? Ao articular os domínios da Saúde Coletiva, da Filosofia do cuidado e da práxis crítica, pretende-se contribuir para o fortalecimento de abordagens que aliem densidade tecnológica, efetividade e sensibilidade ética no que se convencionou chamar de cuidado integral.
A UTI no contexto da pandemia: entre técnica e subjetividade
Há mais de quatro décadas, a Atenção Primária à Saúde (APS), a exemplo do que foi proposto na Declaração de Alma Ata (1978), tem sido responsável por desenvolver, adaptar e disseminar tecnologias e importantes lições para a garantia do acesso, sobretudo em territórios mais vulneráveis (periferias de grandes centros urbanos, rurais e remotas, entre outras) a saúde de qualidade às famílias e comunidades, em diferentes situações de risco e vulnerabilidade, condições e estágios de vida.
Nas últimas décadas, a APS assumiu papel estratégico, com a pretensão de ser coordenadora do cuidado e ordenadora da Rede de Atenção à Saúde (RAS), com pontos de atendimento que garantissem o primeiro contato entre a clientela e a equipe, para a construção de vínculos efetivos, afetivos, interpessoais e intersubjetivos, visando à promoção da equidade e garantia do direito universal à saúde, a exemplo da proposta do Sistema Único de Saúde (SUS)1-3.
Com o avanço da pandemia da Covid-19, em locais em que a APS se apresentava forte, observou-se seu protagonismo na busca ativa, identificação e acompanhamento dos doentes sintomáticos respiratórios, com uma notificação hábil, monitoramento e manejo clínico dos casos leves e moderados, no próprio território sanitário, contribuindo com a redução de danos e o agravamento do quadro clínico4.
Já nos locais onde a APS estava fragilizada ou por conta da evolução natural da Covid-19, a necessidade de encaminhamento dos casos graves para níveis mais complexos de atenção ocorreu de modo intenso. Isso provocou a superutilização dos serviços de saúde e da capacidade de atendimento, levando a uma sobrecarga, tanto nos hospitais de pequeno porte, quanto nos de referência regional, como os de alta complexidade e seus leitos de UTI. Esses últimos, organizados para atender a demanda da Covid-19, já existiam, implantados ou contratados de modo emergencial com base em planos de contingência, para realizar cuidados clínicos especializados, com maior suporte profissional e tecnológico aos casos graves ou críticos, sobretudo, atendendo à necessidade de respiradores.
As UTI acabaram por cartografar uma rede rizomática com base local, regional, estadual ou mesmo nacional, para acolher a clientela em estado grave ou crítico, encaminhada/autorizada por meio dos complexos reguladores ou por demanda espontânea. Nos casos extremos em que a regulação não autorizava vagas, e que o risco de óbito era iminente ou a capacidade instalada local não dava conta da demanda de oxigenoterapia, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) era acionado, num sistema de “vaga zero”.
Embora a maioria dos infectados pelo SARS-CoV-2 (novo coronavírus/COVID-19) não necessitasse de hospitalização, no início da pandemia, estimava-se que 5% dos casos poderiam exigir cuidados especializados em UTI, e 2,3% necessitariam de ventilação mecânica5-6. A demanda por UTI foi inicialmente observada em um estudo descritivo realizado com os 99 primeiros casos registrados em Wuhan, na China, no qual 23% das pessoas precisaram de cuidados intensivos e 4% de ventilação mecânica invasiva7.
No Brasil, uma das primeiras ações foi estimar o número de leitos de UTI necessários para atender a casos graves de Covid-19, levando em conta a evolução temporal da epidemia8. Essa estimativa se tornou uma das principais preocupações dos entes federados, especialmente nos níveis municipal e estadual, resultando na criação de uma "fila única" para leitos, tanto públicos quanto privados, coordenada pelos gestores do SUS. Essa medida visou a otimizar o uso dos leitos e ventiladores pulmonares, além de assegurar a disponibilidade de equipamentos, insumos estratégicos, medicações de alto custo e profissionais capacitados para o manejo clínico dos casos9-10. A centralização da decisão sobre a alocação de leitos de UTI emergiu como uma solução logística eficaz11, cumprindo o objetivo de otimizar e racionalizar os recursos disponíveis (Figura 1).
Fig. 1
O afeto como categoria de cuidado crítico
Com o avanço da Covid-19, as UTI, que sempre foram centros ultra especializados, passaram a assumir papel semelhante ao da APS, na coordenação do cuidado e na ordenação da RAS, devido à grande demanda por leitos e à necessidade de acesso a respiradores, com elevado fluxo de oxigênio, ou mesmo de intubação, além de uma assistência intensiva efetiva, eficaz e eficiente. Para tanto, foram necessários arranjos organizacionais, gerenciais e assistenciais, com o intento de ressignificar os fluxos e o perfil dessas unidades terapêuticas.
Os arranjos assistenciais das UTI têm contribuído para a adoção de uma nova prática, que incorpora elementos semelhantes aos princípios da APS, conforme definidos por Bárbara Starfield12. Esses princípios exigiram que os profissionais e as equipes de intensivistas se aproximassem mais dos doentes e de suas famílias, estabelecendo vínculos mais ou menos duradouros por causa da longitudinalidade do cuidado, especialmente em casos graves, críticos e intubações.
Do ponto de vista técnico, a coordenação do cuidado, que envolve a gestão do caso e da clínica, aliada a integralidade da atenção focada nas necessidades de cada cliente internado são essenciais. Além disso, é necessário o desenvolvimento de uma rede assistencial interna de apoio e uma abordagem holística e empática. Novas formas de interação, como o uso de mídias digitais para realizar chamadas de vídeo via WhatsApp®, também foram implementadas para fortalecer o vínculo com as famílias. Durante a pandemia de Covid-19, a mudança no modelo de abordagem e focalização na família12 durante o transcurso terapêutico de seu ente querido por meio da tecnologia de comunicação, se deve ao fato de as visitas terem sido proibidas nos hospitais, para se evitar o risco de contágio.
O que já era condição sine qua non do processo produtivo do trabalho em equipe nas UTI, passou a ser instituinte ou mesmo instituído, intenso e com significativa produção de sentidos, agregando novas tecnologias e maior responsabilização sanitária. Esse novo modo criativo gerado pela necessidade, criou entornos de cuidados que irmanaram clínica individual de cada caso e trabalho interprofissional.
As UTI, no ordenamento dos pontos de atenção da RAS, deslocaram-se de seu papel tradicional para se tornarem verdadeiros "úteros" assistenciais. Esses espaços passaram a gestar cuidados próprios, acolhendo casos graves ou críticos de Covid-19, oferecendo manejo clínico e humano, além de apoio às famílias. Nesse contexto, as UTI se desconstruíram como ambientes marcados por uma rígida divisão social, técnica, política e sexual do trabalho, anteriormente voltados à reprodução de racionalidades em saúde por meio de seus arsenais assistenciais, tecnológicos e farmacológicos. Na pandemia, tiveram que assumir um modelo interprofissional e intersubjetivo no núcleo hospitalar, onde não apenas vidas foram salvas, mas também “geradas”, por meio de processos de trabalho ressignificados.
Durante a pandemia de Covid-19, as UTI se reinventaram, tornando-se espaços centrais do contexto hospitalar. Mais do que apenas salvar vidas ou lidar com perdas, essas unidades marcaram o início de uma nova era de cuidados subjetivos e afetivos, transformando as práticas assistenciais e criando um modelo adaptado aos desafios contextuais. Tradicionalmente consideradas como "lócus de luto", onde os dramas humanos se intensificam, – um limiar entre a vida e a morte, entre a dor e a possibilidade de renascimento – as UTI transcenderam seu papel histórico, passando a simbolizar também o renascimento e a recuperação de vidas em um mundo pós-pandêmico.
É importante lembrar que nas UTI, os corpos "com"13 ou "sem órgãos"13 carreiam em si a subjetividade e a doença do "devir a ser". Os desejos são pulsantes, as vontades arrebatadoras, a historicidade em si, em sua mais completa simbologia de afetos, conexões, potencialidades, sensações, são intensos. Vale a pena ouvir alguns filósofos sobre o tema. O afeto (affectus ou adfectus), termo utilizado por autores como Baruch ou Benedictus Spinoza, em seus livros II e III da Ética, tem dois significados: affectio - afecção - e affectus – afeto14, o que envolve sentimentos, relações ou mesmo um estado de espírito ou da alma (alegria ou tristeza; prazer ou dor) e une corpo e mente.
A ideia de afeto em Deleuze14 vem de Espinosa que o define como a "variação contínua da força de existir ou da potência de agir"14 (p. 42). Os dois afetos fundamentais, segundo Spinoza, são a alegria e a tristeza, sendo que o primeiro aumenta a potência de agir e o segundo a diminui. Para Deleuze14 quando “a potência de agir aumenta ou diminui, o afeto correspondente é sempre uma paixão. Quer seja uma alegria que aumenta a potência de agir ou uma tristeza que a diminui são paixões alegres ou paixões tristes” (p. 56).
Boff15 lembra que, pelo fato de o ser humano ser composto de “corpo e alma”, ele possui um “corpo espiritualizado”, que ao formar o cérebro límbico desenvolve a “afetividade, amor e cuidado”16 (p. 47), paixões e emoções.
As equipes das UTI na pandemia foram afetadas simultaneamente ao afetarem cada pessoa internada, durante o processo de cuidado e ao se colocarem diante de um cenário em que salvar o maior número de vidas com os parcos recursos era o mais importante. Muitos profissionais da saúde abdicaram de suas rotinas pessoais como o convívio social e familiar, esporte, lazer, entre outros, sacrificando suas necessidades humanas básicas, como sono, repouso e conforto, mesmo diante da exaustão. Alguns comprometeram sua saúde mental.
O altruísmo dos profissionais de saúde de optar por cuidar dos doentes, buscando "não deixar ninguém para trás", ficando distante do convívio de pais, filhos, esposa, esposo, companheiros e amigos, foi uma realidade mundial constatada e comprovada. A abnegação era para cuidar dos “afetados pela Covid-19, enfraquecidos e mal podendo respirar, estar junto deles e dar-lhes coragem e vontade de superação”17 (p. 90).
A maioria desses profissionais passou a utilizar todo o seu arsenal afetivo e tecnológico, da clínica, da epidemiologia e da intersubjetividade para resistir e superar o desgaste da sobrecarga de trabalho, da exposição a riscos, agravos e doenças, mesmo com medo e muito sofrimento mental. Passaram também a utilizar como estratégia de potencialização da espiritualidade, os signos da fé e da esperança, para recuperação e reabilitação dos internados graves e para manterem-se firmes diante das adversidades diárias e da exaustão.
Com a vivência diária pandêmica, os afetos retomaram um lugar central nos cuidados, após décadas em que muitos modelos assistenciais reforçaram o especialismo, com foco no mecanicismo, biologicismo e individualismo, tendo a cura do cliente projetada na insignificância nos números das placas dos leitos, dos serviços de enfermaria e prontuários. sem incluir o cliente como sujeito de seu próprio processo de bem-estar. Esse é o chamado "hospitalocentrismo" que contribui para a desumanização e o embrutecimento das relações18. Na pandemia, o "Paciente da Enfermaria 7", emoldurado em placas, passou a ter nome, clínica e contato telefônico, para que o médico e os demais profissionais pudessem compartilhar o quadro clínico e o prognóstico com a família.
Esse processo histórico e a ressignificação subjetiva das UTI parecem passar por momentos distintos, conforme a classificação terminológica de Deleuze e Guattari19: territorialidade - a UTI como espaço de produção de práticas; desterritorialidade - deslocamento da identidade do cliente, mudança constante de equipes a cada plantão, a semiótica e suas combinações; e reterritorialidade - reconstrução significativa de um novo escopo de práticas de cuidado de um corpo "com" ou "sem órgãos". O leito se tornou o espaço de construção de conhecimento, de ressignificação de práticas e protocolos e de relações sociais intersubjetivas processo no qual a pandemia teve importante papel.
A UTI passou a ser um espaço de cuidados e de construção intersubjetiva de relações entre cliente-profissional da saúde com sua técnica, seu saber e profissional da saúde-familiares, como nunca foi. Deleuze16 em sua obra a “Crítica e a Clínica” refere que “em cada corpo há uma infinidade de relações que se compõem e se decompõem, de maneira que o corpo, por sua vez, penetra num corpo mais vasto, sob uma nova relação composta ou, ao contrário, põe em evidência os corpos menores sob suas relações componentes” (p. 160). Para Boff17 (p. 84) a antropologia contemporânea propõe uma “concepção de corpo mais complexa e holística” (Figura 2). Pode-se dizer que ninguém adoece do corpo ou cura apenas o corpo, o ser humano é integralmente corpo-alma-ambiente-crenças e afetos.
Fig.2
Como afirma Franco21 "os afetos e interações influenciam cada corpo", gerando conhecimentos. O que o corpo percebe e assimila por meio do encontro sensível com o outro o que transforma em um saber experiencial, por sua vez, traduzido em tecnologias e práticas aplicáveis.
A UTI entre ritos, afetos e afetividade
Embora a UTI seja um espaço dedicado à produção de vidas, frequentemente ela se reveste de um caráter fúnebre ao marcar o fim de histórias humanas. Nesse contexto, os profissionais da saúde iniciam rituais que honram corpos agora sem alma, mas ainda carregados de subjetividade. Gradualmente, a tecnologia avançada e os recursos científicos dão lugar a práticas ancestrais de reverência ao corpo, à memória e aos legados deixados. Esses rituais celebram a historicidade das pessoas, suas relações, afetos e genealogias que se perpetuam por meio das gerações.
Nesse momento, o rito realizado pela equipe não se enquadra em categorias como interprofissional ou interdisciplinar, mas reflete um profundo respeito por mais uma vida que se esvaiu. Ao redor do leito, manifesta-se uma confluência de crenças e rituais, transmitidos ao longo da história por pajés, divindades africanas, tradições cristãs e outras culturas milenares, tanto ocidentais quanto orientais. O cuidado ritualístico com o corpo conecta-se a práticas há muito antigas, remetendo ao tempo em que a humanidade começou a expressar seu senso de civilidade e pertencimento, honrando e cultuando seus mortos.
Na UTI, todo esse cerimonial segue, com as dobraduras retilíneas dos lençóis, com o cuidado subjetivado em cada espaço do corpo, seguindo uma linha tênue, mas diversa do tradicional exame físico semiotécnico (céfalo-podal), ao iniciar com a extremidade podal para o cefálico. O "cefálico" como o ápice da pirâmide ortostática, donatário da sapiência, do conhecimento, do afetuoso, entre linhas e curvas da face (rosto) simbólica e esculpida com a vida, se reveste por último com os lençóis, como o envolver de um sudário. A esfinge se fecha numa grande pirâmide.
O rosto, em sua simbologia, segundo Deleuze e Guattari14 “é uma superfície: traços, linhas [...], é um mapa” (p. 35), que “escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmera, o terceiro olho”14 (p. 32). Para os autores, a cabeça “está compreendida no corpo, mas não no rosto”14 (p. 35). O rosto “só se produz quando a cabeça deixa de fazer parte do corpo, quando para de ser codificada pelo corpo, quando ela mesma para de ter um código corporal polívoco multidimensional – quando o corpo, incluindo a cabeça, se encontra decodificado e deve ser sobrecodificado por algo” denominado de rosto14 (p. 35).
É do rosto “que a voz sai”. O significante se reterritorializa no rosto”20, ele é “sempre rostificado”20 (p. 6). Esse significante em pessoa possui uma substância de expressão particular: a rostidade. Para Boff 18 o “rosto do outro torna impossível a indiferença”, pois ele possui “uma irradiação que ninguém pode subtrair”.
O rito não finda com o fechamento do sudário e o caminhar entre corredores, burocracias, setores e o velar de um luto familiar isolado, sob a égide dos serviços fúnebres. Uma das mais tristes questões da era pandêmica do Sars-CoV-2, foi o fato de as famílias não conseguirem vivenciar adequadamente o processo saúde-doença-cuidado-morte. O luto não se comportava mais em si22, por conta das medidas sanitárias de isolamento. Os afetos, os afagos e o culto coletivo foram postergados e transmutados a uma outra dimensão.
Por isso, mais na pandemia de Covid-19 do que em outro momento qualquer, a perda de um ente querido ultrapassou a frieza dos números estatísticos, sobretudo porque em geral os familiares não puderam vivenciar o luto e despedir-se como gostariam de seus parentes, seres cuja existência carregava profundos significados em suas relações, afetos, paixões, amores, historicidade, identidade genealógica e pertença a uma comunidade.
Da intersubjetividade à inovação: práxis e cuidado integral nas UTI no contexto pandêmico
A pandemia de Covid-19 provocou transformações profundas nas UTI, desafiando os modelos tradicionais de cuidado e exigindo respostas assistenciais inovadoras, sensíveis às múltiplas dimensões do adoecer. Nesse cenário, consolidou-se um legado que transcende os aparatos tecnológicos - como ventiladores de alto fluxo, protocolos clínicos avançados e terapias farmacológicas, e valoriza as microações cotidianas que compõem uma clínica intensiva mais ética, afetiva e intersubjetiva.
Durante esse período, diversas trajetórias assistenciais foram cartografadas, evidenciando a emergência de novas formas de produção subjetiva do cuidado e a centralidade do trabalho vivo em ato. Dentre as transformações observadas, destaca-se a necessidade de reafirmar práticas que articulem ciência, técnica e sensibilidade, rompendo com a lógica puramente tecnicista da assistência intensiva.
Essa inflexão aponta para a consolidação de uma clínica com densidade cognitiva e tecnológica crescente - impulsionada por um arsenal readaptado e inovador, mas, ao mesmo tempo, mais personalizada, relacional e centrada no sujeito. Em um contexto no qual o cenário pandêmico tende à endemização, essas mudanças sinalizam uma nova configuração nos serviços de saúde, em que tecnociência e humanização caminham juntas, conformando um novo paradigma para o cuidado intensivo.
Os limites entre a clínica e a intersubjetividade devem ser compatibilizados com as exigências do complexo produtivo da saúde, que demanda o uso de evidências baseadas na ciência, tecnologia e inovação, além da incorporação de experiências assistenciais robustas - universais ou localizadas, capazes de promover maior segurança ao paciente, qualidade de vida, sobrevida, reabilitação, cuidados paliativos e morte digna.
A subjetividade, os afetos e a afetividade sempre estiveram presentes em toda ação humana. No campo da Medicina, contudo, a pandemia escancarou e tornou inadiável a necessidade de lidar com o novo, o desconhecido e o incômodo gerado pelas mudanças abruptas. Essa conjuntura exigiu a constituição de uma nova práxis do cuidado, ancorada em signos e sentidos que (Figura 3), até então, encontravam-se circunscritos às teorias da Saúde Coletiva, da Enfermagem e da Psicologia, especialmente sob a influência das Ciências Sociais e Humanas.
Fig.3
A pandemia também inaugurou um tempo de aceleração inédita na produção e incorporação de tecnologias - duras, leves-duras e leves23, configurando um ecossistema de inovação que, ao mesmo tempo, reatualizou o valor das práticas relacionais e ritualísticas do cuidado. Como lembra Boff17, momentos de crise são férteis para grandes sonhos e utopias. O sofrimento vivido nas UTI durante a pandemia não foi em vão: ele revelou caminhos para transformar esses espaços em territórios de acolhimento, dignidade e reconhecimento mútuo.
As lições emergidas desse período, ao articular inovação técnica e ética relacional, apontam para a construção de um modelo de cuidado intensivo mais integral, plural e humano - uma clínica que reconhece a tecnologia como meio, e não como fim, e que coloca o outro no centro das decisões e dos afetos.
Considerações Finais
A pandemia de Covid-19 ressignificou o cuidado intensivo, revelando que a inovação nas UTI não se limita aos avanços tecnológicos, mas se expressa também nas microações afetivas, na escuta sensível e nas relações intersubjetivas. Esses elementos desafiam o modelo tecnicista tradicional e apontam para uma clínica mais integral, ética e centrada no sujeito.
Essas vivências impõem a necessidade de políticas que valorizem tecnologias leves, humanização do cuidado e formação permanente das equipes. O SUS deve reconhecer as UTI como territórios de produção de sentidos e não apenas de sobrevida.
Embora este texto tenha caráter reflexivo, oferece subsídios para repensar práticas e políticas no campo da saúde intensiva, convidando ao fortalecimento de uma práxis que una ciência, afeto e dignidade.
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