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0283/2025 - Scars: existence inscribed upon the body
Cicatrizes: a existência inscrita no corpo

Author:

• Rubia Carla Formighieri Giordani - Giordani, RCF - <rubiagiordani@gmail.com, rubiagiordani@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5698-7981

Co-author(s):

• Erika Barreto - Barreto, E - <erika.barretomagalhaes@alumni.fhnw.ch>
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-4297-7606
• Maria Cecília de Paula Silva - Silva, MCP - <ceciliadepaula.ufba@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3506-8510
• Maria Isabel Brandão de Souza Mendes - Mendes, MIBS - <isabelbsm1@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9648-0007


Abstract:

Não se aplica.

Keywords:

Não se aplica.

Content:

No ocidente, uma cisão fundamental entre a pessoa e o seu corpo opera a matriz do pensamento hegemônico: o corpo é uma realidade biológica. E, este objeto, ‘naturalizado como natural’, passou a ser fragmentado em partes e sistemas, sendo reorganizado mediante o discurso da Biomedicina 1. Vimos, no transcorrer dos séculos, especialmente a partir do Renascimento no Ocidente, o corpo humano ser progressivamente subsumido pelo campo dos saberes biológicos 2 . Uma visão do corpo como um vivente-máquina passou a se caracterizar como tipicamente uma ocidental 3 para enfim sustentar a evidência do corpo como suporte da doença segundo os cânones da Biomedicina. É nessa seara do debate contemporâneo no campo da Saúde Coletiva que se inscreve a importância da leitura de Cicatrices: l’existence dans la peau. L’essence dans la peau, livro mais recente de David Le Breton, lançado em 2024 pela editora Métailié na França (ainda sem tradução no Brasil).
O corpo é um “sensorium commune” 4 (p. 148) já nos adiantava nos anos 90 o sociólogo ao explorar as potências desse nosso suporte no mundo. David Le Breton, no melhor sentido merleau-pontyano, instrumentaliza suas próprias sensibilidades somáticas e intelectuais transformando-as em puro texto sociológico. Debruça-se na produção de obras em que o corpo protagoniza aventuras no mundo social interessando-se desde o riso, o sorriso, a fala, o caminhar, o andar de bicicleta, a dor, a doença, a estética somente para citar alguns temas explorados. O que assistimos a cada livro que o autor lança, é a força de uma trajetória intelectual que nunca se descuida das sutilezas dessa carne no mundo em que o sentido do (e no) corpo humano assume “um tempo auge de subjetividade e auge de materialidade” 5 (p. 225). Por meio de uma observação fina e de uma reflexão aguçada, o autor nos sensibiliza para uma outra evidência: o corpo é nossa sustentação viva no mundo que se deixa atravessar pela subjetividade mas, simultaneamente, na sua relação originária com o mundo, está continuamente produzindo a subjetividade 6.
A capa do livro Cicatrices: l’existence dans la peau (Cicatrizes: a existência na pele” em português) traz a imagem de um umbigo em close-up — uma ilustração da cicatriz primordial, inevitável do humano. Como elemento simbólico de análise, a cicatriz umbilical representa um emblema paradoxal: ao mesmo tempo em que marca a origem e a pertença, é também um vestígio da separação, do corte inaugural que instaura a individualização. Traços da origem derivada do corte da separação inaugural, o umbigo é um eterno lembrete da conquista da autonomia na medida em que se distancia do útero materno para alcançar seu próprio corpo e se ligar ao universo de significados do grupo.
A pele e suas cicatrizes são o ponto de partida da análise sociológica neste livro. Desenhando a materialidade do sujeito, a pele, invólucro narcísico do corpo (p. 26), traça uma linha divisória entre o ser e o mundo, ao mesmo tempo em que religa o eu psíquico e o eu corporal. Habitada de sentidos, a pele transborda e revela significados pessoais. Ela preserva, como um arquivo vivo, os vestígios da história individual: queimaduras, feridas, marcas de operações e vacinas, fraturas, sinais do envelhecimento, manchas, variações de tonalidade, doenças (p 28). O livro Cicatrices: l’existence dans la peau composto por 11 capítulos, e que podem ser lidos de forma independente, Le Breton desenvolve em perspectiva socioantropológica os significados do órgão humano. A pele como uma vasta tela, uma geografia sensível que incorpora diferentes sensorialidades, tecendo tramas e abrindo dimensões singulares da experiência humana. As marcas na epiderme são analisadas pela sua intencionalidade comunicativa. Elas aparecem ora como construção de identidade, ora como expressão de dor e rebeldia, como marca de resistência e individualidade de corpos encarcerados, como mobilizadora de arte, registro das histórias de vida de refugiados ou contundente símbolo de resiliência e luta diante do câncer.
Com Le Breton, a pele, fronteira entre o mundo e a carne sensível, delineia a materialidade do sujeito configurando-se em envoltório narcisista que impõe um limite entre o ‘eu’ e o ‘outro’ e consolida uma conexão entre o eu psíquico e o eu corporal. Uma fronteira e, como tal, sensível a intrusões, ela reage de maneira marcante. As reflexões de Le Breton reafirmam que, para ser tocada é imprescindível que a pessoa consinta porque a pele incorpora a soberania do sujeito.
Envoltório comunicativo, a pele é prenhe de significados, atravessada por fantasias, espaço de imaginário. Sua experiência é como um campo de batalha permanente entre ‘o eu’, ‘o outro’, o “mundo”. Assim, saturada de inconscientes e de cultura, a pele revela a psiquê do sujeito e sua relação com o mundo social. As cicatrizes são narrativas cutâneas ganhas durante a existência permanecendo como pistas daquilo que existiu pelo combate corpo-a-corpo no mundo, pelo combate com o mundo, transformando-se em um memorial de fraturas, aflições, marcas de violência, ritos; tudo gravado, registrado no tecido da história pessoal e coletiva. Para Le Breton, a pele como um campo semântico abriga, tanto cicatrizes rituais expostas ao mundo, superfície de registro de vínculos sociais, como alberga cicatrizes invisíveis que religam às pessoas as sensibilidades e o corpo de emoções e laços que constituem pertença e diferenciação.
Alguns temas, embora já tenham sido objeto de análise do sociólogo noutros textos, como por exemplo a adolescência, o risco, o sofrimento, neste livro são revisitados com mais camadas de análises. As cicatrizes produzidas pela automutilação, piercings e tatuagens não seriam apenas reminiscências mas formas de se agarrar ao real, provocar a sensação de estar vivo, reforçar a consciência de si. Cicatrizes autoinfligidas como forma de expressão da dor e da angústia adolescente, elas representam uma tentativa de evadir-se de uma existência dolorosa na relação com o corpo e com o entorno, configurando ritos íntimos que buscam uma “maestria de si” e a solução para a “desintegração pessoal” enfrentada na adolescência. As auto-escarificações constituem uma tentativa de regulação emocional que, como hieróglifos gravados na pele, comunicam um pedido de socorro. David Le Breton, neste momento do livro, realiza uma brilhante fusão de duas obras anteriores - La peau et la trace: la blessure de soi 7 e En souffrance 8 - trazendo a cicatriz para o centro de sua análise antropológica sobre a dor e a auto escarificação como construção de sentido para a existência dos jovens.
É esta mesma dor deliberada e consentida, que assume outros sentidos na body art. Neste caso, em alguma medida é a rebelião e subversão de sentidos que está em jogo, pois intenciona-se a crítica pelo corpo das condições de existir. Ao propor a desconstrução de convenções morais, o artista marca uma posição moral e política em que o ferimento é recorrente e transgressivo e ao derramar sangue deixa cicatrizes. A body art é uma rebelião do sentido contra as representações ascéticas do corpo no mundo imagético atual e do mercado. Há ainda a estética da cicatriz, como resistência observada pelo autor particularmente entre jovens comunidades LGBTQIA+, body modification, que busca uma ruptura com os rótulos sociais e a estética dominante. São inscrições cutâneas efetuadas sob uma forma ritual e servem para alcançar uma nova compreensão de si mesmo.
Também encontramos outros temas contemporâneos emergentes de um mundo em ebulição e talvez abordado de forma tangencial na obra de David Le Breton: assim, entra no livro o tema do exílio e as marcas físicas e psicológicas deixadas em corpos refugiados. As cicatrizes são evidências tangíveis do sofrimento e da violência experimentadas durante a fuga e a busca por asilo. Elas servem como provas ou atestado de veracidade do relato do refugiado diante da dificuldade de obtenção de um reconhecimento oficial dessas experiências traumáticas. Mas não há qualquer obviedade quanto às cicatrizes específicas de refugiados: seriam elas marcas de balas, de ferimentos ocorridos durante a fuga ou, talvez, marcas invisíveis de violações? A atenção antropológica ao sofrimento humano, tão presente em seu trabalho, permite uma reflexão valiosa sobre os corpos dos milhares de indivíduos no atual contexto político europeu. Assim como em outros capítulos, este momento do livro reforça a ideia de um “corpo tela”, onde a vida inscreve-se pelas cicatrizes.
O livro segue explorando temas caros à área da Saúde, como as experiências de mulheres que enfrentaram a mastectomia, concentrando-se na reconstrução física e emocional. Le Breton apoia-se em obras de diversos autores, em especial Annick Parent 9 (2006), Ricadat e Taïeb 10 (2009), Mouster 11 (2019) e em suas narrativas sobre a luta pela recuperação da identidade e da feminilidade após uma cirurgia reconstrutora de mama. O autor aborda temas como a relação com a sexualidade, a feminilidade e a busca por aceitação e reconstrução da imagem corporal, explorando o sentido da reconciliação com a própria imagem. A reconstrução física – seja por meio de cirurgia ou tatuagem, vivenciada pelas mulheres submetidas à mastectomia – apresenta-se como um processo de reapropriação do corpo e de cura, embora implique desafios e reflexões complexas sobre a percepção de si.
Envoltório da relação com o mundo, a pele é vulnerável a danos ou doenças que a pontilham de irregularidades mas igualmente produz, recupera, expõe toda a gramática de sentidos da natureza dessa interface crua, literal e simbólica do sujeito com o mundo. Uma compreensão mais sensível do corpo tão necessária no cuidado em saúde em tempos de acentuado neoliberalismo quando somos empresários de nós mesmos.

Cicatrices: l’existence dans la peau
[David Le Breton, 2024, Paris, Métailié]

Referências
1 Luz, M. Natural, racional, social: razão médica e racionalidade científica moderna. SP: Hucitec; 2012.
2 Sarti,C. Sarti C. Corpo e Doença no trânsito de saberes. Rev bras Ci Soc [Internet]. 2010 Oct; 25(74):77–90. Available from: https://doi.org/10.1590/S0102-69092010000300005
3 Canguilheim, G. O normal e o patológico 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2011.
4 Breton, D. Antropologia do corpo. Petrópolis: Vozes; 2016
5 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva; 2000.
6 Giordani RCF. O corpo sentido e os sentidos do corpo anoréxico. Rev Nutr [Internet]. 2009Nov;22(6):809–21. Available from: https://doi.org/10.1590/S1415-52732009000600003

7 Le Breton D. La peau et la trace. Sur les blessures de soi. Paris: Métailié; 2003.

8 Le Breton D. En souffrance. Adolescence et entrée dans la vie. Paris: Métailié; 2007.

9 Parent A. Itinéraire d'une amazone. Cancer du sein, l'intime partagé. Paris: Ellébore; 2009.

10 Ricadat E. et Tateb L. Après le cancer du sein. Une féminité à reconstruire. Paris: Albin Michel; 2009.

11 Mouster G. Tatto thérapie. Quand le tatouage aide à guérir les blessures du corps et du cœur. Lannion: Independently published; 2029.



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