0301/2025 - Specialized Component of Pharmaceutical Care : the state organization and access to medicines
Componente Especializado da Assistência Farmacêutica: a organização estadual e o acesso aos medicamentos
Author:
• Ana Liani Beisl Oliveira - Oliveira, ALB - <analiani18@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6413-5727
Co-author(s):
• Mônica Rodrigues Campos - Campos, MR - <monicarodriguescampos@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7443-5977
• Mareni Rocha Farias - Farias, MR - <marenif@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4319-9318
• Vera Lucia Luiza - Lucia-Luiza, V - <negritudesenior@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6245-7522
Abstract:
This study aimed to characterize the organization of the Specialized Components of Pharmaceutical Services (CEAF) in Brazil and to categorize the different strategies as centralized or decentralized, pointing out the limits, challenges, and potentialities for access to medicines. A retrospective quantitative study of CEAF drug dispensing data in 2023 was carried out in the 26 Brazilian states and the Federal District, with a special focus on drugs recommended for the treatment of rheumatoid arthritis (RA). Data were obtained mainly from the High-Cost Procedure Authorization system, (APAC). A set of indicators has been developed. Data from 210,640 users, residents of 5,086 (91%) Brazilian municipalities were analyzed. Dispensation was carried out in 189 municipalities (3.4%). Approximately half of the users of RA medications in the CEAF are in the southeast, then south and northeast, given that it follows the order of demographic density. The CEAF dispensation is essentially centralized, especially in the north and northeast. The divergences and incompleteness of databases is a problem that needs to be resolved to enhance their use to guide decision-making.Keywords:
Specialized Component of Pharmaceutical Care, Access to Essential Medicines.Content:
No Brasil, o acesso ao medicamento é um direito constitucional, garantido mediante políticas públicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF), aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2004, integrou diversas políticas públicas implementadas ao longo da história do país, como a Lei dos Medicamentos Genéricos (1999), a Política Nacional de Medicamentos - PNM (1998), a adoção da Relação dos Medicamentos Essenciais (RENAME), entre outras, que compõem o arcabouço legal para a garantia do acesso a medicamentos e serviços farmacêuticos no SUS 1.
Nos 20 anos da PNAF, a disponibilidade e o uso racional dos medicamentos representaram um avanço importante ganho abrangendo o aumento do elenco da RENAME, o fomento à produção nacional e a implementação do cuidado farmacêutico. Porém, ainda persistem dificuldades para obter o tratamento de forma integral pelo SUS, desencadeando desembolso direto pelos usuários, ações judiciais e ineficiência de tratamentos2,3.
A Assistência Farmacêutica no Brasil está organizada em 3 componentes de financiamento, dentre os quais está o Componente Especializado de Assistência Farmacêutica (CEAF). Este se propõe permitir o cuidado integral, a nível ambulatorial, dos usuários em todas as fases das doenças crônico-degenerativas, inclusive as doenças raras. As linhas de cuidado previstas nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são essenciais para compreender as linhas de tratamento, a segurança e o uso racional dos medicamentos que fazem parte do CEAF 4.
A fim de compreender com maior profundidade o acesso aos medicamentos, dentre eles os que compõe o CEAF, diferentes atributos de análise foram conferidos ao longo do tempo, como a acessibilidade geográfica, a disponibilidade, a aceitabilidade, capacidade aquisitiva, aspectos culturais, educacionais e socioeconômicos 5–7.
A acessibilidade geográfica está relacionada com a distribuição e localização adequada dos pontos de serviços. Este atributo se refere a proximidade do usuário à determinado local abrangendo o meio pelo qual ele utiliza para se transportar 8. Este é um atributo particularmente importante no CEAF, posto que muitos pacientes são portadores de doenças que provocam incapacidades e a dispensação ocorre em pontos designados pela administração estadual, implicando em deslocamentos dos usuários, muitas vezes intermunicipais.
As diferentes estratégias estaduais na organização dos serviços do CEAF impactam no acesso ao tratamento. Iniciativas como a descentralização dos locais de atendimento, entrega em casa, solicitação digital são apresentadas como facilidades para o acesso aos medicamentos do CEAF9. Porém, em um país com dimensões continentais, cada unidade federativa apresenta diferentes desafios e não há um padrão de gestão estadual que se aplique a todos, porém, cabe compreender qual as características da gestão que podem favorecer o acesso aos medicamentos.
A Artrite Reumatoide (AR) é uma doença inflamatória, crônica e autoimune de causa desconhecida. O PCDT desta enfermidade preconiza três etapas de tratamento, sendo a primeira com Medicamentos Modificadores do Curso da Doença Sintéticos (MMCDs), a segunda com Medicamentos Modificadores do Curso da Doença Biológicos (MMCDbio) ou Medicamentos Modificadores do Curso da Doença Sintéticos Alvo Específico (MMCDsae) associado ou não com MMCDs e a terceira etapa consiste em outro medicamento MMCDbio ou MMCDae, distinto da segunda etapa, associado ou não com MMCDs. Dos vinte e quatro medicamentos indicados para o tratamento da AR, vinte são de responsabilidade do CEAF 10, logo, o estudo desta condição clinica pode refletir caraterísticas do serviço do CEAF como um todo.
O objetivo deste artigo é caracterizar a organização do CEAF no Brasil e categorizar as diferentes estratégias em centralizada ou descentralizadas, apontando os limites, desafios e potencialidades para o acesso aos medicamentos.
Método
Foi realizado estudo quantitativo retrospectivo dos dados de dispensação de medicamentos do Componente Especializado de Assistência Farmacêutica em 2023 nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal (DF), com especial enfoque para os medicamentos preconizados para o tratamento de AR segundo o PCDT 2021 10.
A AR foi escolhida como traçadora a fim de possibilitar análise mais aprofundada para alcance do objetivo deste artigo, principalmente por ter alta prevalência, com espalhamento em praticamente todas as unidades federativas (UFs) do país e possuir todos os medicamentos modificadores do curso da doença no PCDT 202110, dentre eles alguns com alto custo de aquisição. Ademais, é uma doença crônica que costuma implicar em limitação de movimentos em seus estágios mais graves.
Informações de interesse
A fim de melhor identificar e qualificar as estratégias de organização dos serviços do CEAF, foram desenvolvidos indicadores, apresentados no Quadro 1 segundo unidades da federação e/ou regiões geográficas do país (quando necessário).
Fontes de dados
Foram utilizadas com fontes de dados o sistema de Autorização de Procedimento de Alto Custo (APAC), os sítios eletrônicos de todas as secretarias estaduais de saúde (SES) e do DF, a Base Nacional de Dados de Ações e Serviços da Assistência Farmacêutica (BNAFAR) e o estudo de carga de doenças.
Os dados da APAC foram referentes às dispensações de medicamentos realizadas no período de janeiro a dezembro de 2023, para as 27 UFs. Estes foram obtidos na base do Sistema de Informação Ambulatorial do Sistema Único de Saúde (SIA/SUS), disponibilizada pelo Departamento de Informática do SUS (DATASUS), por acesso ao website https://datasus.saude.gov.br. O sistema APAC tem como finalidade o controle e pagamento de procedimentos de alto custo, incluindo os medicamentos do CEAF. O número da APAC é gerado após a autorização do gestor para dispensar o medicamento ao usuário. A solicitação do medicamento exige a apresentação de documentos específicos e exames previstos no PCDT de acordo com a condição clínica.
As dispensações de medicamentos e os pacientes atendidos foram selecionados na APAC a partir do software TABWIN, filtrando-se a variável que indicava o diagnóstico principal pela classificação internacional de doenças – versão 10 (CID-10) de todas as CID-10 presentes no PCDT de 2021 para AR, a saber: M05.0 Síndrome de Felty; M05.1 Doença reumatoide do pulmão; M05.2 Vasculite reumatoide; M05.3 Artrite reumatoide com comprometimento de outros órgãos e sistemas; M05.8 Outras artrites reumatoides soropositivas; M06.0 Artrite reumatoide soronegativa; e, M06.8 Outras artrites reumatoides especificadas.
Para identificar os locais com oferta de serviços de dispensação de medicamentos do CEAF foram coletados dados disponíveis nos sítios eletrônicos de todas as secretarias estaduais de saúde (SES) e do DF. Como complementação, ainda para quantificar os locais de dispensação em comparação aos referidos nas APAC, a BNAFAR também foi consultada, porém somente no tocante a informação do total de cadastros nacionais de estabelecimentos de saúde (CNES) que realizaram dispensação de medicamentos para AR no mesmo período de análise da APAC.
O estudo de carga de doenças de 2008 foi utilizado para obtenção dos dados de prevalência11.
Aspectos Operacionais
Foram obtidos dados no banco SIA/SUS APAC de medicamentos do ano de 2023 do número das dispensações agregadas (independente de qual medicamento) tanto segundo o município de residência do paciente quanto por município do local da dispensação e respectiva unidade federativa. Identificou-se em cada UF o quantitativo de municípios de residência onde havia pacientes que originaram APAC e o total de pontos de dispensação em estabelecimentos de saúde (segundo a variável CNES), de modo a possibilitar a discriminação do aspecto centralização/descentralização da organização do serviço do CEAF.
Os dados da BNAFAR foram acessados por meio da lei de acesso a informação. Foi solicitado relatório da BNAFAR do ano de 2023 para todas as UFs sobre a dispensação dos medicamentos do CEAF para os mesmos CID-10 citados como filtro de seleção para a base de dados da APAC-medicamentos no TABWIN.
Análise
A distribuição dos locais de dispensação é apresentada por região geográfica (N=Norte; NE= Nordeste; SE= Sudeste; S=Sul; CO=Centro-Oeste) e por estado - Acre (AC), Amapá (AP), Amazonas (AM), Pará (PA), Rondônia (RO), Roraima (RR), Tocantins (TO), Maranhão (MA), Piauí (PI), Ceará (CE), Rio Grande do Norte (RN), Paraíba (PB), Pernambuco (PE), Alagoas (AL), Sergipe (SE), Bahia (BA), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Minas Gerais (MG), Espírito Santo (ES), Paraná (PR), Santa Catarina (SC), Rio Grande do Sul (RS), Distrito Federal (DF), Goiás (GO), Mato Grosso (MT) e Mato Grosso do Sul (MS) - (Tabela 1) para cada uma das fontes onde o dado foi obtido. Os indicadores foram calculados por região geográfica.
Para melhor visualização de acessibilidade geográfica e do grau de centralização/descentralização da organização dos serviços do CEAF foi elaborado mapa no software QGIS, versão 3.36, apresentando: (1) a distribuição dos municípios dispensadores (cada ponto no mapa representando um município onde há pelo menos um CNES que dispensou medicamento para AR no ano de 2023); (2) a “área de influência” de um município dispensador. Um dado município está na "área de influência" de uma farmácia/estabelecimento de saúde (CNES) dispensador quando a maioria das dispensações dos pacientes residentes neste município vem do município dispensador. Assim, cada cor de área no mapa representa um cluster de dispensação.
Assim, a partir deste recurso visual, é possível observar que as UFs com maior variação de cores (mais áreas pintadas de diferentes cores ou mais clusters), traduzem uma organização dos serviços do CEAF para AR mais descentralizada e, logicamente em contraposição, àquelas UFs inteiramente pintadas com uma única cor (“mancha”) caracterizam-se por uma organização de serviço mais centralizadora, com ínfimos, ou em geral apenas um, local de dispensação (CNES) referido no sistema APAC.
Resultados
Em 2023, foram atendidos no CEAF para receber tratamento de AR 210.640 usuários. Em média cada paciente recebeu 8,8 dispensações, totalizando 1.855.624. Foram identificados usuários residentes em 5.086 municípios (91%), ratificando a alta prevalência da artrite reumatoide no Brasil e seu espalhamento no território nacional.
De acordo com a APAC, somente 189 municípios (3,4%) dispensaram medicamento para AR. Em 15 UFs o serviço só foi registrado nas capitais. Estas UFs correspondem ao AM, maior em área territorial, AP, RR, os três estados da região centro-oeste e o DF, os seis estados da região nordeste - exceto BA, PB e RN, RJ e SC e (Tabela 1).
É visível a discordância das informações sobre o quantitativo de locais que dispensam medicamento do CEAF (Tabela 1). A BNAFAR não apresentou dados para sete estados durante todo o ano de 2023, indicando a fragilidade desta base especialmente para aqueles que não utilizam o sistema Hórus, que é o caso dos estados do AM, RR, BA, MS, ES, MG e SC.
Os sites das SES apresentam ao cidadão os locais para acesso ao medicamento. Entretanto, das 27 UFs, oito deles indicam apenas um local de atendimento. Ao comparar com a APAC, esse número aumenta para 15 estados, o que pode ser atribuído a utilização de um mesmo CNES em diferentes endereços. Nos sites das SES, os estados de MG e SC apresentavam mais de 300 locais de dispensação do CEAF. Porém, na APAC, MG tem registro em apenas 18 locais e SC somente um (Tabela 1).
Aproximadamente metade dos usuários de medicamentos para AR do CEAF estão na região sudeste, em seguida sul e nordeste, dado que acompanha a ordem da densidade demográfica. Ao comparar a distribuição da população que retira medicamentos para AR do CEAF com a distribuição percentual da população em geral, nota-se que as regiões sul e sudeste possuem uma concentração maior de pessoas com AR referidas na APAC (Tabela 2).
O indicador ‘média dos municípios de residência atendidos por um município dispensador’ expressa a centralização dos serviços. Ao analisar o Brasil como um todo, temos que um município de dispensação atende em média 27 municípios de residência. Porém, ressalta-se que a região centro-oeste inteira possui apenas 4 municípios dispensadores de medicamentos para AR na APAC, sendo que possui 467 municípios, dos quais 444 possuem pacientes com AR atendidos no CEAF segundo os dados da APAC, ou seja, cada município de atendimento (dispensador) é responsável por, em média, atender pessoas de 111 municípios diferentes (Tabela 2).
A partir do estudo de carga de doença realizado no Brasil em 2008 tem-se a estimativa da prevalência de AR em 2023 por regiões do país (Tabela 2), levando a uma prospecção de 754.189 casos de AR no Brasil. Como exposto anteriormente, segundo a APAC de 2023, somente 210.640 pessoas tiveram acesso aos medicamentos para o tratamento de AR pelo CEAF, representando cerca de 28% dos casos prevalentes de AR.
O mapa da distribuição dos municípios dispensadores de medicamentos para AR e sua área de influência segundo a APAC 2023 (Figura 1) demonstra de forma visual a localização dos municípios de atendimento (dispensadores). As grandes manchas são as UFs com organização centralizada (ou concentrados), como SC, CE, RJ e todas as UFs da região CO, etc. Cabe destacar também o estado de Pernambuco (PE), que ficou quase todo em branco no mapa, sugerindo alguma anormalidade no preenchimento das APAC, pois como se observa na Tabela 1, dentre os 185 municípios existentes na UF, só há 20 municípios de residência de pacientes referidos na APAC que receberam medicamentos para a AR.
Discussão
A coordenação das políticas públicas no Brasil, país de dimensões continentais, supõe ação regionalizada e hierarquizada entre as três esferas de governo. A fim de prover os serviços do SUS de forma universal, integral e equitativa, se faz primordial a divisão das responsabilidades entre a União, os 26 Estados, DF e os 5.570 municípios12. A PNAF, como integrante da Política Nacional de Saúde, acompanha as pactuações para organização dos serviços do SUS, que têm como um dos princípios organizativos a descentralização. Esta difere de municipalização, pois serviços com distintas densidades tecnológicas devem ser ofertados de forma coordenada 13. A AF permeia todos os níveis de atenção do SUS, ou seja, desde a baixa à alta complexidade. Os medicamentos são insumos essenciais que devem estar sob gestão qualificada em todos os níveis.
A acessibilidade geográfica do CEAF mostrou-se bastante heterogênea entre as UFs. Os usuários que residem em municípios distantes dos grandes centros urbanos, especialmente nos estados em que os serviços do CEAF são ofertados apenas nas capitais, muito provavelmente terão gastos elevados de tempo e dinheiro para o deslocamento e dificuldade para seguir o tratamento, uma vez que a dispensação dos medicamentos é mensal.
Tanto a centralização quanto a descentralização dos polos de dispensação devem ser cuidadosamente ponderadas quanto a seus prós e contras e deve ser considerada a fonte de observação, tendo em vista a divergência, em alguns estados, entre as informações coletadas na APAC, nos sites e na BNAFAR.
A centralização dos serviços do CEAF em poucos estabelecimentos gera, além da ineficiência quanto à acessibilidade geográfica, sobrecarga de trabalho nos profissionais responsáveis. O farmacêutico não tem tempo hábil para realizar serviços de cuidado, provavelmente limitando-se somente aos processos de gestão e entrega do medicamento 4. Judicialização, falta de infraestrutura e morosidade para comportar as demandas dos usuários, também podem ser consequências da elevada centralização. Por outro lado, a descentralização dos serviços gera maior custo de infraestrutura e requer maior número de profissionais, fato que desencadeia demanda crescente de recursos financeiros e necessita ser priorizado para ser realidade 14.
Ao comparar a distribuição da população em geral em cada região geográfica com a distribuição proporcional de pacientes de AR que acessaram aos serviços do CEAF segundo as regiões geográficas do país, observou-se importante desigualdade nas regiões N e NE. Ou seja, nestas regiões verificou-se menor parcela da distribuição daqueles que acessaram o CEAF quando comparadas às outras regiões. Esta situação também foi observada a partir do indicador “Distribuição do percentual pacientes da APAC em relação ao total de casos prevalente estimados”, que demonstra cerca de 28% de cobertura em termos nacionais, com importante variação entre regiões: apenas 10% na região N a 54% na região SE.
Ademais, as regiões SE e S têm estados com maior descentralização dos serviços do CEAF e apresentam maior percentual de pacientes quando comparados ao total da população em geral, ratificando as disparidades regionais no acesso aos medicamentos no Brasil 7,15.
Após analisar as diferenças de organização dos serviços do CEAF nos estados e observar que usuários diagnosticados com AR de 91% dos municípios são atendidos, é perceptível a necessidade de enfrentamento de possíveis desafios para conseguir os medicamentos necessários. Apesar de uma demanda reprimida, segundo a prospecção pela taxa de prevalência, houve um aumento de 26% de usuários com AR que retiraram medicamentos no CEAF em relação à 2019 16. Esse aumento também pode ser uma consequência do agravamento da doença, pois a primeira linha de tratamento para a AR segundo o PCDT 2021, inclui MMCDs com preço acessível, como o metotrexato 2,5mg (preço de 30 comprimidos varia de R$33,11 a R$42,45)17. Logo, parte dos usuários pode preferir fazer o desembolso direto ao invés de procurar o CEAF para obter o medicamento, confrontando-se com a burocracia. Com o agravamento da doença e necessidade de troca do tratamento, os valores mensais para desembolso direto ficam muito superiores, variando de R$380,1917 a R$6.114,24 (em média)18. Devido ao maior custo, a procura dos serviços do CEAF é maior para a segunda linha de tratamento.
A literatura científica 19–21 relata experiências relacionadas a organização da dispensação do CEAF que demonstram a descentralização como um importante fator para melhorar o acesso. Estas experiências estão concentradas nas regiões S e SE, ratificando a maior concentração de usuários nessas regiões.
Traz-se como primeiro exemplo o caso da Farmácia do Paraná, que realizou em 2017 um projeto piloto de serviço de entrega em casa de medicamentos do CEAF, para os usuários idosos (acima de 60 anos) residentes em Curitiba, o que representou 34,73% do total de usuários atendidos nessa farmácia. Os autores consideraram que essa estratégia melhorou o acesso desta população vulnerável, assim como o fluxo dos demais usuários na farmácia, diminuindo o tempo de espera19.
O estado do RS desenvolveu uma plataforma denominada Farmácia Digital RS implementada em 2020 com o objetivo de realizar a consulta, solicitação e renovação de medicamentos do CEAF por meio digital. Essa estratégia teria facilitado o acesso ao usuário e possibilitado ao farmacêutico realizar serviços de cuidado20.
A Política de Descentralização do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (PDCEAF) realizada em Minas Gerais em 2021 teve adesão de 72% dos municípios até novembro de 2023. Destes, 41% estavam executando a abertura de processos e a dispensação dos medicamentos. Até 2023 foram investidos R$45,9 milhões em adequação da infraestrutura e R$ 15,3 milhões em custeio dos serviços farmacêuticos destas unidades. A ampliação do acesso aos medicamentos foi computada em cerca de 9 mil novos usuários, que corresponde ao aumento de 14% do número de pessoas atendidas por esse componente neste estado21.
Ademais das experiências relatadas na literatura, há outras, como a entrega domiciliar de medicamentos do CEAF no DF ou da descentralização de polos de dispensação no estado do RJ, que são do conhecimento das autoras, porém não são apreensíveis pela literatura científica, nem pelos sítios eletrônicos das SES ou pelas bases de dados oficiais.
Nosso estudo explicitou a debilidade dos dados sobre os locais de dispensação dos medicamentos CEAF, tendo em vista as divergências das informações registradas na APAC, na BNAFAR e nos sites das SES. A APAC é provavelmente a fonte de dados mais confiável no nível dos estados, pois subsidia o repasse de recursos. Os dados da BNAFAR são compostos por diferentes sistemas de informação que não se interoperam, gerando assimetrias e dificuldades de compatibilidades com a base nacional. A análise da centralização dos serviços foi especialmente divergente para os estados do CE, MT, MG, SC e RJ, pois na APAC o registro de municípios que realizam a dispensação é muito inferior ao informado nos sites das SES, que reflete a realidade. A gestão pública baseada em evidências é uma das melhores estratégias para a tomada de decisão em políticas públicas. A partir de dados confiáveis é possível compreender as fortalezas e fragilidades de determinada ação que foi implementada e aprimorá-la a fim de alcançar as metas pretendidas.
A concentração da informação de locais de dispensação nas APACs pode ser compreendida pela maior facilidade de organização e prestação de contas ao Tribunal de Contas da União (TCU). Como os medicamentos do CEAF representam a maior parcela de gastos anuais em aquisição de insumos da AF (cerca de 4,87 bilhões de reais22), uma das possibilidade para esta opção pelas SES seria de que a concentração das informações contribuiria para segurança na execução do CEAF pela gestão estadual. Não obstante, a concentração da informação de diferentes locais pode dificultar a rastreabilidade de eventuais problemas que ocorram em locais específicos. Cabe ressaltar que, a fim de monitorar as dispensações dos medicamentos e apoiar as tomadas de decisão, as informações dos locais de dispensação devem ser ajustadas aos respectivos CNES reais.
Ademais das limitações usuais do uso de bases secundárias, como consistência e confiabilidade destas, problema que no nosso caso foi expresso pela divergência de informações entre elas, destacamos aqui alguns problemas da estimativa de cobertura de acesso ao tratamento de AR pela APAC. O melhor dado disponível identificado para prevalência de AR foi gerado em um estudo empreendido em 2008, portanto, pode divergir bastante da atualidade. Além disso, vários pacientes podem obter seus medicamentos na rede privada. Merece também menção o fato de que a busca de informações nos sítios eletrônicos das SES não permite identificar locais de dispensação específicos para AR.
São fortalezas do estudo o fato de usar dados nacionais, abrangendo todas as UF, e triangular diferentes bases de dados. A AR, doença traçadora, tem alta prevalência e espalhamento nacional, cujo tratamento é composto por medicamentos de alto custo. A identificação de clusters de área de influência de estabelecimentos dispensadores mostrou-se uma estratégia interessante quanto à centralização/descentralização do CEAF, ensejando que seja aplicada a outras doenças.
Conclusão
Pode-se dizer que o CEAF é essencialmente centralizado, onde a maioria dos medicamentos são de alto custo de aquisição e muitos usuários portam enfermidades debilitantes, para os quais a acessibilidade geográfica é particularmente importante.
Num componente que reúne tais características, a boa informação para a gestão, ademais para a boa comunicação com os usuários e sociedade civil é especialmente relevante. Assim, cabe ressaltar a divergência de informação entre as bases de dados. Faz-se mister ampliar a abordagem adequada do tema na literatura científica, assim como nas bases de dados, para orientar as melhores escolhas de acordo com o contexto de cada estado.
É fundamental o aumento do número de locais de dispensação, desde que garantida a qualidade do serviço. A entrega domiciliar carece de melhores evidências quanto à viabilidade de operacionalização, garantia dos fatores de sucesso de uma dispensação, ademais dos custos envolvidos.
O estudo ensejou reflexões e recomendações para aprimoramento da PNAF e articulação interfederativa.
Faz-se urgente aprimorar, a partir dos já existentes, um sistema efetivo e transparente de monitoramento da qualidade do registro das operações do CEAF, incluindo as informações de movimentações financeiras, entre outros aspectos gerenciais e clínicos.
Contribuição dos autores: Ana Liani Beisl Oliveira e Mônica Rodrigues Campos foram responsáveis pela concepção e desenho do estudo e obtenção, análise e interpretação dos dados, Vera Lucia Luiza e Mareni Rocha Farias contribuíram na concepção e desenho do estudo e análise e interpretação dos dados. Todos os autores realizaram a produção do texto do manuscrito e aprovaram a versão final do texto.
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