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0386/2025 - Suspicious Death: stigma in AIDS reports in the Brazilian press through medical discourses (1986–1989).
Morte suspeita: estigma em óbitos de AIDS na imprensa brasileira a partir dos discursos médicos (1986-1989).

Author:

• João Paulo Gugliotti - Gugliotti, JP - <joaopaulogugliotti@outlook.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0115-9032

Co-author(s):

• Lilia Blima Schraiber - Schraiber, LB - <liliabli@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3326-0824

Thematic Area:

Ciências Sociais

Abstract:

Fear of death is a common defining element in social contexts whose history is marked by fatal diseases that involve stigma and prejudice. In this article, we sociologically analyze the hybrid role of medicine, epidemiology, and mass media in the production of the cause of death. With a qualitative and quantitative-descriptive approach, we investigated sections on AIDS deaths in the Brazilian newspapers, between January 1986 and December 1989. In summary, we argue that the structure of objectification of the epidemic and the health crisis combined two types of rationality: (i) firstly, and under the influence of the risk categories originating from epidemiology, AIDS was historically classified as a disease with sexual and racial-ethnic origin; (ii) secondly, and amid the deaths caused by the epidemic in the late 1980s, experts – and doctors, in particular – diverged on the cause of death, favoring the emergence of the term “suspicious death”, from which explanatory schemes touched on sexual mobility between exposed and heterosexual groups, in which bisexuality is raised as a presupposition of vertical intercontamination, from homosexual to heterosexual segments.

Keywords:

HIV/AIDS, Stigma, Medicine, Death, Medicalization.

Content:

Introdução

Com o advento da epidemia de AIDS (“Acquired Immunodeficiency Syndrome”, em inglês; SIDA, “Síndrome da Imunodeficiência Adquirida”, em português) na década de 1980, formas científicas e populares de classificação produziram concepções enigmáticas acerca das práticas sexuais, do desejo e da morte. Essas concepções foram justapostas a estruturas mais antigas de conhecimento que distinguiam normalidade e patologia2 pela forma como grupos não-heterossexuais e não-brancos, em grande medida, eram rotulados como “reservatórios de doenças infecciosas e venéreas” (RIVD)1,3. Tal enquadramento, historicamente, envolveu mecanismos de exposição derivados de um acúmulo de pesquisas nas correntes da epidemiologia da susceptibilidade (1930-50) e, a posteriori, do risco (1970-presente)1,2,3,4. Nesse artigo, analisamos as classificações sociomédicas presentes em matérias jornalísticas da grande imprensa que abordavam óbitos de AIDS no Brasil. De modo análogo, examinamos como discursos oficiais sobre adoecimento e morte se articulam a representações socialmente disseminadas que condensam medos e pânicos morais em torno da produção de enunciados científicos sobre sexualidade e raça/etnia.
A epidemia de HIV/AIDS está inserida em um tempo social e histórico1,4,5. A esse respeito, Slagstad5 estabeleceu três temporalidades que nos permitem sintetizar o complexo quadro de significados sociais em meio às abordagens biomédicas e sociológicas: (i) a doença rara; (ii) o novo vírus; e (v) a cronificação. De 1981 a 1982, a AIDS foi classificada a partir de uma linguagem voltada essencialmente à demarcação de homens homossexuais, e o status de “doença rara” conformava explicações particularistas que não apenas enquadravam a patologia fora das relações heterossexuais, como também minorava sua importância para políticas de fomento, ações de redistribuição de cuidados e políticas de prevenção, por exemplo. Após 1983, quando o pesquisador francês Luc Montagnier, do Instituto Pasteur, isolou em laboratório o retrovírus LAV (Vírus Associado à Linfodenopatia), houve a produção de um entendimento diferente a respeito da disseminação e das formas de contágio. Esse novo entendimento, como parte das correntes que concebiam a “nova epidemiologia”, reatualizou as estruturas de classificação da doença, progressivamente, de um status de “condição rara” para o de “doença crônica”6. Tal transformação, no entanto, não levou à desestigmatização da doença, adiando a expectativa de que a AIDS seria socialmente menos associada a grupos marginalizados, ou que as estruturas explicativas e de classificação se tornariam mais equitativas e menos particularistas. Segundo a clássica abordagem de Pelúcio e Miskolci6, esse foi o mote da repatologização da homossexualidade, do paradigma mental ao epidemiológico ––– isto é: a metamorfose da homossexualidade de doença mental a um tipo ameaça epidemiológica mais nociva, pois se associava a uma infecção sexualmente transmissível (IST) letal e a formas de transmissão e infecção rápidas, vinculadas principalmente ao sexo recreativo, ou serial6.
Enquanto em 1983 a doença já havia produzido 1.283 óbitos nos Estados Unidos, e o Brasil registrava dois novos casos no Estado de São Paulo, definições como “câncer gay”, ou GRID (“Gay Related Immune Deficiency”, em inglês; “Imunodeficiência Relacionada à Homossexualidade”, em português), povoavam o imaginário sociomédico a respeito da AIDS, criando um tipo de bioidentidade do homem homossexual “aidético”, que, por comportamento sexual impróprio, se tornou conscientemente doente6,7. Estruturas semelhantes de classificação levaram, em contexto internacional, à (re)emergência da categoria “MSM” (“Men who have sex with men”, em inglês; “Homens que fazem sexo com homens”, em português), evidenciando uma afinidade eletiva entre comportamento (homo)sexual e a susceptibilidade à nova síndrome2,3,4,5,7.
Do paradigma mental ao epidemiológico, as mortes provocadas pela AIDS adentraram no final da década de 1980 conformando um tipo peculiar de classificação que não era apenas resultado das mortes, ou de estruturas semânticas neutras que encontraram correspondências estocásticas entre prática e comportamento sexual. Segundo Gugliotti4, em análise às secções de obituários publicadas pelo semanário Bay Area Reporter (BAR), em São Francisco, na Califórnia, a exposição da causa-mortis envolveu mais do que uma mera descrição do óbito no caso da AIDS. Enquanto médicos, jornalistas, familiares e amigos enlutados lidavam com novas noções originadas da ciência e do conhecimento popular, os usos de termos controversos como “morte por AIDS”, “morte suspeita”, “câncer”, “doença mortal” e “doença desconhecida” criaram certo ecletismo na forma de nomear as mortes provocadas pela imunodeficiência que se combinavam a diferenciações baseadas em gênero, raça/etnia e origem social3,4,5,7.
No Brasil, por outro lado, e embora os óbitos tenham sido debatidos com certa frequência em estudos epidemiológicos exploratórios e ecológicos conhecidos, são incipientes as pesquisas socioantropológicas dedicadas ao exame da causa de morte descrita nas mídias de massa e as estruturas semânticas (êmicas e/ou científicas) mobilizadas por autoridades sanitárias, médicos e jornalistas. Os discursos oficiais, produzidos em matérias publicadas na grande imprensa, sintetizam empreendimentos por classificação e produção de óbitos8. Nesses, a morte não é uma categoria pura, matemática, natural ou isenta de conotações homofóbicas e racistas que conformaram o vocabulário inicial da AIDS durante o pânico sexual (1984-1990)1,2,4,5,6,7. Alternativamente, as mortes não são eventos estritamente biológicos, ou que prescindem do contexto social, cultural e histórico8,4.

Morte suspeita: a causa-mortis e o dilema de definição
Mortes causadas pela epidemia de HIV-AIDS no final do século XX envolveram desafios científicos, éticos, morais e políticos4,7,9. Ao longo da história da AIDS, as representações de adoecimento e morte foram invariavelmente produzidas com o auxílio de explicações assentadas em fatores de exposição e risco, configurando, ainda, uma linhagem dentro da epidemiologia responsável pela (re)emergência de métodos baseados em inferência estatística e causalidade1,2,7. Segundo a exposição e o risco, a doença poderia ser descoberta a partir do escrutínio dos chamados “comportamentos nocivos” ––– i.e., relações homossexuais, bissexuais, uso de drogas endovenosas e relacionamentos extraconjugais, ou não-monogâmicos6,7.
Similarmente, nos anos 1980 e 1990, matérias publicadas pela imprensa profissional materializavam o medo da morte9,10,11. Isso, pois, as representações midiáticas disponíveis acerca da AIDS não apenas evocavam imagens de corpos frágeis, macilentos ou de perigo iminente à saúde; elas constituíam interpretações sobre como a doença era uma ameaça a valores e modos tradicionais de vida centrados na família, em que o aspecto recreativo da atividade sexual poderia suprimir ideais reprodutivos e, portanto, levar ao rompimento de expectativas de relacionamentos estáveis entre pessoas heterossexuais1,2,6. É justamente pelo pragmatismo seletivo com que as noções científicas foram interpretadas e fabricadas, que a epidemia de AIDS não deve ser descartada como um exercício para culpar vítimas. O efeito da culpa, nesse aspecto, deve ser interpretado menos como o resultado de experimentações técnicas, ou o produto de estruturas objetivas que encontraram determinadas tendências de mortalidade da doença, do que a forma pela qual segmentos populacionais socialmente minorados se tornaram vetores da doença12,13,14.
Os primeiros estudos sobre populações afetadas pelo HIV-AIDS concentraram-se em comunidades e grupos em alta vulnerabilidade social1,3,13,14,15,16,17,18,19. Nesse momento, a categoria vulnerabilidade não era concebida como eixo analítico das privações, desigualdades ou iniquidades em saúde, mas operava de forma fragmentada em análises de disparidades, como a abordagem centrada em direitos humanos posteriormente problematizou20,21,22,23,25. Reduzida à noção de disparidade, a vulnerabilidade se inscrevia em uma leitura mecanicista do social, que reconhecia as diferenças entre grupos, mas não as problematizava a partir do processos de determinação social em saúde19,25. Não raro, tal leitura incorporava concepções de desvio social e não-engajamento para se referir a problemas de infecção como questões internas aos grupos atingidos pela epidemia, recriando suposições normativas e moralizadas em torno da sexualidade20,21.
O argumento de que a AIDS afetava mais segmentos historicamente racializados ou sexualizados era diretamente proporcional à feitura de inquéritos populacionais na epidemiologia5,14,19. A partir desses inquéritos, focados principalmente em disparidades sociais entre grupos, as questões sobre as relações sexuais ganharam centralidade, com ênfase nas relações entre pessoas do mesmo sexo para investigações sobre infecções sexualmente transmissíveis1,3,5,15,16,17. Os usos em larga-escala de questionários que adotavam perguntas sobre as relações homossexuais inventaram, por convenção e uso repetido, um tipo persistente e eletivo de afinidade entre a AIDS e segmentos não-heterossexuais3,5.
No caso das mortes, houve tendência semelhante4,16. Embora a AIDS não fosse considerada uma doença apenas letal a segmentos homossexuais, o dilema de definição dos óbitos em secções publicadas em jornais e revistas de grande circulação frequentemente apresentava a condição como “suspeita”4. A desconfiança, consequentemente, não se dava sobre a doença instalada, i.e., a AIDS, mas sobre a causa8. A dúvida sobre a causa, quase sempre, derivava de compreensões originadas de temores sobre relações extraconjugais, com pessoas do mesmo sexo ou profissionais do sexo. Nesse aspecto, e sob a justificativa de que esses segmentos eram vetores da doença, os medos também criavam um simulacro representacional inscrito na imagem da morte por comportamento sexual inadequado e imoral4,6,9,10,16.
Ao longo das duas primeiras décadas da epidemia, a medicina e os médicos tiveram papel preponderante na produção de atestados de óbitos e recomendações clínicas alinhadas a um tipo de modelo universal de paciente com AIDS ¬––– i.e., o paciente homossexual, jovem, que mantinha relações sexuais recreativas com muitos parceiros26. Nesse modelo, vigoravam ––– para além das questões de gênero e sexualidade supracitadas –– aspectos concernentes à autoridade médica. Schraiber27, em sua clássica tese sobre a profissão médica, demonstrou que, muito além da ética profissional, o trabalho médico pressupõe certa instrumentalização da técnica, em que a neutralidade é percebida como fundamento. A produção do trabalho médico, logo, é resultado da consubstanciação de aspectos ideológicos, morais e projetos políticos, dos quais a medicina (e os médicos) normalmente se afirma(m) fora27,28,29. Conforme Mendes-Gonçalves29 e Schraiber27,30, essa racionalidade legitimou historicamente um tipo de verdade absoluta porque foi também produzida como autoridade moral e técnica. No contexto da epidemia, o deslizamento entre a produção de conhecimento técnico e moral da parte da medicina pode ser lido com um empreendimento facilitado precisamente pela forma como o processo de trabalho dos médicos incorporou a confiança em razão de seu duplo papel, ora como conselheiros técnicos, ora como conselheiros morais29,30. Até a disponibilização comercial do coquetel antirretroviral, o dilema de definição da AIDS era determinado, ao menos em partes, pela forma como médicos e a medicina interpretavam as relações não-heterossexuais, ou não-normativas, a partir dos adoecimentos e dos óbitos31.
Nos Estados Unidos, estudos pioneiros buscaram compreender o impacto do estigma entre os grupos afetados pela AIDS, examinando obituários publicados pela imprensa comunitária e/ou profissional nas décadas de 1980 e 1990. Não foram encontradas investigações científicas publicadas antes da década de 1990. Em um estudo qualitativo publicado em 1994, Alali32 analisou 100 obituários sobre AIDS coletados no jornal The New York Times. Com base em revisão temática, os resultados indicaram que os obituários incorporaram compreensões homofóbicas da homossexualidade e aproximavam a AIDS a descrições centradas nas práticas sexuais entre homens. Consequentemente, conforme Alali32 sugeriu, os obituários manifestavam compreensões marcadas por mecanismos de classificação social e cultural, reiterando medos coletivos sobre a doença que estavam assentados na homossexualidade.
Os obituários produzidos pelo The New York Times, entretanto, e de forma majoritária, foram apresentados sem filtros comunitários, como acontece em jornais locais de baixa circulação (normalmente escritos por parentes ou entes queridos), o que poderia prevenir ou dificultar estratégias para encobrir o estigma por parte da comunidade, parentes ou amigos. Os filtros comunitários são formas sociais de modelagem que podem obscurecer ou mitigar a descrição de um evento no qual as pessoas são expostas publicamente. Em jornais comunitários de pequena circulação, nos Estados Unidos, as mortes por AIDS eram descritas a partir de eufemismos, como uma “longa batalha”, “câncer”, “doença terrível” ou “doença incurável”, sem que o termo “AIDS” fosse diretamente publicizado4. No Brasil, conforme pesquisa empreendida por Gugliotti e Schraiber7, a partir de jornais de grande circulação como O Estado de São Paulo, porém, a causa da morte era mencionada explicitamente – embora eufemismos também fossem comuns em matérias veiculadas nos primeiros anos da epidemia (1982-1988). Isso criou uma situação metodológica conveniente em que a pergunta sobre “quem escrevia sobre quem?” passou a figurar como elemento fundamental na compreensão da construção da causa-mortis, pois embora as mortes decorressem de um quadro avançado de AIDS, nem todas as pessoas –– entes queridos, familiares, jornalistas, amigos, profissionais da saúde etc. –– expunham as causas da mesma forma. Nesse aspecto, outras questões sociológicas complementares à pesquisa emergiram, a saber: (i) quais termos eram mais relatados e quais pessoas apareciam como morrendo abertamente de AIDS em secções dedicadas a relatar mortes na imprensa? (ii) Haveria relações entre a descrição da causa-mortis e características sociodemográficas como gênero, sexualidade, raça/etnia ou origem social? (iii) Em que medida as diferenças na descrição das mortes refletiam e constituíam desigualdades macrossociológicas? Essas questões integraram o escopo da metodologia que desenvolvemos nessa pesquisa.
Estudos posteriores, baseados em obituários ou memoriais, analisaram o impacto de múltiplas perdas relacionadas com a AIDS e estresse traumático durante tempos de incerteza, angústia e desamparo33; e diferenças nas relações entre as pessoas enlutadas e os seus entes queridos que morreram de AIDS34. Análises comparativas e interseccionais sobre a causa da morte, em diálogo com aspectos étnico-raciais, de gênero, de sexualidade e de idade combinados, por exemplo, permanecem como uma lacuna nas pesquisas que investigaram trechos de obituários e memoriais de AIDS na literatura científica mais amplamente e, no Brasil, em particular.
Neste artigo, lidamos com aquelas fontes ditas “não-oficiais”. Não tratamos, evidentemente, (i) de dados empíricos sobre mortes por AIDS produzidos a nível dos institutos de estatísticas sociais e de saúde, (ii) tampouco de obituários e memoriais escritos por familiares enlutados ou profissionais jornalistas. A respeito do primeiro ponto, estudos demográficos e populacionais em saúde podem ser uma fonte conveniente para a compreensão das estatísticas gerais. Sobre o segundo, obituários de mortes relacionadas à AIDS tendem a privilegiar, na imprensa profissional brasileira, personalidades da mídia e pessoas famosas. Embora os dados não tenham se originado de obituários ou memoriais, consideramos pertinente distinguir essas duas formas narrativas, uma vez que não lidamos, stricto sensu, com tais estilos: em primeiro lugar, obituários são registros jornalísticos ou institucionais que anunciam e narram a morte de uma pessoa. Geralmente, apresentam dados biográficos, a trajetória profissional e aspectos considerados relevantes de sua vida, funcionando como documento público de reconhecimento e memória social. Memoriais, por outro lado, são textos, monumentos ou espaços dedicados a homenagear pessoas ou grupos falecidos. Diferem dos obituários porque não apenas informam a morte, mas buscam preservar a lembrança, construir significados coletivos e atribuir valor simbólico à trajetória dos homenageados. Analisamos, portanto, secções mais gerais de saúde que expunham óbitos de AIDS, sem que esses tenham constituído memoriais ou obituários, com os termos e semântica êmica própria, geralmente produzidos por entes queridos em luto. Tal estratégia nos permitiu compreender como autoridades médicas, sanitárias e profissionais da imprensa cotejavam classificações epidemiológicas e produziam sentido moral sobre as mortes e a AIDS, uma vez que essas narrativas eram impessoais – quase como relatos jornalísticos –, elaboradas nas franjas dos chamados memoriais ou obituários e das próprias estatísticas gerais em saúde – que eram incipientes. Dito isso, consideramos pertinente esclarecer que a definição de “obituário” adotada neste artigo não corresponde, em sentido estrito, à sua forma e estrutura tradicionais, razão pela qual optamos por utilizar apenas o termo “óbitos”.
Refletindo a necessidade crítica de compreender e estudar o impacto das classificações post-mortem em secções de óbitos publicados pela imprensa no Brasil, retomamos as três perguntas anteriores, almejando compreender quais termos foram produzidos sobre causa da morte por meio de quatro categorias sociodemográficas delimitadas ¬––– gênero, sexualidade, raça-etnia e idade. Os termos presentes em óbitos de pessoas com AIDS, portanto, são considerados como uma espécie de tradução em que discursos epidemiológicos e médicos vigentes em determinado período podem estabelecer significados diferenciais quando escritos ou suprimidos. Em concordância à tese de Armstrong8, consideramos que a produção da causa-mortis é menos uma tarefa individual restrita às autoridades médicas do que o resultado complexo da interação entre diferentes atores sociais. Nesse sentido, os termos originados apresentam-se como uma alternativa metodológica a uma leitura simplista e unidirecional que tenderia a ver a produção de óbitos como associada a atores sociais atomizados, sem a devida analogia e mediação sociológica. Nosso interesse pela gramática produzida nos obituários também poderia ser lido como um exame do discurso35, já que enunciados ou narrativas, quais sejam, obedecem a um certo número de leis e de regularidades internas: aquelas tipicamente da linguagem. Conforme Foucault35 observou, a linguagem não faz parte de um “esoterismo estrutural” dos falantes, mas é parte operadora do discurso. A fala e a escrita, ainda, são articulações entre formas de saber e poder, em que a fala ou a escrita encarnam uma espécie de “objetivação discursiva”35.

Materiais e métodos
Esse estudo teve enfoque qualitativo e quantitativo-descritivo. Empregamos procedimentos teórico-metodológicos mistos como análise do discurso de inspiração foucaultiana, exame temático e análise descritiva-quantitativa centrada em características sociodemográficas e a causa-mortis.
Extração de dados
Investigamos reportagens sobre óbitos por AIDS veiculadas na imprensa jornalística brasileira de grande circulação entre janeiro de 1986 e dezembro de 1989. A escolha desse recorte temporal justifica-se por dois motivos principais. Em primeiro lugar, ele coincide com o auge das mortes por HIV/AIDS e com o período identificado por especialistas como de “pânico sexual”1,3,6,7, caracterizado pela circulação intensa de termos estigmatizantes que moldaram a forma pública de constituição da doença. Em segundo lugar, após a padronização e o consenso científico em torno da nomenclatura HIV, estabelecido a partir de 1983, interessava-nos compreender de que modo as mortes eram narradas pela imprensa no final da década de 1980 e quais os termos mobilizados por especialistas nesse contexto. A fonte selecionada para coleta e análise de dados foi o jornal O Estado de São Paulo, i.e., O Estadão. Consideramos o referido jornal como uma fonte apropriada para a pesquisa, pois ele foi historicamente pouco explorado nas principais pesquisas socioantropológicas brasileiras a partir da epidemia de HIV-AIDS –– predominando estudos sobre o jornal Folha de São Paulo e revistas ––, além de ter configurado um espaço pujante de participação, entrevistas e embates sobre a epidemia durante o período do pânico sexual, conforme apresentamos em outra ocasião (referência cegada).
O corpus empírico foi constituído a partir de uma busca sistemática nas edições publicadas entre janeiro de 1986 e dezembro de 1989. Nesse processo, foram reunidas todas as matérias que mencionavam óbitos associados à epidemia, totalizando 59 artigos jornalísticos. Os materiais selecionados, portanto, incorporaram artigos jornalísticos em colunas especiais sobre saúde no referido jornal, a partir de relatos, depoimentos e entrevistas de profissionais de saúde, autoridades sanitárias e públicas, a respeito dos óbitos no período supracitado, o que sinteticamente chamamos de “matérias publicadas”. Uma vez que o jornal O Estadão produziu significativa quantidade de artigos e matérias sobre a epidemia de HIV-AIDS, estabelecemos três critérios de inclusão para a seleção dos materiais: matérias (i) relacionadas aos óbitos de AIDS, considerando o intervalo de janeiro de 1986 a dezembro de 1989; (ii) com informação substantiva a respeito de, pelo menos, três das quatro categorias sociodemográficas delimitadas – gênero, sexualidade, raça-etnia e idade; (iii) correspondentes a óbitos de pessoas residentes no Brasil, sem distinção quanto à nacionalidade.
Matérias que não apresentavam informação substantiva relativa a, pelo menos, três das quatro categorias sociodemográficas definidas foram excluídas do corpus, de modo a garantir comparabilidade entre os óbitos analisados. Ainda que tais matérias não tenham sido incluídas na análise, registramos que a ausência de referência a marcadores sociodemográficos é, em si, um elemento relevante. Essa omissão contribui para a produção de uma invisbilidade social em torno das mortes, o que poderia ser explorado em estudos futuros. No levantamento inicial, identificamos 26 matérias que deixaram de informar tais categorias, sugerindo que a invisibilidade de certas categorias sociodemográficas também compunha o quadro de estigmatização e silenciamento presente na cobertura jornalística do período.
Análise de dados
Os dados foram analisados por meio do exame temático baseado em leitura aprofundada36,37,38,39. Tal exame, procedimento semelhante à análise de conteúdo, envolveu a busca de padrões repetidos de significado a partir de um amplo conjunto de textos, provenientes das matérias jornalísticas pré-selecionadas39. Nos baseamos em quatro eixos temáticos formados a partir de aspectos sociodemográficos: (i) raça/etnia; (ii) gênero; (iii) sexualidade; (iv) idade. Do ponto de vista da causa-mortis, os temas derivados das categorias temáticas (i-iv) foram: morte suspeita, pneumonia, HIV-AIDS, câncer e doença venérea. Tais eixos, igualmente, foram interpretados como categorias analíticas em razão de sua repetição nos relatos obtidos ––– repetição essa que, segundo Minayo39, não requer a exata quantificação, mas à relevância do tema registrado nos dados empíricos frente ao quadro teórico conceitual que serviu de referência ao estudo. Na sequência, realizamos (i) pré-análise, (ii) exploração do material, categorização ou codificação e (iii) tratamento dos resultados, inferências e interpretação40,42,43. Da análise temática, finalmente, nuvens de palavras (word clouds) e Nuvens Comparativas de palavras (comparative clouds) foram criadas com auxílio do software Vizzlo a fim de explorar as palavras prevalentes a partir dos textos pré-selecionados nos arquivos consultados. Uma nuvem geral de palavras e duas nuvens comparativas de palavras foram criadas: na primeira, exploramos os termos prevalentes nos artigos em que os óbitos eram mencionados, de forma geral. Na segunda e terceira nuvens, comparativamente, examinamos os temas prevalentes entre o segmento LGBT+ e o segmento heterossexual.

Resultados
Apresentamos nesta seção os dados quantitativos com base em análise sociodemográfica e, em seguida, aqueles relativos ao exame temático.
Foram identificados 46 óbitos em 59 matérias que abordavam ou mencionavam a disseminação da epidemia no Brasil. A análise das médias de idade evidencia diferenças expressivas entre grupos raciais: enquanto as pessoas brancas que morreram de AIDS tinham, em média, 40,4 anos, as pessoas pretas apresentavam média de 29,7 anos – uma diferença superior a dez anos. Assim, os óbitos de pessoas pretas apareceram nas seções jornalísticas em idades mais precoces (Tabela 1).
Entre os homens, a identificação racial/étnica só foi explicitada quando se tratava de homens pretos associados diretamente à categoria “AIDS”. Homens brancos não tiveram sua raça/etnia mencionada. Nos casos classificados como “morte suspeita”, também não houve menção à questão racial/étnica; nesses, a média de idade foi de 30,5 anos.
No caso das mulheres, observa-se um contraste similar: mulheres brancas mencionadas em associação a “AIDS” tinham média de 39,3 anos, e aquelas com “morte suspeita”, 45 anos. Já as mulheres pretas apresentavam médias de idade significativamente mais baixas – 31,6 anos nos casos de “AIDS” e 20,5 anos nos de “morte suspeita”.
Por fim, os óbitos sem informação sobre raça/etnia apresentam médias de idade próximas às de pessoas brancas, configurando, portanto, um segmento relativamente mais jovem (Tabela 1).Em relação às mortes por AIDS, pessoas bissexuais, homossexuais, travestis e não-informados eram mais jovens do que pessoas heterossexuais. Em termos absolutos, as mortes foram majoritariamente de homossexuais (n = 13) e heterossexuais (n = 9), seguidas em menor proporção de travestis (n = 4) e bissexuais (n = 2). Das mortes suspeitas, mortes de pessoas bissexuais são mais recorrentes (n = 10), comparativamente às heterossexuais (n = 3) e não informado (n = 1). A média de idade apontou que pessoas bissexuais e não informado eram mais jovens (25,5) em relação às heterossexuais (30,3) (Tabela 1). As Figuras 1 e 2 mostram a contagem de profissionais informantes e como esses profissionais expunham/noticiavam a sexualidade das pessoas acometidas pela doença, respectivamente.
As Figuras 3 e 4 incorporam a revisão temática dos óbitos selecionados –– especificamente: as Figuras 3 e 4, em escala azul, detalham comparativamente os termos prevalentes segundo o tipo de população-alvo: em primeiro lugar, artigos que debatiam óbitos e/ou infecções de pessoas LGBT+, preponderando o segmento homossexual (Figura 3); em segundo lugar, aqueles óbitos e/ou infecções relacionadas a pessoas heterossexuais (Figura 4).

Discussão

Entre mortos, suspeitos e patológicos: decantando a causa-mortis

O exame dos resultados deve responder às três questões elencadas inicialmente. Em primeiro lugar, nos interessa explorar quais são as aproximações entre os termos presentes em óbitos e as desigualdades macrossociológicas de raça/etnia, idade e gênero. Sob esse aspecto, analisamos os elementos que tornam algumas mortes, afinal de contas, suspeitas. Assim, examinaremos mais detidamente a noção de “morte suspeita”. Ao longo da discussão, daremos ênfase aos profissionais informantes que narravam os óbitos à imprensa, cotejando o lugar da autoridade médica.
Há elementos de sexualidade, gênero e raça/etnia que são definidores da experiência de adoecimento e morte em se tratando de doenças historicamente estigmatizadas. Os resultados confirmaram que a definição da AIDS como causa-mortis dependia de um enquadramento que apontava pessoas não-heterossexuais, ou não-brancas. Grupos culturalmente associados à “promiscuidade” e ao “desvio sexual” despontaram como mais relacionados à AIDS na imprensa, sendo que, mesmo entre segmentos heterossexuais, homens pretos predominavam. Em termos sociológicos, por um lado, temores de sexualidade e raça revelavam as afinidades eletivas entre a doença e os chamados “grupos de risco” ––– homossexuais, bissexuais, mulheres lésbicas, travestis, transsexuais e pessoas não-brancas; por outro, a ênfase dada à sexualidade e à raça como parte inequívoca de uma “morte por AIDS”, ou “morte suspeita [de AIDS]”, evidenciou as nuances clínicas e sociais a respeito da causa-mortis que se encontrava matizada para além dos aspectos científicos, ou tecnológicos da linguagem patológica. A atividade de demarcação das mortes por AIDS e aquelas suspeitas, cujos termos eram fornecidos maiormente por peritos e autoridades médicas no campo, em síntese, criou uma espécie de sentido de “origem” da doença em determinados grupos a partir de componentes étnico-raciais, de gênero e de sexualidade. A presença da noção de “grupos de risco”, no contexto da epidemia, sem dúvidas, forneceu as bases para a interpretação das mortes. A heterossexualidade e a monogamia funcionavam como parâmetros de normalidade, a partir dos quais se definiam os desvios1,3,5,6. A noção de risco, nesse sentido, não operava apenas como uma ferramenta científica de cálculo epidemiológico, mas como dispositivo cultural e político de regulação das condutas6. Ao mesmo tempo em que indicava quem deveria ser monitorado, também sinalizava quem era socialmente “seguro” e, portanto, não sujeito às mesmas formas de suspeição3,14,15,16,17.
Os médicos, conforme ilustrou a Figura 2, eram profissionais e interlocutores habitualmente requisitados para comentar os óbitos na imprensa. Similarmente, e do ponto de vista da autoridade, isso ocorria, em grande medida, pois, embora entre 1986 e 1990 o conhecimento científico disponível acerca da AIDS fosse ainda incipiente e os recursos tecnológicos, escassos, médicos eram figuras tradicionais que detinham prestígio, legitimidade e hegemonia no campo da saúde44,45,46,47,48,49. Em contrapartida aos tratamentos eficazes, era pujante o conhecimento clínico sobre a doença ao final da década de 1980, que avançava ao combinar discursos sobre o sexo desregrado e não-reprodutivo, e práticas sexuais e eróticas não-normativas ¬––– o sexo anal, e.g., comum entre segmentos homossexuais e bissexuais49,50,51,52. A centralidade da clínica, em última instância, e dos médicos, em particular, correspondia ao que especialistas nos campos da história da medicina, sociologia e saúde coletiva observaram pelo conceito de medicalização do social44,45,46,47.
Dada a convicção do discurso médico e sua expertise, a aparição destes profissionais no curso da história da AIDS remontava a um tipo de medicalização do social em que o cuidado, a vida sexual, o controle de infecções, a saúde e o próprio trabalho médico encontravam-se imiscuídos em uma relação de autoridade terapêutica e de confiança que, em muitos casos, era indistinta da própria noção de “ciência”7,44,45,46,47. Aqui não se trata das relações microssociológicas de confiança estabelecidas entre médicos e pacientes, mas das relações macrossociológicas formadas a nível do Estado e da sociedade44. Esse enquadramento mais amplificado permite compreender, em convergência à abordagem de Donnangelo44, o papel da medicina enquanto dispositivo de poder. Isto é, um tipo de dispositivo ou tecnologia capaz de normatizar diferenças e desvios, e adaptar a linguagem moral socialmente corrente para preceitos clínicos e científicos universais28,35,44.
Nesse aspecto, argumentamos que os diagnósticos sobre a causa-mortis publicizados pela imprensa envolviam muito mais do que o corpo adoecido, ou sem-vida8. E a eles se vinculava um processo de trabalho complexo cuja técnica e experiência profissional dos médicos são transformadas na medida em que passam a ser instadas por emergências sanitárias e sociais indissociadas da prática médica8. Do ponto de vista epidemiológico, Ayres2 observou que, desde os anos 1970, em especial, a clínica assistiu a uma paulatina incorporação do conceito de risco, em que o objeto da medicina não envolvia apenas os adoecimentos, tampouco a mera divisão binária entre saúde-e-doença. O foco passou a ser, justamente, as condições de emergência dos fenômenos bio-patológicos, em que o conceito de doença é fatorado pelo de risco2.
Do ponto de vista sociológico e histórico, esse deslocamento não foi neutro. Como aponta Mamo54, toda linguagem acerca do risco é também uma linguagem política: decidir o que conta como “arriscado” envolve disputas epistemológicas e institucionais que definem os padrões pelos quais a vida passa a ser governada. O risco não opera como um saber em si, mas como um dispositivo científico que traduz as doenças e as incertezas a elas associadas em termos probabilísticos e gerenciais2. Tal tradução é feita, sobretudo, pela clínica, que transforma os indícios de sofrimento em categorias médico-científicas legitimadas29,30,35,44,45. Essa tradução nunca é apenas técnica: envolve sempre enquadramentos de raça, gênero, sexualidade e classe social, que se entrelaçam na definição de quem carrega, ou não, determinados riscos26.
Nos anos 1980 e 1990, esse movimento se intensificou com a epidemia de HIV/AIDS e a expansão das estratégias de rastreamento do câncer54. O conceito de risco passou a ser central tanto na organização de políticas preventivas quanto na produção de diagnósticos clínicos, funcionando como um marcador que articulava ciência, moralidade e biopolítica2,54.
No caso da AIDS, a linguagem do risco revelou seus contornos sociais: entre homens gays, prostitutas e usuários de drogas injetáveis, o risco era rapidamente associado à prática sexual e ao uso de drogas; já entre homens e mulheres heterossexuais, sobretudo de classe média, diagnósticos de “câncer” – como o Sarcoma de Kaposi – muitas vezes substituíam a nomeação direta da doença, evidenciando a recusa da medicina em associar práticas heterossexuais ao risco de infecção1,5,6,51,52. Esse descompasso mostra que o risco, como categoria, não descreve simplesmente fenômenos biológicos, mas estrutura um campo semântico e moral que organiza tanto o acesso à investigação diagnóstica quanto as formas de prevenção e cuidado54.
Assim, ao longo do tempo, o risco transformou-se em um conceito chave na medicina moderna: de ferramenta epidemiológica, passou a ser também marcador moral, categoria política e eixo de gestão populacional2,54. A biomedicalização do risco, descrita por Rose46, opera ao deslocar o olhar da doença para seus precursores moleculares e genéticos, intensificando o monitoramento e o controle sobre corpos antes mesmo da manifestação clínica. Entre os anos 1980 e 1990, a prevenção do HIV/AIDS e do câncer ilustra de forma exemplar esse processo: as incertezas diagnósticas sobre a AIDS se entrelaçavam às certezas biomédicas acerca do câncer, constituindo um campo de disputas no qual os corpos eram diferenciadamente visibilizados e governados54. Nesse sentido, o risco é menos uma medida objetiva e mais uma categoria que, ao ser historicamente modulada, articula ciência, moralidade e poder17,20,26.
De tal modo, e se o conceito de risco no auge das mortes é originado pela conformação de um vocabulário que estigmatizava determinadas populações como mais suscetíveis à AIDS, os dados permitem combinar três argumentos: (a) óbitos de homens e mulheres, heterossexuais ou homossexuais, representavam segmentos majoritariamente jovens; tal recorte etário também fez parte de uma predileção geracional em que o interesse em escrutinizar corpos jovens e, consequentemente, a própria sexualidade, era o mote da epidemiologia do risco cujo discurso acerca das práticas não-heterossexuais foi produzido historicamente atrelado à categoria “juventude”; (b) a associação entre sexualidade, juventude, fluidez e sexo aproximava a hipótese de intercontaminações entre segmentos homo e heterossexuais por meio da bissexualidade, tanto nos relatos de mortes por AIDS, quanto naqueles em que a causa-mortis era apresentada como “suspeita [de AIDS]”; e (c) era predominante a percepção que enxergava na bissexualidade uma espécie de “ponte” à doença, ou vetor de transmissão. Enquanto uma categoria comumente percebida como de “trânsito”, a bissexualidade aplacava temores de mistura, ou contato, em que a doença poderia transitar de segmentos “de risco” àqueles culturalmente percebidos como “fora de risco” (Figuras 3 e 4).
O fato de que a AIDS estava mais presente em mortes de pessoas pretas ou não-heterossexuais é menos resultado de uma idiossincrasia, ou condição biológica, do que a constante e repetida atividade de demarcação dessas populações como prováveis reservatórios da doença a partir de deduções morais e processos de convencionalização1 (Figura 4). De teorias sobre a origem do vírus em segmentos homossexuais e não-brancos a experimentos em cluster que esquadrinhavam as interações sociais pela mobilidade sexual, o medo da morte é, certamente, uma forma simbólica de colocar qualquer preferência sexual fora da heterossexualidade sob permanente estado de vigilância, incerteza, ou suspeição moral1,9. A bissexualidade, nesse caso, como uma “categoria em trânsito”, exemplifica a constituição da indefinição como mecanismo de risco ou exposição55. As bases para essa interpretação, evidentemente, devem ser contextualizadas a partir do exame do medo e de suas estruturas simbólicas de classificação da sexualidade, e cuja origem não escapa da noção polar entre heterossexualidade e homossexualidade, como regimes universais do desejo52,53,55,56,57.
Apesar de não ser possível afirmar, tampouco generalizar, categoricamente, que havia uma discrepância etária nos óbitos e que pessoas não-heterossexuais morriam mais jovens, é possível aventar os seguintes pontos a partir dos dados disponíveis: (i) mortes de segmentos mais jovens foram historicamente mais expostas na imprensa hegemônica no contexto da AIDS; (ii) as mortes de pessoas mais jovens eram, ainda, mais suspeitas, porque a elas se vinculavam temores de maior experimentação sexual, fluidez e parcerias amorosas/sexuais, o que conferia, no caso da epidemia, também a associação com relações homossexuais e bissexuais52,53,55,57; (iii) historicamente, segmentos mais velhos foram pouco relacionados à doença, quer porque havia mais resistência para relatar a sexualidade, ou porque as experiências sexuais/amorosas eram vividas sobretudo na encolha, enquanto segmentos mais jovens, frequentemente, eram mais abertos a narrar experiências sexuais. Isso se relaciona, em grande medida, com distinções geracionais na experiência social com a sexualidade57.


Considerações finais


Categorias sociais de gênero, raça/cor, etnia, geração e sexualidade, assim como categorias epidemiológicas e médicas de risco, susceptibilidade e contágio estão imiscuídas em relações de sujeição, autoridade, rasura e assimilação. Ao longo da história, as doenças infectocontagiosas nunca foram definidas apenas pelo saber médico ou científico. Elas também foram compreendidas e classificadas a partir de crenças sociais, culturais e morais, muitas vezes marcadas por medo, culpa e estigma. Em comum, e às vezes em oposição, tais definições constituíram certezas epistêmicas sobre quais seriam as características prevalentes (sociais e demográficas) de um “paciente com AIDS”.
Os dados analisados demonstram, por um lado, a centralidade da medicina na produção das narrativas jornalísticas sobre os óbitos entre 1986 e 1989; por outro, revelam três aspectos sociológicos fundamentais: (i) a emergência da medicina em uma conjuntura em que o conhecimento científico sobre a AIDS era incipiente e as classificações das mortes, imprecisas; (ii) a convergência entre demandas clínicas e científicas por ordenação dos óbitos e as ansiedades terapêuticas por hierarquizar a doença e produzir inteligibilidade, o que reforçou a autoridade da medicina como ciência; e (iii) a ambivalência entre categorias morais e técnicas, que permitiu à medicina mobilizar sua expertise e legitimar classificações marcadas por um jargão sócio-médico híbrido.
Essa ambivalência se materializou sobretudo na categoria “morte suspeita”, que operou como um marcador de indefinição, mas também como uma bio-identidade útil a empreendedores morais que vinculavam a doença ao desvio sexual. Nesse registro, a bissexualidade foi reposicionada como centro de um dilema moral e epistêmico, concebida como risco pela sua associação à fluidez e ao trânsito entre práticas sexuais homo e heterossexuais. Entre homens e mulheres heterossexuais, outros temores — relativos à gravidez, ao consumo de drogas injetáveis, ao sexo recreativo desprotegido e à transmissão perinatal — ganhavam visibilidade, reiterando como a classificação das mortes se apoiava em ansiedades sociais mais amplas.
Finalmente, à luz da crítica à objetividade das categorias médicas e epidemiológicas, é importante destacar que a percepção social acerca da epidemia de AIDS incorpora continuidades e rupturas em relação às visões da década de 1980. As rupturas dizem respeito à ampliação do entendimento sobre as formas de infecção, à relativa despatologização do desejo e ao reconhecimento da AIDS como uma doença crônica tratável, o que contribuiu para reduzir parte do estigma. As continuidades, entretanto, permanecem visíveis em formas interseccionais de discriminação, traduzidas em medo, vergonha e culpa, sobretudo entre populações que já carregam o peso histórico do estigma racial, de gênero, de sexualidade e de classe social.
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Gugliotti, JP, Schraiber, LB. Suspicious Death: stigma in AIDS reports in the Brazilian press through medical discourses (1986–1989).. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/Nov). [Citado em 05/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/en/articles/suspicious-death-stigma-in-aids-reports-in-the-brazilian-press-through-medical-discourses-19861989/19862?id=19862



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