0261/2025 - TENSIONS OF SOCIAL HUMAN RIGHTS IN ENSURING ACCESS TO MEDICINES.
TENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS SOCIAIS NA GARANTIA DO ACESSO A MEDICAMENTOS.
Author:
• Miriam Ventura - Ventura, M - <miriam.ventura@iesc.ufrj.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8520-8844
Abstract:
Ensuring access to medicines is a state human rights (HR) obligation derived from the right to health, interdependent and interrelated with other HR, such as the right to enjoy the benefits of scientific progress and the right to protection of intellectual property. The structures and relationships of international politics have been affected by intense global trade flows, rules, and institutional dynamics that reduce the responsiveness of states and increase vulnerability to preventable disease and death. The study critically analyzes the regulations of the United Nations International Health System, responsible for monitoring, in three categories: Innovation, scientific research and intellectual property; Market, price and affordability; Interventions in health systems. There is a minimization of the ethical-political perspective of human rights, the protection of people and vulnerable populations, the social function of intellectual property and scientific progress in access to medicines. The regulations express concerns pertinent to human rights, but adopt liberal measures restricted to economic efficiency and rationing in favor of the sustainability of the system, which prove to be ineffective in guaranteeing access to health.Keywords:
Human Rights, Global Health, Access to Medicines, Internacional Legislation and JurisprudenceContent:
Introdução
A imprescindibilidade do acesso a medicamentos para a implementação de uma boa política de atenção à saúde tem sido um dos temas principais dos governos e ativismo social desde os anos 90, nas respostas globais à epidemia de HIV/Aids 1,2. O movimento por Justiça Sanitária Global obteve avanços importantes na interlocução entre DH e Saúde3 e no fortalecimento do Sistema das Organizações das Nações Unidas (ONU). Ampliou-se os instrumentos e mecanismos de monitoramento, apoio técnico e responsabilização dos Estados-Nacionais no cumprimento de parâmetros internacionais de proteção4. Há uma “jurisdicionalização dos direitos humanos” com repercussão no âmbito do Direito interno, inclusive, constitucional brasileiro4.
O direito ao acesso a medicamentos tem sido construído a partir da estrutura analítica do direito humano à saúde do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) 4. No Brasil, a lei constitucional, de 1988, também o insere no direito social à saúde, e regulamenta a Política de Medicamentos, Assistência Farmacêutica (AF) e o acesso universal no Sistema Único de Saúde (SUS) 5. Observa-se o incremento e a qualificação contínuo de um conjunto de ações de AF para o acesso oportuno a medicamentos seguros, eficazes, efetivos e de qualidade5.
Apesar dos avanços, constata-se que as políticas, regras e instituições existentes ainda são as principais responsáveis pelas privações e desigualdades no acesso a medicamentos6,7. Nem o mercado nem os Estados têm respondido às necessidades de saúde da população causando sofrimento e mortes evitáveis6. Evidenciam-se disparidades econômicas e tecnológicas, escassez e desigualdades entre países e grupos no acesso a medicamentos, com a ampliação da vulnerabilidade aos adoecimentos e redução da capacidade de reação e resposta dos Estados-nacionais no cumprimento de suas obrigações6,7,8,9. O acesso às novas tecnologias na saúde além da vinculação com os DH 8,10 constitui uma questão de governança da Saúde Global (SG) subordinada às dinâmicas, estruturas e relações políticas internacionais7,11,12.
Embora outros fatores sejam determinantes no enfrentamento da problemática posta, aponta-se três como principais: a carência de inovações e pesquisa para determinadas doenças que incluam as necessidades dos países mais pobres; a inacessibilidade em relação ao preço dos produtos e o peso do direito de patentes para o acesso aos produtos.8,9,12
O apartheid das vacinas e o acesso aos recursos de saúde na pandemia Covid confirmou dramaticamente as iniquidades globais, as profundas desigualdades entre países ricos e pobres e a desconsideração dos DH no processo de negociação internacional 9, 11, 12. O confronto entre saúde e comércio tem se repetido nas discussões nas assembleias mundiais da saúde sem medidas adequadas para a efetivação do acesso a medicamentos, há, pelo menos, duas décadas 11.
Encaminhar as tensões normativas na efetivação do direito ao acesso a medicamentos requer ir além da estrutura do direito social à saúde (art. 12). Exige adentrar na estrutura analítica dos direitos de usufruir dos benefícios do progresso científico (art. 15, 1 “b”) e o de proteção da propriedade intelectual (patentes) art. 15, 1 “c”, todos do PIDESC, e buscar a compatibilização dos conteúdos e obrigações de DH em conflito no âmbito global13 e nos países14.
Há evidências sobre a importância de se adotar abordagens de DH para reduzir as iniquidades 15, definir prioridades em saúde 16 e formular parâmetros obrigatórios a serem adotados pelos países. O uso dos DH por lideranças latino-americanas e do Sul Global tem sido relevante e efetivo para os avanços internos e no contexto global17. O fortalecimento do movimento por justiça sanitária global baseado nos princípios da solidariedade e inclusão social3 pode sedimentar à reconstrução de instrumentos e mecanismos jurídicos, apontados como determinantes políticas e legais na saúde18.
A partir desses pressupostos, desenvolveu-se uma análise inédita e crítica das normativas internacionais de três órgãos do Sistema DH para a compreensão da problemática.
Métodos e Materiais:
Trata-se de pesquisa documental com revisão de literatura não-sistemática que tem como objeto normativas do sistema internacional de DH das Nações Unidas sobre os enunciados dos art. 12, art. 15, 1 “b” e art. 15, 1 “c”, todos do PIDESC, relacionadas ao acesso a medicamento.
Os mecanismos internacionais de direitos humanos podem ser divididos em duas categorias: convencionais e não convencionais. Os convencionais decorrem dos Pactos de DH e são constituídos para fiscalizar o cumprimento das obrigações pelos países signatários. Os não convencionais são mecanismos criados por órgãos das Nações Unidas que não decorrem diretamente dos Pactos e tem o propósito de investigar, promover e proteger os DH de todas as pessoas, incluindo, a de países não signatários de tratados específicos.19
Elegeu-se dois mecanismos gerais: Comentários Gerais do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em inglês CESCR, convencional; e as Resoluções do Conselho de Direitos Humanos, não convencional. E um específico, as Resoluções da Assembleia Mundial de Saúde.
Os Comentários Gerais do CESCR contêm a interpretação de dispositivos e diretrizes para a implementação dos direitos e políticas de DH para diversas áreas e diferentes sujeitos de direitos e decorrem dos Pactos. O primeiro Comentário Geral foi publicado no ano de 1989 e o último em janeiro de 2023, um total de 26 documentos e selecionados 5 (cinco) 20, 21, 22, 23,24.
O Conselho de Direitos Humanos (CDH) foi criado em 15/03/2006 e entre os mecanismos disponíveis estão os relatórios especiais temáticos, não convencionais. O propósito é investigar questões ou situações específicas, especialmente de “grupos vulneráveis e marginalizados” e abrange todos os países, inclusive os não signatários de tratados específicos. Esse procedimento especial para a saúde foi constituído no ano de 2002, da Comissão de Direitos Humanos, que antecedeu o CDH. Foram selecionados 14 (quatorze) documentos retornados na busca do termo “acesso a medicamentos”, disponível no próprio sistema do Conselho. Na leitura em profundidade, foram selecionados quatro documentos pertinentes ao objetivo do estudo25,26,27,28.
Por fim, realizou-se a busca nas Resoluções da Assembleia Mundial de Saúde, que ocorrem anualmente, considerando o caráter deliberativo dos documentos e que a OMS é a agência técnica e política. Foram selecionados 6 (seis) documentos 29,30,31,32,33,34:
Para análise do material utilizou-se o método da interpretação jurídica sistemática35, que leva em conta o sistema em que se insere o documento identificado, buscando a concatenação entre as instâncias e disposições pertinentes ao mesmo objeto.
Mapeada as principais preocupações e recomendações a respeito do conteúdo normativo das obrigações do direito ao acesso a medicamentos, realizou-se a discussão dos achados à luz da literatura crítica de Saúde Global e Direitos Humanos selecionadas afastando-se da interpretação hermenêutica tradicional jurídica, que não considera elementos exteriores.
A apresentação dos resultados e discussão foram classificados em três conjuntos temáticos: Inovação, pesquisa científica e propriedade intelectual; Mercado, preço e acessibilidade econômica; Intervenções nos sistemas de saúde e cobertura universal de saúde.
A principal limitação da pesquisa qualitativa documental realizada é a impossibilidade de generalização, considerando que os temas podem ter sido abordados em outros órgãos e tipos de documentos do sistema ONU. Sua importância está em adensar a compreensão da problemática nas fontes selecionadas, que dada a abrangência e a especificidade das instâncias selecionadas e a natureza deliberativa dos documentos, foi possível estabelecer características gerais das normativas.
Inovação e pesquisa científica e a propriedade intelectual no acesso a medicamentos:
O Comentário Geral n. 17/2006 inaugura a discussão sobre a proteção da propriedade intelectual reafirmando a garantia do art. 15, 1 (c) do PIEDSC, como um DH a ser considerado nas leis dos países, incluindo os medicamentos. O documento expressa preocupação com os desequilíbrios constatados entre os interesses privados e o público no que se refere ao alcance do DH ao amplo acesso aos benefícios do progresso científico (art. 15, 1, (b)) 23.
O Comentário Geral n.º 25/2020 trata tanto do direito à propriedade Intelectual quanto ao de usufruir do progresso científico. A partir das premissas da função social da propriedade intelectual e do progresso científico como produto social, legitima as limitações à propriedade, desde que necessárias para a promoção do bem-estar geral (art. 4, PIDESC). Ressalta que devem ser adotadas alternativas menos restritivas possíveis e compensações que permitam a retribuição do trabalho dos autores. Quanto ao direito aos benefícios do progresso científico são trazidas preocupações relacionadas à Ciência e aos DH, como: a de conservar, difundir (15 (2)) à ciência; respeitar a liberdade de pesquisa científica (15(3)) e promover a cooperação internacional (15(4)). 25
O principal documento da OMS sobre o tema é a Estratégia global e plano de ação sobre saúde pública, inovação e propriedade intelectual (GSPOA) 31, de 2015, que traz uma nova perspectiva relacionada à inovação e ao acesso aos medicamentos. O documento elege oito elementos para promover a inovação, construir capacidade, melhorar o acesso e mobilizar recursos. São eles: 1 – priorizar o desenvolvimento e a pesquisa com base nas necessidades de saúde; 2 – promover o desenvolvimento e a pesquisa; 3 - construir e melhorar a capacidade inovadora; 4 – utilizar a transferência de tecnologia; 5 - aplicar e gerir a propriedade intelectual de forma a contribuir para a inovação e promoção da saúde pública; 6 - melhorar a entrega e o acesso aos recurso; 7 - promover mecanismos de financiamento sustentáveis; 8 - estabelecer e monitorar sistemas de informações e produzir relatórios 31. Em maio de 2022, a resolução WHA75.14 estendeu o prazo para a implementação do GSPOA de 2022 a 2030, para ser coincidente com a Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (SDG2030)
No ano seguinte, a Assembleia Mundial da Saúde da OMS aprovou duas resoluções32,33 complementares à GSPOA, que destacavam a escassez global de medicamentos pediátricos e o desafio de proporcionar cuidados de saúde a esta população, recomendando a adoção de medidas que promovessem investigações orientadas para as necessidades infantis32,33.
O conflito de interesses é assunto transversal nos documentos da OMS31,32,33,34 e do CESCR23, 25 e apontam a obrigação dos Estados a adotarem medidas que previnam conflitos presentes ou potenciais na atuação e práticas de pesquisadores científicos, consultores e formuladores de políticas.
A carga crescente de doenças não transmissíveis e negligenciadas, a identificação de surtos patógenos com potencial epidêmico, a escassez de alternativas (novas vacinas e medicamentos) e a capacidade dos sistemas de saúde na prevenção e respostas são destacadas pela OMS31. A recomendação é a busca de opções de financiamento e preços acessíveis das inovações no atendimento de necessidades específicas locais 31.
Os achados da pesquisa apontam que desde o ano de 2009 têm-se insistido no dever de os países utilizarem as flexibilizações do acordo TRIPs firmado no ano de 2001, na Organização Mundial do Comércio (OMC) 31,32,33. A importância do acordo, impulsionado por um contexto político de forte mobilização pelo acesso a antirretrovirais9, está no estabelecimento de níveis mínimos de proteção à propriedade intelectual no acesso a medicamentos e outros produtos em prol da saúde pública dos países membros da OMC. O acordo foi incorporado às leis internas dos países.
O amplo alcance e implicações do acordo TRIPs fez com que se convertesse em um dos componentes mais controversos do sistema da OMC e na própria OMS36. A avocação de competência desta temática no ano de 2003 pela OMS despertou forte oposição dos países desenvolvidos, que defendiam a exclusividade da OMC 37,38.
Desde então era apontada como improvável que este Acordo exercesse pressão suficiente para os detentores de patente reduzirem seus preços ou negociarem licenças voluntárias 37,38,39. De fato, as flexibilizações tiveram efeitos limitados, notadamente, em países com insuficiente capacidade de produção, viabilizada, por exemplo, pela licença compulsória37, 39. Além disso, o poderoso mercado global tem trazido novas estratégias jurídicas, comerciais e tecnológicas, como os evergreening que buscam prolongar a vida útil de patentes e atrasar a competição dos genéricos, reduzindo ainda mais as possibilidades de produção de genéricos e de ampliar a acessibilidade econômica aos medicamentos 37, 14.
Se a irradiação dos parâmetros de DH na OMC foi uma das mais relevantes realizações dos países em desenvolvimento nos anos 2000, a dinâmica em relação à pesquisa, à produção e à provisão de novas tecnologias de saúde às populações não foi alterada37,38. A fragilidade do Acordo TRIPs tem sido discutida37,39 e foi confirmada na emergência sanitária internacional da Covid-19 40,41. A negativa de efetividade do acordo na situação emergencial posta por parte dos países do norte global, contrários à negociação para licenças voluntárias40,41, violou DH do sul global.
Mercado, preço e acessibilidade econômica aos medicamentos.
A CESCR em seu Comentário Geral n.º 24/2017 trata de forma ampla da relação das atividades empresariais e a realização dos direitos sociais e econômicos, e reafirma a responsabilidade dos países de prevenirem e punirem condutas das empresas que levem ao abuso dos direitos21. Recomenda, por exemplo, a restrição de marketing e anúncios de certos produtos e serviços visando a proteção da saúde pública, e critérios para a aprovação de novos medicamentos dentro dos parâmetros aceitos na comunidade científica internacional. 21
Em 2019 a OMS aprovou a WHA 72.8 que trata especialmente sobre a transparência dos mercados de medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde, e busca a mobilização pública por meio do acesso amplo à informação. Os altos preços dos produtos de saúde e o acesso desigual dentro e entre os países são considerados fatores que impedem o alcance da cobertura universal de saúde.
Além do fortalecimento da regulação do preço, recomendam 34 a ampliação de informações públicas sobre toda a cadeia de valor dos produtos, dos custos com os ensaios clínicos até os preços efetivamente pagos por diferentes atores; do processo patentário e da seleção e aquisição dos produtos pelos países. 34 A publicidade permitirá comparabilidade em diferentes países, favorecendo a negociação entre os governos e as empresas globais, bem como, as avaliações sobre os produtos nos diferentes contextos nacionais e regionais 34.
Para além da acessibilidade econômica dos países aos produtos de saúde, o mercado farmacêutico exerce domínio na pesquisa e no desenvolvimento de inovações cientificas tecnológicas aplicadas à saúde, retroalimentando a dependência dos Estados nacionais ao mercado, com severa limitação do poder decisório governos.
A alternativa proposta de Diretrizes de Direitos Humanos para as Empresas Farmacêuticas em relação ao acesso a medicamentos, desenvolvido pelo Relator John Ruggie no âmbito do CDH no período 2005-201042, representa um avanço no direito internacional ao considerar a responsabilidade das empresas farmacêuticas com relação aos direitos humanos. Todavia, a extensão e o conteúdo dessa responsabilidade ainda se encontra em disputa e pouco consolidada.
Como apontado por Campos38, há dois entendimentos, o de Ruggie que defende a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos sem responsabilidades primárias. Paul Hunt, relator especial da saúde à época, defende a responsabilidade compartilhada, considerando o papel das empresas globais no desenvolvimento de medicamentos. Com base no Comentário Geral n. 14/200024, argumenta que a garantia do acesso a medicamentos de qualidade, acessíveis, disponíveis e aceitáveis, é dependente de uma política empresarial publicamente monitorada e transparente conjugada com ações estatais.
Constata-se que a dinâmica comercial e as parcerias público-privada recomendadas, como vem sendo desenvolvidas, têm produzido uma escassez global de medicamentos e de outros produtos para determinados perfis epidemiológicos - em geral, de países mais pobres – ao mesmo tempo em que os existentes para o tratamento de doenças prevalentes têm se tornado a cada dia menos acessíveis economicamente aos países e as pessoas 33,39. No Brasil, o subfinanciamento crônico e sua agudização têm colocado em risco o próprio direito universal e a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) 47.
A compatibilização de interesses públicos e privados em ambiente de intensa comercialização, práticas de concorrência e monopólios torna-se cada dia mais difícil, merecendo especial atenção da OMS 29,31,32,34. Mesmo nos países desenvolvidos do Norte, as sucessivas crises financeiras e o subfinanciamento do sistema público de saúde tornam o acesso às tecnologias um desafio 44. Aponta-se que as empresas têm utilizado estratégias que envolvem a busca de garantias legais nas instâncias legislativas em prol de seus interesses (“hard law”), e a conformação de relações e situações de colisão ou de cooperação com os Estados e agências internacionais, utilizando-se da “soft law” para criar compromissos e padrões de sujeição dos Estados ao mercado45.
Intervenções nos sistemas de saúde: cobertura universal, medicamentos essenciais e avaliação tecnológica em saúde.
O Conselho de Direitos Humanos, no ano de 2013, destacou o acesso a medicamentos como componente necessário na cobertura universal de saúde, que deve se dar de forma que os usuários não sejam expostos a dificuldades financeiras para sua aquisição, priorizando-se a população pobre e vulnerável26. Entre as estratégias recomendadas enfatizam a utilização de medicamentos genéricos e a distribuição de medicamentos essenciais (preventivos, curativos e paliativos) em nível comunitário; e o uso de critérios técnicos-científicos na avaliação de tecnologias de saúde (ATS) para a seleção dos medicamentos e outros produtos 26. No ano seguinte, em 2014, a OMS, na Resolução WHA67.2230, reitera integralmente essas recomendações.
O conceito de medicamentos essenciais foi desenvolvido pela OMS no ano de 1975 ao tratar do acesso a medicamentos em um informe onde se examinava os problemas dos países em desenvolvimento46. São definidos como aqueles que satisfazem às necessidades prioritárias da população, conforme critérios técnico-científicos de seleção e revisão periódica, e devem servir como base de uma política de medicamentos e de assistência farmacêutica. O alto custo de um medicamento não o excluiu da lista, desde que represente a melhor escolha para uma condição epidemiologicamente relevante, ponderando-se os custos e os benefícios da administração de um novo tratamento em relação a outro já existente47. A OMS prevê a necessidade de listas complementares aos medicamentos essenciais para atender condições patológicas específicas e pouco relevantes epidemiologicamente não previstas como essenciais desde que justificável46.
A ATS foi abordada na WHA60.29, em 2007, para tratar da urgência dos Estados-membros e dos doadores internacionais conterem custos crescentes e estabelecerem prioridades na seleção e aquisição de tecnologias em saúde. A ATS visa definir às necessidades de saúde e garantir o uso eficaz dos recursos. Na ocasião, os países foram convocados a apresentarem planos nacionais que incluíssem sistemas para a avaliação, planejamento, aquisição e gestão de tecnologias em saúde48. A OMS ressalta a necessidade urgente de soluções sistemáticas e eficazes para reduzir as ineficiências apontadas, promover o uso racional de tecnologia e a proteção e precaução em relação à saúde dos usuários
A Resolução WHA 67.2329, em 2014, retomou o debate em razão do relatório mundial da saúde da OMS, que indica o desperdício de até 40% dos gastos com saúde e a necessidade de se avançar na cobertura universal de saúde, destacando Resoluções anteriores sobre: saúde sustentável financiamento, cobertura universal e seguro social de saúde49; uso racional de medicamentos50; sobre tecnologias de saúde48; o papel e responsabilidades da OMS em pesquisa em saúde51; estruturas sustentáveis de financiamento da saúde e cobertura universal 52.
As normativas exigem o controle e a implementação de políticas com prioridades definidas, que dêem cumprimento a obrigações primárias firmadas pelos países nos Pactos Internacionais de DH. Requerem, ainda, planos de ação nacionais que apontem o ônus das doenças para toda a população e deliberem por meio de um legítimo processo participativo, independentemente dos contornos legais adotados para o direito à saúde, seguros públicos ou privados, ou sistemas úniversais públicos53.
Legisladores e formuladores de políticas em todo o mundo enfrentam os imperativos éticos de definirem prioridades de gastos nacionais de forma justa e eficiente para salvaguardar o direito à saúde e outros DH, buscando convergências que se apoiem mutuamente nessa tarefa, a despeito dos conflitos presentes e intrínsecos a este processo53.
A perspectiva tecnológica e tecnocrática das recomendações da OMS vai se incorporando nas instâncias de DH, ao mesmo tempo em que às insuficiências das respostas às escassezes locais e globais se apresentam cotidianamente54. O contexto normativo apresentado requer esforços de mobilização ética-política por mudanças substanciais na estrutura econômica e social para a realização de uma SG e de DH anos, que enfrentem às iniquidades em saúde54, indo além das adequações tecnocráticas, necessárias, mas insuficientes.
Considerações finais:
As bases normativas sobre acesso à saúde foram sendo aprofundadas ao longo dos anos 2000 buscando projetar um sistema justo, integrado, ágil e eficaz, que deve ser acessível a todos e de boa qualidade, ligando fortemente a saúde aos direitos humanos à saúde e à justiça social 55. Os primeiros relatórios especiais da saúde já apontavam uma agenda longa e as dificuldades do percurso na garantia dos DH56.
Nas últimas décadas, a escassez global de medicamentos para determinados perfis epidemiológicos e a inacessibilidade às novas tecnologias nos desafia e se amplia cotidianamente. A Covid-19 expôs as profundas iniquidades na saúde, entre Sul e Norte Global, os dissensos e as falhas no Acordo de flexibilização das patentes e nas parcerias público-privado.
As medidas recomendadas ao longo de décadas mantem à lógica da eficiência econômica em perspectiva liberal, destacando a redução de custos e desperdícios e o uso da ATS orientada pelo racionamento em prol da sustentabilidade dos sistemas de saúde. As listas de medicamentos, protocolos clínicos e diretrizes farmacêuticas passam a ser impositivas, em vez de indicativas e instrumentais às boas práticas de saúde em prol das pessoas.
O direito ao acesso a medicamento como derivativo do direito à saúde e ao progresso científico tensionam as lógicas liberal e social contida nas leis internacionais de direitos humanos e na saúde global. Os documentos analisados privilegiam a concepção econômica liberal, buscando equilibrar oferta e demanda, boas e más evidências, parcerias público-privadas e outros mecanismos que minimizam as dimensões éticos-políticos e jurídicas dos direitos humanos e da justiça social enquanto valores que devem orientar às ações.
A busca de alternativas regulatórias para a garantia do direito ao acesso a medicamentos envolve o resgate da abordagem dos DH como referência ética-política e jurídica. Exige também o fortalecimento do Sistema Internacional de DH, das relações interestatais e da capacidade dos países de governança.
Conclui-se que a eficiência econômica para basear as decisões relacionadas aos direitos é um critério problemático57 que não se pode considerar decisivo, mas deve exercer uma função residual na maximização dos objetivos finalísticos dos DH assentados em razões morais e sociais, nos princípios de solidariedade e inclusão social.
Financiamento: Projeto Jovem Cientista do Nosso Estado. Direitos humanos à saúde e aos benefícios ao progresso científico na judicialização do acesso a novos medicamentos. Articulando o global, nacional e o local. Faperj n.º 201.376/2022. Projeto Pós-Doutorado Júnior/CNPq, Processo nº 150892/2019-5.
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A imprescindibilidade do acesso a medicamentos para a implementação de uma boa política de atenção à saúde tem sido um dos temas principais dos governos e ativismo social desde os anos 90, nas respostas globais à epidemia de HIV/Aids 1,2. O movimento por Justiça Sanitária Global obteve avanços importantes na interlocução entre DH e Saúde3 e no fortalecimento do Sistema das Organizações das Nações Unidas (ONU). Ampliou-se os instrumentos e mecanismos de monitoramento, apoio técnico e responsabilização dos Estados-Nacionais no cumprimento de parâmetros internacionais de proteção4. Há uma “jurisdicionalização dos direitos humanos” com repercussão no âmbito do Direito interno, inclusive, constitucional brasileiro4.
O direito ao acesso a medicamentos tem sido construído a partir da estrutura analítica do direito humano à saúde do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) 4. No Brasil, a lei constitucional, de 1988, também o insere no direito social à saúde, e regulamenta a Política de Medicamentos, Assistência Farmacêutica (AF) e o acesso universal no Sistema Único de Saúde (SUS) 5. Observa-se o incremento e a qualificação contínuo de um conjunto de ações de AF para o acesso oportuno a medicamentos seguros, eficazes, efetivos e de qualidade5.
Apesar dos avanços, constata-se que as políticas, regras e instituições existentes ainda são as principais responsáveis pelas privações e desigualdades no acesso a medicamentos6,7. Nem o mercado nem os Estados têm respondido às necessidades de saúde da população causando sofrimento e mortes evitáveis6. Evidenciam-se disparidades econômicas e tecnológicas, escassez e desigualdades entre países e grupos no acesso a medicamentos, com a ampliação da vulnerabilidade aos adoecimentos e redução da capacidade de reação e resposta dos Estados-nacionais no cumprimento de suas obrigações6,7,8,9. O acesso às novas tecnologias na saúde além da vinculação com os DH 8,10 constitui uma questão de governança da Saúde Global (SG) subordinada às dinâmicas, estruturas e relações políticas internacionais7,11,12.
Embora outros fatores sejam determinantes no enfrentamento da problemática posta, aponta-se três como principais: a carência de inovações e pesquisa para determinadas doenças que incluam as necessidades dos países mais pobres; a inacessibilidade em relação ao preço dos produtos e o peso do direito de patentes para o acesso aos produtos.8,9,12
O apartheid das vacinas e o acesso aos recursos de saúde na pandemia Covid confirmou dramaticamente as iniquidades globais, as profundas desigualdades entre países ricos e pobres e a desconsideração dos DH no processo de negociação internacional 9, 11, 12. O confronto entre saúde e comércio tem se repetido nas discussões nas assembleias mundiais da saúde sem medidas adequadas para a efetivação do acesso a medicamentos, há, pelo menos, duas décadas 11.
Encaminhar as tensões normativas na efetivação do direito ao acesso a medicamentos requer ir além da estrutura do direito social à saúde (art. 12). Exige adentrar na estrutura analítica dos direitos de usufruir dos benefícios do progresso científico (art. 15, 1 “b”) e o de proteção da propriedade intelectual (patentes) art. 15, 1 “c”, todos do PIDESC, e buscar a compatibilização dos conteúdos e obrigações de DH em conflito no âmbito global13 e nos países14.
Há evidências sobre a importância de se adotar abordagens de DH para reduzir as iniquidades 15, definir prioridades em saúde 16 e formular parâmetros obrigatórios a serem adotados pelos países. O uso dos DH por lideranças latino-americanas e do Sul Global tem sido relevante e efetivo para os avanços internos e no contexto global17. O fortalecimento do movimento por justiça sanitária global baseado nos princípios da solidariedade e inclusão social3 pode sedimentar à reconstrução de instrumentos e mecanismos jurídicos, apontados como determinantes políticas e legais na saúde18.
A partir desses pressupostos, desenvolveu-se uma análise inédita e crítica das normativas internacionais de três órgãos do Sistema DH para a compreensão da problemática.
Métodos e Materiais:
Trata-se de pesquisa documental com revisão de literatura não-sistemática que tem como objeto normativas do sistema internacional de DH das Nações Unidas sobre os enunciados dos art. 12, art. 15, 1 “b” e art. 15, 1 “c”, todos do PIDESC, relacionadas ao acesso a medicamento.
Os mecanismos internacionais de direitos humanos podem ser divididos em duas categorias: convencionais e não convencionais. Os convencionais decorrem dos Pactos de DH e são constituídos para fiscalizar o cumprimento das obrigações pelos países signatários. Os não convencionais são mecanismos criados por órgãos das Nações Unidas que não decorrem diretamente dos Pactos e tem o propósito de investigar, promover e proteger os DH de todas as pessoas, incluindo, a de países não signatários de tratados específicos.19
Elegeu-se dois mecanismos gerais: Comentários Gerais do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em inglês CESCR, convencional; e as Resoluções do Conselho de Direitos Humanos, não convencional. E um específico, as Resoluções da Assembleia Mundial de Saúde.
Os Comentários Gerais do CESCR contêm a interpretação de dispositivos e diretrizes para a implementação dos direitos e políticas de DH para diversas áreas e diferentes sujeitos de direitos e decorrem dos Pactos. O primeiro Comentário Geral foi publicado no ano de 1989 e o último em janeiro de 2023, um total de 26 documentos e selecionados 5 (cinco) 20, 21, 22, 23,24.
O Conselho de Direitos Humanos (CDH) foi criado em 15/03/2006 e entre os mecanismos disponíveis estão os relatórios especiais temáticos, não convencionais. O propósito é investigar questões ou situações específicas, especialmente de “grupos vulneráveis e marginalizados” e abrange todos os países, inclusive os não signatários de tratados específicos. Esse procedimento especial para a saúde foi constituído no ano de 2002, da Comissão de Direitos Humanos, que antecedeu o CDH. Foram selecionados 14 (quatorze) documentos retornados na busca do termo “acesso a medicamentos”, disponível no próprio sistema do Conselho. Na leitura em profundidade, foram selecionados quatro documentos pertinentes ao objetivo do estudo25,26,27,28.
Por fim, realizou-se a busca nas Resoluções da Assembleia Mundial de Saúde, que ocorrem anualmente, considerando o caráter deliberativo dos documentos e que a OMS é a agência técnica e política. Foram selecionados 6 (seis) documentos 29,30,31,32,33,34:
Para análise do material utilizou-se o método da interpretação jurídica sistemática35, que leva em conta o sistema em que se insere o documento identificado, buscando a concatenação entre as instâncias e disposições pertinentes ao mesmo objeto.
Mapeada as principais preocupações e recomendações a respeito do conteúdo normativo das obrigações do direito ao acesso a medicamentos, realizou-se a discussão dos achados à luz da literatura crítica de Saúde Global e Direitos Humanos selecionadas afastando-se da interpretação hermenêutica tradicional jurídica, que não considera elementos exteriores.
A apresentação dos resultados e discussão foram classificados em três conjuntos temáticos: Inovação, pesquisa científica e propriedade intelectual; Mercado, preço e acessibilidade econômica; Intervenções nos sistemas de saúde e cobertura universal de saúde.
A principal limitação da pesquisa qualitativa documental realizada é a impossibilidade de generalização, considerando que os temas podem ter sido abordados em outros órgãos e tipos de documentos do sistema ONU. Sua importância está em adensar a compreensão da problemática nas fontes selecionadas, que dada a abrangência e a especificidade das instâncias selecionadas e a natureza deliberativa dos documentos, foi possível estabelecer características gerais das normativas.
Inovação e pesquisa científica e a propriedade intelectual no acesso a medicamentos:
O Comentário Geral n. 17/2006 inaugura a discussão sobre a proteção da propriedade intelectual reafirmando a garantia do art. 15, 1 (c) do PIEDSC, como um DH a ser considerado nas leis dos países, incluindo os medicamentos. O documento expressa preocupação com os desequilíbrios constatados entre os interesses privados e o público no que se refere ao alcance do DH ao amplo acesso aos benefícios do progresso científico (art. 15, 1, (b)) 23.
O Comentário Geral n.º 25/2020 trata tanto do direito à propriedade Intelectual quanto ao de usufruir do progresso científico. A partir das premissas da função social da propriedade intelectual e do progresso científico como produto social, legitima as limitações à propriedade, desde que necessárias para a promoção do bem-estar geral (art. 4, PIDESC). Ressalta que devem ser adotadas alternativas menos restritivas possíveis e compensações que permitam a retribuição do trabalho dos autores. Quanto ao direito aos benefícios do progresso científico são trazidas preocupações relacionadas à Ciência e aos DH, como: a de conservar, difundir (15 (2)) à ciência; respeitar a liberdade de pesquisa científica (15(3)) e promover a cooperação internacional (15(4)). 25
O principal documento da OMS sobre o tema é a Estratégia global e plano de ação sobre saúde pública, inovação e propriedade intelectual (GSPOA) 31, de 2015, que traz uma nova perspectiva relacionada à inovação e ao acesso aos medicamentos. O documento elege oito elementos para promover a inovação, construir capacidade, melhorar o acesso e mobilizar recursos. São eles: 1 – priorizar o desenvolvimento e a pesquisa com base nas necessidades de saúde; 2 – promover o desenvolvimento e a pesquisa; 3 - construir e melhorar a capacidade inovadora; 4 – utilizar a transferência de tecnologia; 5 - aplicar e gerir a propriedade intelectual de forma a contribuir para a inovação e promoção da saúde pública; 6 - melhorar a entrega e o acesso aos recurso; 7 - promover mecanismos de financiamento sustentáveis; 8 - estabelecer e monitorar sistemas de informações e produzir relatórios 31. Em maio de 2022, a resolução WHA75.14 estendeu o prazo para a implementação do GSPOA de 2022 a 2030, para ser coincidente com a Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (SDG2030)
No ano seguinte, a Assembleia Mundial da Saúde da OMS aprovou duas resoluções32,33 complementares à GSPOA, que destacavam a escassez global de medicamentos pediátricos e o desafio de proporcionar cuidados de saúde a esta população, recomendando a adoção de medidas que promovessem investigações orientadas para as necessidades infantis32,33.
O conflito de interesses é assunto transversal nos documentos da OMS31,32,33,34 e do CESCR23, 25 e apontam a obrigação dos Estados a adotarem medidas que previnam conflitos presentes ou potenciais na atuação e práticas de pesquisadores científicos, consultores e formuladores de políticas.
A carga crescente de doenças não transmissíveis e negligenciadas, a identificação de surtos patógenos com potencial epidêmico, a escassez de alternativas (novas vacinas e medicamentos) e a capacidade dos sistemas de saúde na prevenção e respostas são destacadas pela OMS31. A recomendação é a busca de opções de financiamento e preços acessíveis das inovações no atendimento de necessidades específicas locais 31.
Os achados da pesquisa apontam que desde o ano de 2009 têm-se insistido no dever de os países utilizarem as flexibilizações do acordo TRIPs firmado no ano de 2001, na Organização Mundial do Comércio (OMC) 31,32,33. A importância do acordo, impulsionado por um contexto político de forte mobilização pelo acesso a antirretrovirais9, está no estabelecimento de níveis mínimos de proteção à propriedade intelectual no acesso a medicamentos e outros produtos em prol da saúde pública dos países membros da OMC. O acordo foi incorporado às leis internas dos países.
O amplo alcance e implicações do acordo TRIPs fez com que se convertesse em um dos componentes mais controversos do sistema da OMC e na própria OMS36. A avocação de competência desta temática no ano de 2003 pela OMS despertou forte oposição dos países desenvolvidos, que defendiam a exclusividade da OMC 37,38.
Desde então era apontada como improvável que este Acordo exercesse pressão suficiente para os detentores de patente reduzirem seus preços ou negociarem licenças voluntárias 37,38,39. De fato, as flexibilizações tiveram efeitos limitados, notadamente, em países com insuficiente capacidade de produção, viabilizada, por exemplo, pela licença compulsória37, 39. Além disso, o poderoso mercado global tem trazido novas estratégias jurídicas, comerciais e tecnológicas, como os evergreening que buscam prolongar a vida útil de patentes e atrasar a competição dos genéricos, reduzindo ainda mais as possibilidades de produção de genéricos e de ampliar a acessibilidade econômica aos medicamentos 37, 14.
Se a irradiação dos parâmetros de DH na OMC foi uma das mais relevantes realizações dos países em desenvolvimento nos anos 2000, a dinâmica em relação à pesquisa, à produção e à provisão de novas tecnologias de saúde às populações não foi alterada37,38. A fragilidade do Acordo TRIPs tem sido discutida37,39 e foi confirmada na emergência sanitária internacional da Covid-19 40,41. A negativa de efetividade do acordo na situação emergencial posta por parte dos países do norte global, contrários à negociação para licenças voluntárias40,41, violou DH do sul global.
Mercado, preço e acessibilidade econômica aos medicamentos.
A CESCR em seu Comentário Geral n.º 24/2017 trata de forma ampla da relação das atividades empresariais e a realização dos direitos sociais e econômicos, e reafirma a responsabilidade dos países de prevenirem e punirem condutas das empresas que levem ao abuso dos direitos21. Recomenda, por exemplo, a restrição de marketing e anúncios de certos produtos e serviços visando a proteção da saúde pública, e critérios para a aprovação de novos medicamentos dentro dos parâmetros aceitos na comunidade científica internacional. 21
Em 2019 a OMS aprovou a WHA 72.8 que trata especialmente sobre a transparência dos mercados de medicamentos, vacinas e outros produtos de saúde, e busca a mobilização pública por meio do acesso amplo à informação. Os altos preços dos produtos de saúde e o acesso desigual dentro e entre os países são considerados fatores que impedem o alcance da cobertura universal de saúde.
Além do fortalecimento da regulação do preço, recomendam 34 a ampliação de informações públicas sobre toda a cadeia de valor dos produtos, dos custos com os ensaios clínicos até os preços efetivamente pagos por diferentes atores; do processo patentário e da seleção e aquisição dos produtos pelos países. 34 A publicidade permitirá comparabilidade em diferentes países, favorecendo a negociação entre os governos e as empresas globais, bem como, as avaliações sobre os produtos nos diferentes contextos nacionais e regionais 34.
Para além da acessibilidade econômica dos países aos produtos de saúde, o mercado farmacêutico exerce domínio na pesquisa e no desenvolvimento de inovações cientificas tecnológicas aplicadas à saúde, retroalimentando a dependência dos Estados nacionais ao mercado, com severa limitação do poder decisório governos.
A alternativa proposta de Diretrizes de Direitos Humanos para as Empresas Farmacêuticas em relação ao acesso a medicamentos, desenvolvido pelo Relator John Ruggie no âmbito do CDH no período 2005-201042, representa um avanço no direito internacional ao considerar a responsabilidade das empresas farmacêuticas com relação aos direitos humanos. Todavia, a extensão e o conteúdo dessa responsabilidade ainda se encontra em disputa e pouco consolidada.
Como apontado por Campos38, há dois entendimentos, o de Ruggie que defende a responsabilidade das empresas de respeitar os direitos humanos sem responsabilidades primárias. Paul Hunt, relator especial da saúde à época, defende a responsabilidade compartilhada, considerando o papel das empresas globais no desenvolvimento de medicamentos. Com base no Comentário Geral n. 14/200024, argumenta que a garantia do acesso a medicamentos de qualidade, acessíveis, disponíveis e aceitáveis, é dependente de uma política empresarial publicamente monitorada e transparente conjugada com ações estatais.
Constata-se que a dinâmica comercial e as parcerias público-privada recomendadas, como vem sendo desenvolvidas, têm produzido uma escassez global de medicamentos e de outros produtos para determinados perfis epidemiológicos - em geral, de países mais pobres – ao mesmo tempo em que os existentes para o tratamento de doenças prevalentes têm se tornado a cada dia menos acessíveis economicamente aos países e as pessoas 33,39. No Brasil, o subfinanciamento crônico e sua agudização têm colocado em risco o próprio direito universal e a sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) 47.
A compatibilização de interesses públicos e privados em ambiente de intensa comercialização, práticas de concorrência e monopólios torna-se cada dia mais difícil, merecendo especial atenção da OMS 29,31,32,34. Mesmo nos países desenvolvidos do Norte, as sucessivas crises financeiras e o subfinanciamento do sistema público de saúde tornam o acesso às tecnologias um desafio 44. Aponta-se que as empresas têm utilizado estratégias que envolvem a busca de garantias legais nas instâncias legislativas em prol de seus interesses (“hard law”), e a conformação de relações e situações de colisão ou de cooperação com os Estados e agências internacionais, utilizando-se da “soft law” para criar compromissos e padrões de sujeição dos Estados ao mercado45.
Intervenções nos sistemas de saúde: cobertura universal, medicamentos essenciais e avaliação tecnológica em saúde.
O Conselho de Direitos Humanos, no ano de 2013, destacou o acesso a medicamentos como componente necessário na cobertura universal de saúde, que deve se dar de forma que os usuários não sejam expostos a dificuldades financeiras para sua aquisição, priorizando-se a população pobre e vulnerável26. Entre as estratégias recomendadas enfatizam a utilização de medicamentos genéricos e a distribuição de medicamentos essenciais (preventivos, curativos e paliativos) em nível comunitário; e o uso de critérios técnicos-científicos na avaliação de tecnologias de saúde (ATS) para a seleção dos medicamentos e outros produtos 26. No ano seguinte, em 2014, a OMS, na Resolução WHA67.2230, reitera integralmente essas recomendações.
O conceito de medicamentos essenciais foi desenvolvido pela OMS no ano de 1975 ao tratar do acesso a medicamentos em um informe onde se examinava os problemas dos países em desenvolvimento46. São definidos como aqueles que satisfazem às necessidades prioritárias da população, conforme critérios técnico-científicos de seleção e revisão periódica, e devem servir como base de uma política de medicamentos e de assistência farmacêutica. O alto custo de um medicamento não o excluiu da lista, desde que represente a melhor escolha para uma condição epidemiologicamente relevante, ponderando-se os custos e os benefícios da administração de um novo tratamento em relação a outro já existente47. A OMS prevê a necessidade de listas complementares aos medicamentos essenciais para atender condições patológicas específicas e pouco relevantes epidemiologicamente não previstas como essenciais desde que justificável46.
A ATS foi abordada na WHA60.29, em 2007, para tratar da urgência dos Estados-membros e dos doadores internacionais conterem custos crescentes e estabelecerem prioridades na seleção e aquisição de tecnologias em saúde. A ATS visa definir às necessidades de saúde e garantir o uso eficaz dos recursos. Na ocasião, os países foram convocados a apresentarem planos nacionais que incluíssem sistemas para a avaliação, planejamento, aquisição e gestão de tecnologias em saúde48. A OMS ressalta a necessidade urgente de soluções sistemáticas e eficazes para reduzir as ineficiências apontadas, promover o uso racional de tecnologia e a proteção e precaução em relação à saúde dos usuários
A Resolução WHA 67.2329, em 2014, retomou o debate em razão do relatório mundial da saúde da OMS, que indica o desperdício de até 40% dos gastos com saúde e a necessidade de se avançar na cobertura universal de saúde, destacando Resoluções anteriores sobre: saúde sustentável financiamento, cobertura universal e seguro social de saúde49; uso racional de medicamentos50; sobre tecnologias de saúde48; o papel e responsabilidades da OMS em pesquisa em saúde51; estruturas sustentáveis de financiamento da saúde e cobertura universal 52.
As normativas exigem o controle e a implementação de políticas com prioridades definidas, que dêem cumprimento a obrigações primárias firmadas pelos países nos Pactos Internacionais de DH. Requerem, ainda, planos de ação nacionais que apontem o ônus das doenças para toda a população e deliberem por meio de um legítimo processo participativo, independentemente dos contornos legais adotados para o direito à saúde, seguros públicos ou privados, ou sistemas úniversais públicos53.
Legisladores e formuladores de políticas em todo o mundo enfrentam os imperativos éticos de definirem prioridades de gastos nacionais de forma justa e eficiente para salvaguardar o direito à saúde e outros DH, buscando convergências que se apoiem mutuamente nessa tarefa, a despeito dos conflitos presentes e intrínsecos a este processo53.
A perspectiva tecnológica e tecnocrática das recomendações da OMS vai se incorporando nas instâncias de DH, ao mesmo tempo em que às insuficiências das respostas às escassezes locais e globais se apresentam cotidianamente54. O contexto normativo apresentado requer esforços de mobilização ética-política por mudanças substanciais na estrutura econômica e social para a realização de uma SG e de DH anos, que enfrentem às iniquidades em saúde54, indo além das adequações tecnocráticas, necessárias, mas insuficientes.
Considerações finais:
As bases normativas sobre acesso à saúde foram sendo aprofundadas ao longo dos anos 2000 buscando projetar um sistema justo, integrado, ágil e eficaz, que deve ser acessível a todos e de boa qualidade, ligando fortemente a saúde aos direitos humanos à saúde e à justiça social 55. Os primeiros relatórios especiais da saúde já apontavam uma agenda longa e as dificuldades do percurso na garantia dos DH56.
Nas últimas décadas, a escassez global de medicamentos para determinados perfis epidemiológicos e a inacessibilidade às novas tecnologias nos desafia e se amplia cotidianamente. A Covid-19 expôs as profundas iniquidades na saúde, entre Sul e Norte Global, os dissensos e as falhas no Acordo de flexibilização das patentes e nas parcerias público-privado.
As medidas recomendadas ao longo de décadas mantem à lógica da eficiência econômica em perspectiva liberal, destacando a redução de custos e desperdícios e o uso da ATS orientada pelo racionamento em prol da sustentabilidade dos sistemas de saúde. As listas de medicamentos, protocolos clínicos e diretrizes farmacêuticas passam a ser impositivas, em vez de indicativas e instrumentais às boas práticas de saúde em prol das pessoas.
O direito ao acesso a medicamento como derivativo do direito à saúde e ao progresso científico tensionam as lógicas liberal e social contida nas leis internacionais de direitos humanos e na saúde global. Os documentos analisados privilegiam a concepção econômica liberal, buscando equilibrar oferta e demanda, boas e más evidências, parcerias público-privadas e outros mecanismos que minimizam as dimensões éticos-políticos e jurídicas dos direitos humanos e da justiça social enquanto valores que devem orientar às ações.
A busca de alternativas regulatórias para a garantia do direito ao acesso a medicamentos envolve o resgate da abordagem dos DH como referência ética-política e jurídica. Exige também o fortalecimento do Sistema Internacional de DH, das relações interestatais e da capacidade dos países de governança.
Conclui-se que a eficiência econômica para basear as decisões relacionadas aos direitos é um critério problemático57 que não se pode considerar decisivo, mas deve exercer uma função residual na maximização dos objetivos finalísticos dos DH assentados em razões morais e sociais, nos princípios de solidariedade e inclusão social.
Financiamento: Projeto Jovem Cientista do Nosso Estado. Direitos humanos à saúde e aos benefícios ao progresso científico na judicialização do acesso a novos medicamentos. Articulando o global, nacional e o local. Faperj n.º 201.376/2022. Projeto Pós-Doutorado Júnior/CNPq, Processo nº 150892/2019-5.
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