0203/2024 - A Pandemia de COVID-19 e a insegurança alimentar e nutricional na Região Sudeste do Brasil: perspectivas sobre o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)
The COVID-19 Pandemic and food and nutritional insecurity in the Southeast Region of Brazil: perspectives on the National School Feeding Program.
Autor:
• Maria Clara Marinho Rabello - Rabello, M. C. M. - <mariaclara.rabello@estudante.ufjf.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9537-8265
Coautor(es):
• Juliana Márcia Macedo Lopes - Lopes, J. M. M. - <julianamml@ufjf.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3711-3730
• Michele Pereira Netto - Netto, M.P. - <michele.netto@ufjf.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0017-6578
• Renata Maria Souza Oliveira e Silva - Oliveira e Silva, R. M. S. - <renata.oliveira@ufjf.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0274-6602
• Eliane Rodrigues de Faria - Faria, E. R. - <eliane.faria@ufjf.edu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0482-6817
Resumo:
A Pandemia de COVID-19 colocou em risco a segurança alimentar e nutricional dos alunos assistidos pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar, devido a suspensão das aulas presenciais. Este estudo consistiu em analisar como as ações do PNAE foram orientadas por órgãos e instituições públicas nas capitais da região sudeste e como isto pode ter contribuído para o aumento da insegurança alimentar no período pandêmico. Foi realizada uma revisão documental, com análise de documentos oficiais das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) abrangendo a região sudeste, publicadas nos anos de 2020 e 2021, sobre as estratégias orientadas para a continuidade do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Os resultados da pesquisa evidenciaram medidas governamentais tardias e contrárias às diretrizes do programa, que podem ter impactado no aumento da insegurança alimentar e nutricional na região sudeste no ano de 2022 e um possível reflexo das orientações que nortearam a continuidade do Programa Nacional de Alimentação Escolar.Palavras-chave:
COVID-19; Segurança Alimentar e Nutricional; Políticas públicas; Programas de alimentação e nutrição.Abstract:
The COVID-19 Pandemic has put the food and nutritional security of students assisted by the National School Meal Program at risk, due to the suspension of in-person classes. This study consisted of analyzing how PNAE actions were guided by public bodies and institutions in the capitals of the southeast region and how this may have contributed to the increase in food insecurity during the pandemic period. A documentary review was carried out, with analysis of official documentsthe three spheres of government (federal, state and municipal) covering the southeast region, published in 2020 and 2021, on strategies aimed at continuing the National School Meal Program. The research results highlighted government measures that were late and contrary to the program\'s guidelines, which may have had an impact on the increase in food and nutritional insecurity in the southeast region in 2022 and a possible reflection of the guidelines that guided the continuity of the National School Food Program.Keywords:
COVID-19; nutritional status; public policy; nutrition programs;Conteúdo:
A COVID-19 (do inglês: coronavirus disease 2019), infecção viral causada pelo Sars-Cov-2, foi detectada pela primeira vez em dezembro de 2019 na China e se difundiu rapidamente pelo mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em janeiro de 2020, declarou um surto do novo coronavírus, e em março do mesmo ano a OMS anunciou pandemia da COVID-19, devido a identificação de surtos em diversos países. No Brasil, foi publicado o decreto legislativo n° 06 de 20201 reconhecendo a ocorrência do estado de calamidade pública.
Para o seu enfrentamento, seguindo as diretrizes da OMS, os órgãos públicos federais, dentre eles o Ministério da Saúde, estados e municípios receberam autonomia para tentar diminuir o avanço da doença por meio de ações e decretos2. Entre elas estão o distanciamento social, etiqueta respiratória e de higienização das mãos, uso de máscaras, limpeza e desinfeção de ambientes, isolamento de casos suspeitos e confirmados e quarentena dos contatos dos casos de COVID-19, conforme orientações médicas3. Em virtude dessas medidas, as aulas e atividades presenciais foram suspensas em toda a rede de ensino do país, concomitantemente, ocorrendo a interrupção da oferta de refeições no âmbito da alimentação escolar2 .
Por outro lado, sabe-se que a garantia das condições de sobrevivência era essencial para o enfrentamento das mudanças forçadas pela pandemia, devendo ser prioridade para os gestores públicos, particularmente aquelas relacionadas à segurança alimentar e nutricional (SAN) de populações vulneráveis4. Assim, mesmo com as escolas fechadas, a alimentação escolar deveria ser assegurada aos alunos, já que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é uma das principais estratégias de garantia do direito humano à alimentação adequada – DHAA, e em 2021 atingiu um público de 39 milhões de alunos5, sendo protagonista na oferta de alimentos a alunos da rede pública de ensino.
No entanto, não havia, por parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma orientação sobre como as Entidades Executoras do PNAE deveriam proceder no fornecimento da alimentação escolar6. Diante disso, em caráter emergencial, foi publicada a Lei nº 13.987, de 7 de abril de 2020, que alterou a Lei nº 11.947/2009, viabilizando a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com os recursos do PNAE aos responsáveis dos alunos de escolas públicas7. Posteriormente, com o objetivo de orientar o processo de entrega desses alimentos, o FNDE publicou a resolução nº 2, de 9 de abril de 2020, que dispõe sobre a execução do PNAE durante esse período de instabilidade global8.
A partir deste respaldo legal, emergiram dois fatores contribuintes para o aumento da insegurança alimentar e nutricional (InSAN), como a autonomia que a resolução proporciona para as entidades executoras sobre o critério para distribuição de gêneros alimentícios, anulando o caráter universal do PNAE. E a não obrigação do cumprimento da frequência do fornecimento dos alimentos in natura e minimamente processados e adquiridos da agricultura familiar, desrespeitando a lei nº 11.947/2009 – que determina que pelo menos 30% dos recursos repassados pelo FNDE para a merenda devem ser destinados à compra direta da agricultura familiar9, e desrespeitando a Resolução nº 06, de 08 de maio de 2020 – que determina diretrizes acerca do cardápio da alimentação escolar10.
Assim, este estudo teve como objetivo analisar como as ações do PNAE foram orientadas por órgãos e instituições públicas nas capitais da região sudeste e como isto pode ter contribuído para o aumento da insegurança alimentar no período em que foi decretado estado de calamidade pública até o seu término.
Metodologia
Foram analisadas bases de dados governamentais das três esferas de governo: federal, estadual (Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo) e municipal (Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Vitória), utilizando palavras chaves como “PNAE”, “Ações do PNAE na pandemia”, “PNAE e pandemia”. "Distribuição de KITS PNAE”, por meio dos seus respectivos sites oficiais. Além de consultar em sites oficiais de órgãos públicos (Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública) e secretarias estaduais e municipais de educação.
A pesquisa pautou-se em alterações da legislação, como portarias, resoluções, leis, decretos e afins acerca de estratégias governamentais orientadas para proporcionar continuidade ao PNAE durante os anos de 2020 e 2021, assegurando o DHAA aos alunos da rede pública de ensino. Foram incluídas informações publicadas entre os períodos de 20 de março de 2020, quando foi decretado calamidade pública, a dezembro de 2021, quando foi decretado retorno às aulas presenciais.
Verificou-se a análise temática dos documentos em três fases, a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados: a inferência e a interpretação11. Os dados foram organizados conforme o formato das ações orientadas e a esfera governamental. Foram consideradas todas as informações explícitas e implícitas nos documentos analisados e as informações adquiridas foram ordenadas em nível federal, estadual e municipal.
Ao término da análise documental, foi realizado uma análise dos resultados obtidos pelo FNDE publicado no livro “PNAE EM TEMPOS DE PANDEMIA: Ações Inovadoras do Programa Nacional de Alimentação Escolar”12, a fim de verificar quais foram os indicadores da continuidade do PNAE durante a pandemia.
Por fim, foi discutido como os dados da pesquisa sobre a execução do PNAE na região sudeste no período pandêmico relacionam-se com a incidência da insegurança alimentar e nutricional da região e do território nacional, segundo dados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil”13 elaborado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Ademais, também foram discutidas as estratégias adotadas por órgãos públicos e seus possíveis impactos, segundo a literatura nacional e internacional.
Resultados
No contexto da pandemia foram observadas alterações na legislação que rege o Programa Nacional de Alimentação Escolar e foram orientadas diferentes estratégias por órgãos públicos e governos estaduais e municipais para a continuidade do PNAE (quadro 1).
ESTRATÉGIAS GOVERNAMENTAIS: NÍVEL FEDERAL
A resolução n° 02, de 09 de abril de 2020 dispõe sobre a execução do PNAE durante o período de estado de calamidade pública8. Nela consta a publicação da Lei nº 13.987, de 7 de abril de 2020, que altera a Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009, para autorizar durante o período de suspensão das aulas a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, sendo destinados aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica7.
Apesar desta resolução proporcionar continuidade ao PNAE durante a pandemia, ela atribui a responsabilidade aos municípios e secretarias de estado do Brasil a decisão de utilizar os recursos da União durante a suspensão das aulas presenciais ou apenas no retorno delas14, gerando variadas estratégias de execução ou não execução, no território nacional.
As estratégias orientadas para a distribuição dos gêneros alimentícios, no âmbito federal, foram (Resolução n° 02, de 09 de abril de 2020 do FNDE): alimentos adquiridos da agricultura familiar poderiam ser distribuídos em forma de kits, segundo a faixa etária e o período de permanência na instituição; os kits deveriam seguir legislação do PNAE no que se refere a qualidade nutricional e sanitária, bem como respeitar os hábitos alimentares e a cultura local e, preferencialmente, composto por alimentos in natura e minimamente processados, tanto para os gêneros perecíveis como para os não perecíveis; o fornecimento semanal de porções de frutas in natura e de hortaliças deveria ser mantido, sempre que possível; bem como, a aquisição de gêneros alimentícios da agricultura familiar, priorizando-se a compra local8.
ESTRATÉGIAS GOVERNAMENTAIS: NÍVEL ESTADUAL
A nível estadual, o Ministério Público (MP) do estado do Rio de Janeiro publicou a recomendação n°008/2020, em que consta orientações a serem seguidas pela prefeitura municipal do Rio de Janeiro, pela Secretaria Municipal de Educação, pela Secretaria Municipal de Fazenda e Subsecretaria de Orçamento Municipal.
As medidas recomendadas pelo MP foram: abster-se de efetuar gastos com fontes de recursos vinculados à educação para a aquisição de cestas básicas ou kits de gêneros alimentícios durante o período de suspensão das atividades escolares; abster-se de efetuar gastos com fontes de recursos vinculados à educação para o financiamento de cartões-alimentação; garantir a segurança alimentar de todos os alunos matriculados na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, independente do cadastro das famílias em programas de transferência de renda e outros programas assistenciais; garantir o legal e adequado financiamento da política pública de alimentação no município durante o período de suspensão das aulas em razão de calamidade pública; garantir que, do total dos recursos financeiros repassados pelo FNDE, no âmbito do PNAE, no mínimo 30% (trinta por cento) sejam para aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar, entre outras recomendações sobre registros contábeis e contratações15.
Em relação ao Estado de São Paulo, foi realizada uma busca no site institucional do governo estadual de São Paulo, e no ano de 2020 não houveram publicações sobre a distribuição de merenda escolar ou estratégia adotada para a continuidade da alimentação escolar neste ano. Já em fevereiro de 2021, foi publicado que os 3,3 milhões de estudantes da rede estadual de São Paulo poderiam se alimentar presencialmente nas escolas, respeitando o rodízio de aulas; e que 770 mil desses estudantes que estavam em situação de vulnerabilidade social, poderiam realizar diariamente as refeições presenciais nas escolas e receberiam um auxílio de R$55,00 reais por nove meses para garantir sua segurança alimentar e nutricional16.
As orientações publicadas pelo estado do Espírito Santo foram as mesmas adotadas pelo governo federal. Em abril de 2020, o site institucional do governo estadual publicou a cartilha elaborada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e pelo Ministério da Educação, com orientações sobre a execução do PNAE no período de emergência devido à pandemia de COVID-1917. Sendo esta, a única orientação governamental sobre medidas estaduais adotadas para proporcionar continuidade ao PNAE durante a pandemia.
Em Minas Gerais, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais emitiu o Ofício Circular nº 013 em outubro de 2020, assegurando que a partir do dia 7 de abril de 2021 até o término do ensino remoto os pais e os responsáveis de alunos matriculados na rede pública de ensino iriam receber alimentos com recurso do PNAE sendo supervisionados pelo Conselho de Alimentação Escolar.
Há ainda, orientações direcionadas aos gestores públicos, como: utilizar o recurso do PNAE apenas para gêneros alimentícios, não sendo permitido transferência de valor monetário; cita a importância dos municípios do estado de Minas Gerais viabilizarem o fornecimento imediato e contínuo dos gêneros alimentícios para as famílias dos estudantes, que poderá se realizar, dentre outros procedimentos, mediante a distribuição de kits de alimentos; ressalta que a diretriz da alimentação escolar de universalidade deverá ser respeitada; e os Conselhos de Alimentação Escolar (CAE) deverão fiscalizar e acompanhar a distribuição dos alimentos para as famílias e às ações realizadas com recursos do PNAE18.
ESTRATÉGIAS GOVERNAMENTAIS: NÍVEL MUNICIPAL
A prefeitura de Belo Horizonte publicou no site institucional, que a partir do dia 31 de março de 2020 havia iniciado a entrega de cestas básicas para as famílias dos alunos matriculados na rede municipal de ensino, sendo esta realizada mensalmente até o retorno das aulas presenciais. A cesta básica foi composta por 12 itens, arroz, feijão, açúcar, fubá de milho, macarrão parafuso, macarrão espaguete, sal refinado, óleo de soja, mandioca, leite em pó, extrato de tomate e sardinha enlatada, com prazo de validade de 90 dias19.
No site institucional do município de São Paulo não foram encontradas publicações sobre as ações realizadas em 2020. Em 2021, a secretaria municipal de educação de São Paulo publicou uma instrução normativa, SME n° 9, de 16 de abril de 2021, que dispõe sobre as diretrizes para a distribuição de gêneros alimentícios para alunos matriculados na rede municipal de ensino20. Esta instrução normativa resolve que a secretaria municipal de educação forneceria cesta saudável com gêneros alimentícios, que deveria ser composta de alimentos não perecíveis da agricultura familiar acrescido de kits de legumes e frutas.
O município do Rio de Janeiro publicou o decreto n° 47357/2020 em abril de 2020, que assegura o fornecimento do cartão cesta básica aos alunos da rede pública de ensino que estavam inscritos nos programas Bolsa Família ou Cartão Família Carioca. O cartão cesta básica possuía valor de R$ 100,00 (cem reais) com carregamento mensal, e a previsão do abastecimento deste cartão é até a retomada das aulas presenciais21.
Entretanto, por meio de uma ação civil pública, houve cobrança ao Estado e Município do Rio de Janeiro, sendo a demanda central o uso correto dos recursos financeiros da gestão pública para financiar a alimentação escolar. Essa ação foi emitida pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, publicada em 31 de maio de 2020 no site oficial do órgão22.
Em Vitória, no Espírito Santo, por meio do site institucional, a secretaria municipal de educação afirma ter iniciado a distribuição de cestas básicas para as famílias dos alunos beneficiários do PNAE, em abril de 202023. Inicialmente a distribuição adotou a estratégia de atender famílias em situação de vulnerabilidade social.
Quadro 1: Ações para a continuidade do PNAE na pandemia nas três esferas de governo
da região sudeste e suas capitais. (2020-2021).
Quadro 1
DADOS DO FNDE NA REGIÃO SUDESTE
O estudo “PNAE em tempos de pandemia: Ações Inovadoras do Programa Nacional de Alimentação Escolar”, foi realizado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação nas cinco regiões do Brasil, a fim de pesquisar sobre a execução do PNAE no período pandêmico. Na região sudeste, 67,5% (n=1129) das Entidades Executoras (EEx) participaram do estudo, sendo 52,4% (n=592) das EEx de Minas Gerais; 37,6% (n= 424) de São Paulo; 6,1% (n=69) do Rio de Janeiro e 3,9% (n=44) do Espírito Santo12.
Os resultados desse levantamento mostraram que cerca de 47,8% (n= 540) das EEx distribuiu os gêneros estocados, a maioria informou que a entrega de kits de alimentos foi realizada com frequência mensal durante o período de interrupção das aulas, sendo que apenas ? das EEx realizaram a distribuição universal aos escolares12.
Quanto à origem dos recursos utilizados para a distribuição de alimentos, 62,5% (n=855) das EEXs relataram ter realizado as ações com recursos próprios, além do repasse do FNDE. Dentre essas ações com recursos próprios, foram realizadas entregas de kits em domicílios e em pontos de entrega, entregas de refeições prontas e outras atividades12.
Quanto ao início das ações de execução da alimentação escolar, mais da metade das entidades executoras pesquisadas da região sudeste iniciaram as ações em abril, sendo 28,1% (n=966) na primeira quinzena de abril e 28,6% (n=966) iniciaram na segunda quinzena de abril12.
A distribuição de kits, respeitando a faixa etária e modalidade de ensino, como regula o PNAE, foi respeitada em apenas 25,4% (n=972) das EEx da região sudeste. E os parâmetros mais utilizados para definição dos kits foram a disponibilidade de produtos e os custos, sendo os produtos da agricultura familiar utilizados em apenas 4 entidades executoras (n=972) como parâmetro para distribuição de alimentos12.
Além disso, na região sudeste, apenas 49,2% (n= 971) realizaram compra dos gêneros alimentícios com a agricultura familiar no período de suspensão das aulas12. Sendo que no mínimo 30% dos recursos financeiros devem ser usados para a aquisição de gêneros alimentícios diretamente da agricultura familiar (AF), priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e quilombolas, bem como os alimentos orgânicos e/ou agroecológicos, segundo a revisão do marco legal do PNAE9 (Lei nº 11.947, de 2009).
Verificou-se ainda uma distribuição maior de ultraprocessados em relação aos alimentos in natura e minimamente processados. Os itens com maior distribuição na região sudeste foram açúcar, biscoitos doces e salgados, fubá, macarrão, arroz, feijão, óleo e sal. E os itens com menor distribuição foram carnes in natura, peixes enlatados, ovos, verduras, frutas e legumes, segundo dados do livro publicado pelo FNDE12.
Discussão
Os impactos gerados pela pandemia de COVID-19 intensificaram o resultado das crises econômicas e sociais ao redor do mundo, acentuando as iniquidades sociais e ameaçando a Segurança Alimentar e Nutricional de muitos povos. De acordo com o monitoramento realizado pelo Programa Mundial de Alimentação (WFP), mais de 369 milhões de crianças não estavam recebendo alimentação escolar em todo o mundo, por conta do fechamento das escolas adotado por 197 países24 .
Segundo dados do monitoramento do WFP, a Índia foi o país mais afetado, com 90,4 milhões de crianças sem alimentação, seguida do Brasil, com 40,1 milhões24. Apesar da diferença populacional entre Brasil e Índia, o grau em que os países são afetados difere segundo a capacidade das autoridades de responder à crise. Ou seja, são as decisões políticas tomadas pelos governos para enfrentar a crise que determinam, na maioria das vezes, se as desigualdades existentes serão exacerbadas ou se a realização dos direitos humanos será reforçada25.
Segundo a ferramenta FIES, adotada pela FAO para medir a Insegurança Alimentar mundialmente, houve um aumento no total de famílias sem acesso regular à alimentação saudável e de qualidade na América do Sul de 4,6% em 2014 para 15,1% em 202126. Este estudo evidencia o cenário alarmante do aumento da InSAN, no qual o contexto da pandemia se insere.
O Brasil havia saído do Mapa da Fome das Organizações das Nações Unidas (ONU) em 2014 pelo investimento na agenda de Segurança Alimentar e Nutricional iniciado nos anos de 1990. Mas, retornou o cenário de fome no país, e agravou-se com a pandemia de COVID-19 no ano de 2020.
A fome no Brasil retornou a estatísticas que refletem o quadro de desigualdades e de insegurança alimentar e nutricional acirrado no cenário mundial e nacional 26. A crise econômica e sanitária no Brasil contribuiu com o panorama de aumento de famílias em situação de pobreza, e a perda do poder de compra impactou diretamente o acesso destas pessoas a alimentos não só em quantidade, mas também em qualidade27.
No Brasil existe a lei federal n° 11.346 de 2006 que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e define a segurança alimentar e nutricional como “a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”28.
A partir do conceito de SAN, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil realizado pela Rede PENSSAN, coletou dados por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) entre novembro de 2021 e abril de 2022, evidenciando que em termos populacionais, são 125,2 milhões de pessoas residentes em domicílios com Insegurança Alimentar e Nutricional (InSAN) e mais de 33 milhões em situação de fome (InSAN grave)13.
Desta maneira, torna-se evidente as violações ao Direito Humano à Alimentação Adequada. Por isso, são necessários esforços para garantir que a prestação de contas e a garantia de medidas extraordinárias para lidar com a Covid-19 não sejam usadas para aumentar a repressão e proteger os interesses de poucos25.
As políticas públicas são essenciais para a superação dessas desigualdades de acesso a uma alimentação saudável e adequada. No entanto, como alerta Costa Salles, et al (2022)26 a implementação de ações que promovam equidade só podem ser realizadas pelos governos, nenhum outro ator social tem, em tese, a atribuição legitimada de regular as práticas de mercado em uma perspectiva pública, com base em princípios de equidade, saúde e sustentabilidade.
A pandemia de COVID-19 gerou muitos desafios para a continuidade do PNAE, e apesar dos esforços governamentais e não governamentais para a garantia da SAN dos alunos e famílias, a InSAN de crianças e adolescentes apresentaram níveis alarmantes no país, como evidenciado no gráfico 1.
Gráfico 1
Gráfico 1: Níveis de Insegurança Alimentar (IA) nos domicílios do Brasil segundo faixa etária de moradores13;
A região sudeste é a mais habitada do Brasil, sendo composta pelos estados do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. A maior parte da população está nos grandes centros urbanos, o que acentua alguns problemas sociais, haja vista que o ambiente urbano está sujeito às diferentes vulnerabilidades que compõem esse tipo de território29. Destarte, as estratégias orientadoras do PNAE das capitais dessa região são indispensáveis para a garantia do DHAA.
Segundo o Censo da Educação Básica do ano de 2020, a região Sudeste possui o maior número de escolares no Brasil, com 19.428.185 estudantes matriculados, destes 15.172.548 (78,10%) na rede pública, e a maioria em escolas municipais (n = 8.351.180), em área urbana (n=14.560.009)12. Evidenciando, o protagonismo do PNAE na garantia da SAN dos alunos desta região do Brasil.
Todavia, esta mesma região, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), apresenta o maior percentual de insegurança alimentar e nutricional grave (25,7%) em domicílios formados por três ou mais moradores de até dezoito anos de idade, ou seja, residentes que pela idade poderiam ser alunos beneficiários do PNAE.
Logo, no contexto da pandemia, é ainda mais necessário o estímulo do FNDE quanto à prática das orientações descritas nas resoluções pelos estados e municípios, a fim de garantir o Direito Humano à Alimentação Adequada previsto na Constituição Federal de 1988.
Como pode constatar-se na análise documental, o governo estadual e municipal de São Paulo apresentaram iniciativas para a continuidade do PNAE somente no ano de 2021, após um ano de suspensão das aulas. Sendo este estado, aquele que concentra o maior número de estudantes matriculados nas escolas públicas do Brasil, com 52,79%, segundo o Censo da Educação Básica do ano de 202012.
Destaca-se que, o valor da oferta de energia (Kcal) para as refeições dos estudantes do PNAE é de acordo com a faixa etária, e o percentual da necessidade diária a ser atendida é conforme o tempo de permanência na escola30. Entretanto, somente 25,4% das EEx da região sudeste levaram em consideração a modalidade de ensino na escolha dos alimentos e quantidades, e 59,2% das EEx utilizaram o parâmetro nutricional na distribuição dos alimentos12 durante a entrega de kits.
Na pandemia, a região sudeste apresentou o maior percentual (31,7%) de pessoas que não realizaram as três principais refeições do dia (desjejum, almoço e jantar), segundo dados do inquérito VigiSAN13. A maioria da população do sudeste (54,6%) está dividida em níveis de insegurança alimentar e nutricional; 27,2% está em insegurança leve; 14,3% em insegurança moderada e 13,1% em insegurança grave13.
Além disso, a qualidade dos alimentos interfere na Segurança Alimentar e Nutricional dos alunos. Os alimentos considerados saudáveis e seguros, como frutas, verduras, ovos, carnes tiveram as menores porcentagens de oferta nos kits do PNAE. E quando analisamos os percentuais de InSAN moderada e grave no segmento de famílias que responderam à opção “não comprou há 3 meses” para cada um dos alimentos avaliados, foi possível observar que as famílias deixaram de comprar carnes (70,4%), vegetais (63,6%) e frutas (64,0%) foram aquelas que mais vivenciavam a forma mais grave da InSAN, na região sudeste do Brasil13.
Há de se destacar, ainda, a grande oferta de alimentos ultraprocessados na distribuição de kits, impactando a SAN dos alunos e dos agricultores familiares (AF). A baixa adesão (49,2%), segundo dados da pesquisa do FNDE na região sudeste, dos produtos advindos da AF na composição dos kits corrobora com a realidade de 15,6% dos domicílios de AF em situação de InSAN grave13. Amorim et al, (2020) e Costa Proença et al, (2021)6 destacam que a aquisição de produtos da AF é fundamental para a garantia da segurança alimentar e nutricional (SAN) dos escolares e dos agricultores, minimizando o impacto da pandemia no próprio sistema alimentar 6,12,31.
Os gêneros alimentícios distribuídos nos kits, além dos malefícios à saúde e ao desenvolvimento dos alunos, não estão de acordo com as necessidades nutricionais recomendadas pela Resolução CD/FNDE nº 06/2020, que ajusta os macronutrientes e os micronutrientes que deverão ser fornecidos de acordo com a idade e tempo de permanência na instituição de ensino10.
Estes alimentos distribuídos reforçam o panorama brasileiro em que situações de fome e de insegurança alimentar e nutricional convivem com a disseminação global de produtos ultraprocessados, e nos remete a outra vertente da InSAN, a obesidade26. Além disso, corroboram para o aumento da prevalência de Doenças Crônicas Não Transmissíveis, que representam a maior causa de adoecimento e morte da população brasileira.32
Ademais, a entrega de gêneros alimentícios priorizando famílias em situação de vulnerabilidade social, é antagônica ao artigo 2 da Resolução n°38 de 16/07/2009 do FNDE que cita sobre a universalidade do atendimento da alimentação escolar gratuita33.
Também é importante mencionar que pela lei nº 11.947 de 2009, não pode ser empregado o auxílio em dinheiro com os recursos repassados pelo FNDE, visto que estes são destinados exclusivamente à aquisição de gêneros alimentícios9.
Além disso, o repasse em dinheiro também é um fator que contribui para a InSAN dos agricultores familiares. Lourenço, et al (2021)34 destaca que o preço por alimentos saudáveis pago pelas famílias, com o auxílio monetário, seria mais alto. E ao comprar em grande escala pelo município, é possível comprar alimentos de melhor qualidade a um custo menor, além de a aquisição de alimentos em larga escala ampliar parcerias com cooperativas e agricultores locais34.
Cabe ainda considerar que os desafios de enfrentamento da insegurança alimentar e nutricional se complexificam em contextos de crise e de eventos drásticos, como exemplo a pandemia de COVID-1926. Na situação do Brasil, constata-se um cenário ainda mais complexo, por causa de uma ausência de consenso entre governantes, entre atores da sociedade civil e tensões políticas que reduzem a capacidade de concretização de políticas públicas26.
Referências
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Silva, R. T. De O.; Rosas, C. S. .; Silva, J. B. .; Nogueira, G. K. B. .; Rocha, N. M. F. .; Neves, R. A. M. .; Pinheiro, L. G. B. Alimentação escolar em tempos de COVID-19: o papel do centro colaborador em alimentação e nutrição no estado do Rio Grande do Norte. Segur. Aliment. Nutr 2021; 28(00): 021004.
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