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0250/2024 - Adequação da assistência pré-natal ofertada à mulher indígena no estado de Mato Grosso do Sul: características maternas e dos serviços de saúde
ADAPTATION OF PRENATAL CARE OFFERED TO INDIGENOUS WOMEN IN THE STATE OF MATO GROSSO DO SUL: MATERNAL CHARACTERISTICS AND HEALTH SERVICES.

Autor:

• Gislaine Recaldes de Abreu - Abreu, G. R. - <gislaineabreu.ufms@gmail.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8325-5660

Coautor(es):

• Renata Palópoli Pícoli - PícolI, R. P. - <renata.picoli@fiocruz.br, renata.picoli@anhanguera.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3753-6832

• James R. Welch - Welch, J. R. - <jwelchmail@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9094-5491

• Carlos E. A. Coimbra Jr. - Coimbra Jr., C. E. A. - <coimbra@ensp.fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4085-1080



Resumo:

Este estudo teve como objetivo analisar a adequação do pré-natal ofertada à mulher indígena e sua associação com características maternas e do serviço de saúde. Trata-se de estudo transversal, de abrangência estadual, realizado com 461 mulheres indígenas que tiveram parto e/ou receberam atendimento pós-parto imediato, em municípios de Mato Grosso do Sul, entre 2021 e 2022. Elaborou-se um indicador de adequação mínima do pré-natal, sendo classificado como adequado quando a mulher iniciou o pré-natal no 1º trimestre gestacional, realizou ? 7 consultas e teve registrados dos exames de rotina. As informações referentes à prescrição de medicamentos na gravidez foram excluídas deste indicador devido ao seu baixo preenchimento. Para estimar as razões de chance ajustadas e os fatores associados à adequação do pré-natal, utilizou-se modelos de regressão logística. Verificou-se que 67,2% iniciaram o pré-natal no 1° trimestre, 51,8% realizaram ? 7 consultas, e 40,6% tiveram registro dos resultados de exames. Cerca de 1 (uma) a cada 4 (quatro) indígena conseguiu atingir a adequação proposta, as características maternas associadas foram etnia, região de moradia e local de residência. A assistência pré-natal evidenciou iniquidades em saúde, com baixos índices de adequação no pré-natal e piores índices entre as mulheres que moravam em aldeias e acampamentos da região Sul do estado.

Palavras-chave:

Saúde dos povos indígenas, Assistência Pré-Natal, Saúde Materna Serviços de Saúde.

Abstract:

This study aimed to analyze the adaptation of prenatal care offered to indigenous women and its association with maternal characteristics and health services. It is a cross-sectional study, conducted with 461 indigenous women who gave birth and/or received immediate postpartum care in municipalities of Mato Grosso do Sul, between 2021 and 2022. An indicator of minimum prenatal adequacy was developed, being classified as adequate when the woman started prenatal care in the 1st trimester of pregnancy, had ≥ 7 consultations, and had routine exams recorded. Information regarding the prescription of medications during pregnancy was excludedthis indicator due to its low completion rate. To estimate the adjusted odds ratios and factors associated with prenatal adequacy, logistic regression models were used. It was found that 67.2% started prenatal care in the 1st trimester, 51.8% had ≥ 7 consultations, and 40.6% had exam results recorded. About 1 in 4 indigenous women achieved the proposed adequacy; the associated maternal characteristics were ethnicity, region of residence, and place of living. Prenatal care revealed health inequities, with low adequacy rates in prenatal care and worse rates among women living in villages and camps in the southern region of the state.

Keywords:

Health of Indigenous Peoples, Prenatal Care, Maternal Health, Health Services.

Conteúdo:

Introdução

Apesar do destaque dado à saúde materna e infantil nos Objetivos do Milênio (ODM) e do Desenvolvimento Sustentável (ODS), bem como dos esforços globais no sentido de alcançar esses objetivos, a atenção às questões étnico-raciais nessa assistência tem sido limitada 1,2,3. Estudo realizado a partir de dados de 36 países de baixa e média renda traz evidências da persistência de desigualdades sociais que afetam de forma diferenciada minorias étnicas e contribuem com as condições de saúde destas populações 1. Situações envolvendo desfechos desfavoráveis de saúde entre populações indígenas se apresentam de forma contínua assim como a manutenção de piores indicadores 3.
Estas situações são evidentes quando se investiga a saúde materna e infantil dos povos indígenas, caracterizadas por dificuldades de acesso e de realização de um pré-natal adequado, maiores ocorrências de mortalidade materna e infantil, bem como de riscos aumentados para eventos adversos da gravidez 4.
Nesse contexto, a assistência pré-natal constitui um componente indispensável na atenção à saúde das mulheres no período gravídico-puerperal. O pré-natal de qualidade objetiva proporcionar acolhimento à mulher desde o início da gestação, bem como diagnosticar, tratar e controlar morbidades maternas e fetais, assegurando, no fim da gestação o nascimento de uma criança saudável e a garantia do bem-estar materno e neonatal, fator fundamental para se atingir a redução da morbimortalidade materna e perinatal 5,6,7,8.
Dados da Pesquisa Nascer no Brasil evidenciam que, apesar do índice de cobertura da assistência pré-natal, estabelecido pelo Ministério da Saúde como a distribuição percentual de mulheres com filhos nascidos vivos segundo o número de consultas de pré-natal, ser maior que 61,0 % em todas as regiões do país, ao se avaliar os componentes essenciais dessa assistência, como período em que ocorre o início do pré-natal, realização e registro de exames de rotina, os índices de adequação ainda são considerados baixos com importantes diferenças regionais 6. Aspectos estes também observados em estudos anteriores que apontaram a existência de falhas na assistência pré-natal em diferentes contextos, tais como dificuldades no acesso, início tardio do pré-natal, número inadequado de consultas e realização incompleta dos procedimentos preconizados, comprometendo assim a qualidade e efetividade da assistência 7-9.
Nesse cenário, mostra-se significativo o número de mulheres indígenas com dificuldades de acesso a um pré-natal de qualidade, com importantes diferenças na oferta e acesso a essa assistência em vários países do mundo, inclusive no Brasil 2, 4, 10-11.
Essas diferenças ocorrem por inúmeros fatores, como dificuldades de transportes para populações residentes em áreas remotas e rurais; de acesso aos exames preconizados na gravidez e dificuldades de comunicação 10,12-13.
Importante estudo nacional sobre a atenção pré-natal de mulheres indígenas evidenciou cobertura de 90,4%, no entanto, demonstrou falhas na assistência, caracterizadas por início tardio do pré-natal (apenas cerca de 30% iniciaram no 1° trimestre), número inadequado de consultas (somente 16% realizaram 7 ou mais consultas de pré-natal) e baixas solicitações e registros de exames preconizados (glicemia 53,6%, urina 53%, hemograma 56,9% e citologia oncótica 12,9%) e prescrições de suplementação para essa população 11.
Considerando a importância de o pré-natal ser resolutivo e estratégico para a saúde materna e infantil da população indígena, e aliado ao cenário do estado de Mato Grosso do Sul que é o terceiro estado do país com maior número de indígenas residentes, representado por 116.346 pessoas indígenas segundo dados do Censo realizado em 2022 14, o artigo traz como contribuição a identificação das ações voltadas para a gestante indígena, com vistas a aprimorar o cuidado no acompanhamento pré-natal executados pelo Subsistema de Saúde Indígena (SASI-SUS).
Diante do exposto, o objetivo desse estudo foi analisar a adequação do pré-natal ofertado à mulher indígena no Mato Grosso do Sul e sua associação com características maternas e do serviço de saúde.
Métodos
Trata-se de um estudo epidemiológico transversal, de abrangência estadual e desenvolvido em dez (10) municípios do Estado de Mato Grosso do Sul, contemplando doze (12) unidades hospitalares e uma (1) casa de parto normal, no período de 21 de novembro de 2021 a 24 de agosto de 2022.
O Estado de Mato Grosso do Sul tem o 3º maior número de população indígena do país, representado por 116.346 pessoas, o que corresponde a 4,22% da população total do Estado. Nos 79 municípios do Estado houve registro da presença de indígenas, sendo que os municípios de Campo Grande, Dourados, Amambai, Aquidauana e Miranda, tiveram o maior quantitativo de pessoas indígenas 14.
Participaram do estudo mulheres indígenas que residiam em terras indígenas, acampamentos ou comunidades urbanas do Estado de Mato Grosso do Sul, que tivessem tido o parto e/ou recebido atendimento pós-parto imediato em uma das 12 (doze) unidades hospitalares ou 1 (uma) casa de parto, com filho nascido vivo de qualquer peso ou idade gestacional (IG) e que portavam a caderneta da gestante ou ficha perinatal, durante sua internação hospitalar. Foram excluídas da pesquisa mulheres indígenas com tiveram óbito fetal e mulher que sofreu aborto espontâneo ou provocado.
O estudo foi realizado em duas etapas: na primeira, foram selecionados os municípios com uma média mensal de registro de quatro (4) nascidos vivos de mulheres indígenas no Sistema de Informação de Nascidos Vivos (Sinasc) para o ano de 2018 e que tivessem como sede um serviço do SASI-SUS (Polo Base ou DSEI).
Do total de 79 municípios, onze (11) contemplaram esses critérios. Houve uma (1) recusa por parte de um município, totalizando dez (10) municípios investigados, com doze (12) unidades hospitalares e uma (1) casa de parto normal do Estado de Mato Grosso do Sul (MS).
Para o cálculo do tamanho da amostra foi utilizada a equação da amostra aleatória simples sem reposição, com correção para o tamanho populacional, tendo como base o número de nascidos da raça/cor indígena (2.173), no Estado de Mato Grosso do Sul em 2018, registrados no Sinasc, prevalência de 58% de mulheres que realizaram pelo menos sete consultas pré-natal com nível de confiança 95% e erro amostral máximo aceitável de 5%. Foi estimado que, para responder aos objetivos do estudo, seria necessário incluir 320 mulheres indígenas na amostra, além disso, prevendo a ocorrência de eventuais perdas, ao tamanho da amostra foi acrescido em 20% totalizando um mínimo de 384 entrevistas.
A coleta de dados foi realizada em duas etapas: inicialmente as mulheres foram convidadas a participar do estudo por meio de entrevista durante a sua internação, no período de 24 a 48 horas após o parto, para a coleta de dados sobre características socioculturais. Em seguida, as informações sobre a realização do pré-natal foram extraídas da caderneta da gestante ou ficha perinatal, mediante autorização da mulher. Os instrumentos de coleta foram elaborados a partir de documentos oficiais e estudos nacionais sobre atenção pré-natal 5,6, 11,15, 16, que foram previamente testados antes do início da pesquisa. Os dados foram coletados em formato impresso e posteriormente digitados no software REDCap versão 6.17. Por pesquisadores bolsistas previamente treinados e revisados, sistematicamente, por especialistas na área de atenção obstétrica.
As variáveis coletadas na entrevista com a mulher foram: idade, escolaridade, etnia, região e local de moradia; e na caderneta da gestante foram coletados dados referentes às características obstétricas e a realização do pré-natal atual: paridade, data de início do pré-natal, número de consultas, realização e registro do resultado de teste rápido anti-sífilis, teste rápido anti-HIV, exame de VDRL/Sífilis (Venereal Disease Research Laboratory), hemograma, exame de urina (EAS), glicemia de jejum, ultrassonografia obstétrica e prescrição de ácido fólico e sulfato ferroso na gestação, tipo da unidade de saúde em que fez o pré-natal e profissionais envolvidos na consulta pré-natal.
Com relação à região de moradia, os municípios foram categorizados em três regiões do estado de Mato Grosso do Sul: Norte (Miranda, Aquidauana e Sidrolândia), Sul (Amambai, Antônio João, Tacuru, Dourados, Caarapó, Iguatemi), e a capital Campo Grande. Quanto ao local de moradia, foram separados em área urbana e rural.
Foi elaborado o índice de adequação do pré-natal que considerou indicadores adaptados de estudos anteriores 6,11,16, e os critérios propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e Ministério da Saúde 5,15, que atenda aos quatro eixos propostos: Eixo 1: início do pré-natal com até primeiro trimestre gestacional; Eixo 2: número de consultas de pré-natal recomendado para a idade gestacional no momento parto, considerando o calendário de sete consultas, considerando o calendário de sete consultas proposto pela OMS 15. A idade gestacional foi calculada a partir da data da última menstruação, sendo o número de consultas considerado adequado quando a gestante realizou 100% das consultas mínimas previstas para a idade gestacional no momento do parto; Eixo 3: realização e registro do resultado de 1 (um) teste rápido anti-sífilis, 1 (um) teste rápido anti-HIV, 1 (um) Venereal Disease Research Laboratory (VDRL/Sífilis), 1(um) hemograma, 1 (um) exame de urina (EAS), 1 (um) exame de glicemia de jejum e 1(uma) ultrassonografia obstétrica; Eixo 4: prescrição de ácido fólico e sulfato ferroso, na gestação.
Posteriormente, elaborou-se um indicador de adequação mínima do pré-natal, sendo classificado como adequado quando a mulher iniciou o pré-natal no 1º trimestre gestacional, realizou sete ou mais consultas e teve os resultados dos exames de rotina registrados na caderneta da gestante. O Eixo 4 não foi incluído na análise da adequação do pré-natal devido à ausência de registro de dados desse item para 68 das 461 mulheres.
Foi realizada análise descritiva das características maternas e dos serviços de saúde. Para verificar se o ocorreu de forma homogênea de acordo com características maternas (idade, escolaridade, etnia, região e local de moradia) ou do serviço de saúde no qual a mulher fez o pré-natal (tipo da unidade de saúde e profissionais que realizaram as consultas de pré-natal), foram utilizados o teste Exato de Fisher e o teste Qui-Quadrado com 95% de confiança 17.
Para estimar as razões de chance ajustadas e avaliar quais das variáveis estudadas estão associados à adequação do pré-natal entre mulheres indígenas do Mato Grosso do Sul, foram estimados modelos de regressão logística. Na análise multivariada foram avaliados os modelos com todas as variáveis estatisticamente significativas (p<0,05) como modelos brutos.
A pesquisa a foi aprovada na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), sob o número 5393.703/2020.
Resultados
Participaram deste estudo 461 mulheres indígenas. Destas a maioria tinha idade entre 20 e 34 anos (65,7%), era da etnia Guarani (65,5%) e com ensino fundamental (51,8%). Em relação à moradia, 69,0% residiam na região Sul do estado de Mato Grosso do Sul e 86,6% em aldeias localizadas em área rural. No tocante à paridade, mais de dois terços eram multíparas, 85,9% tiveram seu pré-natal realizado em Unidade Básica de Saúde Indígena (UBSI) localizadas em seus territórios e 58,1% foram atendidas por equipe multiprofissional (médica/o e enfermeira/o) (Tabela 1).
A Tabela 2 mostra o índice de adequação do pré-natal, segundo cada eixo de análise. Em relação ao Eixo 1, 67,2% das mulheres iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre gestacional. A maioria destas mulheres tinha ensino médio (75,6%) (p<0,05) e era da etnia Terena, 82,7% (p<0,05) e residia na região Norte do estado de Mato Grosso do Sul (89,8%) (p<0,05).
Para o Eixo 2, um pouco mais da metade (51,8%) das mulheres realizou sete ou mais consultas. Destaca-se que 60,8% (p<0,05) das gestantes assistidas por equipe multiprofissional realizaram o número adequado de consultas (Tabela 2).
No tocante ao registro dos resultados de exames de rotina no pré-natal (Eixo 3) menos da metade (40,6%) das mulheres atingiu o índice de adequação. Dentre essas, as da etnia Terena tiveram quase que o dobro de adequação no registro dos resultados de exames de rotina no pré-natal (57,9%) (p<0,05) quando comparadas às mulheres Guarani, 31,5%. As mulheres que residiam na região Norte do estado de Mato Grosso do Sul (57,5%) ou em Campo Grande (56,5%) (p<0,05) conseguiram atingir um índice adequação para os exames de rotina, que representa quase o dobro do obtido para as que residiam na região Sul do estado de Mato Grosso do Sul (33%). O Eixo 4 alcançou maior proporção para o índice de adequação (93,6%). As mulheres da etnia Guarani, que residiam na região Sul do estado de Mato Grosso do Sul, em área rural e que foram atendidas em UBSI atingiram mais de 95,0% de adequação (p<0,05) (Tabela 2).
Quanto à adequação mínima do pré-natal, observou-se que das 461 mulheres analisadas somente para 103 destas o pré-natal foi considerado adequado. Quanto à etnia, menos de 17,0% das mulheres Guarani conseguiu atingir, e esse percentual foi mais que o dobro para as Terena (34,0%) (p< 0,05).
Cerca de 35,0% (p < 0,05) das mulheres que residiam na região Norte do estado de Mato Grosso do Sul e um terço (1/3) (p< 0,05) das que residiam em área urbana foram classificadas como adequação mínima do pré-natal. Verificou-se que 27,1% (p < 0,05) das mulheres indígenas que foram atendidas por equipe multiprofissional realizaram o pré-natal adequado (Tabela 3).
Os modelos brutos de regressão logística evidenciam que, dentre as características maternas associadas à adequação mínima do pré-natal estão a etnia, região e local de moradia e ser atendida por equipe multiprofissional. Mulheres Terena apresentam cerca de 2,6 vezes mais chances (IC 95%: 1,6-4,0) quando comparadas às mulheres Guarani. Mulheres que residiam na região Norte do estado de Mato Grosso do Sul tem 2,5 vezes mais chances (IC 95%: 1,6-4,1) do que as que residiam na região Sul do estado de Mato Grosso do Sul, assim como as que residiam em área urbana tinham suas chances aumentadas em 1,8 vezes (IC 95%: 1,0-3,3) quando comparadas às da área rural. Identificou-se que ser atendida por uma equipe multiprofissional aumentou quase duas vezes (IC 95%: 1,2-3,1) as chances de adequação mínima do pré-natal (Tabela 3).
Os resultados das razões de chances, obtidas por meio do modelo ajustado, indicaram que mulheres indígenas que residiam na região Norte do estado de Mato Grosso do Sul tinham cerca de cinco vezes (IC 95%: 2,6 - 8,4) mais chances de adequação mínima do pré-natal, quando comparadas às mulheres que residiam na região Sul. Assim como, mulheres atendidas por equipe multiprofissional tinham cerca de quatro vezes mais chances de adequação do pré-natal quando comparadas as que foram atendidas por uniprofissional (médico ou enfermeiro) (Tabela 4).

Discussão

O presente estudo demonstrou iniquidades em saúde no índice de adequação da assistência pré-natal ofertado às mulheres indígenas de Mato Grosso do Sul, já que somente 1 (uma) a cada 4 (quatro) indígena (25% da população total estudada) teve seu pré-natal considerado adequado.
Trabalhos semelhantes a este estudo, realizados a partir de dados da pesquisa nascer no Brasil avaliaram a adequação do pré-natal a partir do trimestre gestacional quando foi iniciado o pré-natal, número total de consultas realizadas e exames preconizados (mesmos indicadores usados neste estudo) e mostraram valores de adequação acima de 60% 6, 8. Resultados muito acima dos aqui encontrados.
Neste estudo os melhores índices foram observados na região Norte do estado de Mato Grosso do Sul, na área urbana e para as mulheres da etnia Terena e as atendidas por equipe multiprofissional. Embora, o início do pré-natal e o número de consultas tenham apresentado índice de adequação acima de 50%, seus percentuais ficaram abaixo do recomendado por instituições nacionais e internacionais 5,15.
Os achados do estudo foram superiores ao identificado no Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, cujo percentual de mulheres indígenas que iniciaram o seu pré-natal no primeiro trimestre foi apenas 33,0% e cerca de 21% delas tiveram ? 7 consultas 11. Estudo evidenciou que entre as mulheres não indígenas, o percentual de adequação de consultas foi de 73%, no conjunto do território nacional 18.
Os achados evidenciaram situações de desigualdades em saúde, caracterizadas por maior adequação no início do pré-natal no primeiro trimestre, entre as indígenas com maior escolaridade e que pertenciam a etnia Terena. A maior adequação de consultas ocorreu entre as indígenas que tiveram o pré-natal atendidas por médicos e enfermeiros. Destaca-se, que as desigualdades apresentam estreita relação com as piores condições de acesso à assistência pré-natal 9, e mostram-se frequentes em países em desenvolvimento e em mulher com menor idade e baixa escolaridade 4,18.
É reconhecida a importância do início do pré-natal no primeiro trimestre e do número adequado de consultas para o desenvolvimento de uma gestação saudável e segura para o binômio mãe e feto, e para a garantia do acesso a diagnóstico e intervenções em tempo oportuno para prevenir possíveis complicações na gestação 6,10, 11,15.
A adequação do registro de resultados de exames de rotina mostrou lacunas relativas à qualidade da assistência, visto que menos de 50% das mulheres indígenas tiveram adequação dos registros de exames, o que pode indicar que os exames não foram realizados ou não foram registrados pelo profissional de saúde, na caderneta da gestante. Ressalta-se que a incompletude de registros de exames na caderneta da gestante indígena, pode trazer implicações negativas para a assistência pré-natal, sobretudo pela importância do direito à informação à mulher para orientar o cuidado adequado na gestação e para a redução da morbimortalidade materna e infantil 11,19.
Este índice de adequação mínima do pré-natal mostrou-se pior para as indígenas da etnia Guarani, que viviam na região Sul de Mato Grosso do Sul o e que foram atendidas em UBSI, isto pode ter implicado em dificuldades de acesso aos serviços laboratoriais, por dificuldades de integração do Subsistema Atenção à Saúde Indígena (SASI) com os gestores de saúde municipais, na pactuação do quantitativo da oferta de exames do pré-natal necessários para atender a população indígena e ainda problemas de logística de transporte das gestantes indígenas das aldeias para os municípios de referência para a realização dos exames.
Quando se trata de avaliação da qualidade da atenção ao pré-natal no Brasil, há inúmeros estudos que reforçam a importância da realização de exames laboratoriais no acompanhamento da gestação e na prevenção de possíveis complicações e/ou diminuição de riscos para o binômio mãe e feto 6, 11, 16.
O quarto eixo analisado foi a prescrição de medicamentos durante a gestação (ácido fólico e sulfato ferroso), tendo alcançado elevados índices de adequação, semelhantes ao encontrado entre as gestantes não indígenas 10,20, e mais que o dobro do encontrado no Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas 11. As prescrições seguem orientações internacionais e são consideradas de suma importância no ciclo gravídico puerperal 15, 21.
Para o indicador de adequação mínima do pré-natal, cerca de 1 (uma) a cada 4 (quatro) indígena conseguiu atingir a adequação. As características maternas associadas ao índice foram: etnia, região de moradia e local de residência, o que sugere iniquidade em saúde caracterizadas pelo registro de piores índices de adequação entre as mulheres que moravam em aldeias e acampamentos da região Sul, onde viviam as indígenas Guarani.
Embora a classificação do índice de adequação mínima do pré-natal tenha adotado um conjunto de critérios e não variáveis individuais, os resultados do presente estudo mostram-se semelhante aos resultados do Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas 11, e de outros estudos internacionais que apontaram lacunas na assistência pré-natal oferecida às populações indígenas 2, 3.
Ao se analisar o conjunto dos eixos, é possível verificar que a assistência prestada à mulher indígena no pré-natal se apresenta muito aquém da preconizada e necessária, evidenciando a persistência de iniquidades em saúde no atendimento a essa população, conforme amplamente descrita na literatura 2, 3, 4, 11.
Destaca-se que a compreensão dos piores índices de adequação mínima do pré-natal entre as indígenas Guarani, que vivem em aldeias e acampamentos da região Sul, deve ser subsidiada por questões relacionadas à violação dos direitos à terra, à sustentabilidade e à saúde. O povo Guarani de Mato Grosso do Sul vive em terras indígenas e em áreas de retomadas na região Sul do Estado, enfrentando situações de conflito territorial e ameaças constantes de violência contra suas vidas 22,23. Estes desafios reforçam a hipótese de que em aldeias da região Sul, evidenciam-se disparidades regionais, sobretudo ao olhar para o contexto de vida e organização da assistência às mulheres indígenas para a garantia de realização do pré-natal adequado 13.
O povo Terena representa em termos quantitativos a segunda maior população indígena no Estado, e estão concentrados em sua grande maioria na região Norte do estado, neste estudo concentrou cerca de três vezes mais chances de adequação do pré-natal, o que pode estar relacionado ao melhor acesso aos municípios com maior disponibilização de serviços de saúde.
Residir em área urbana se mostrou como um fator contribuinte para adequação mínima do pré-natal. Estudo realizado com mulheres indígenas no Panamá concluiu que a distância entre local de moradia e o local onde são ofertados os serviços de saúde constituem uma barreira importante para o acesso e a realização efetiva dos cuidados pré-natais, sendo constatado que, quanto maior a distância, menor o número de consultas realizadas por essas mulheres 13. Esse cenário é reafirmado nos resultados do Primeiro Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, em que os cuidados ofertados às gestantes indígenas no Brasil apresentaram relação com seus locais de moradia e as dificuldades de acesso aos serviços de saúde 11.
Na análise do modelo de regressão logística ajustado, as mulheres que residiam na região Norte do MS e que foram atendidas no pré-natal por médico e enfermeiro aumentaram as chances de o pré-natal ser realizado adequadamente, o que sugere haver um quantitativo insuficiente de profissionais médicos e enfermeiros das EMSI, em especial para a assistência às mulheres em aldeias e áreas de retomada da região Sul do MS. Essa possível insuficiência pode penalizar estas mulheres que enfrentam longo tempo de espera nas UBSIs por atendimentos, pela carência de ações voltadas para atender às necessidades das gestantes nos diferentes contextos dos territórios indígenas.
Destaca-se a importância de pesquisas que investiguem o quanto às iniquidades em saúde afetam de forma contundente a saúde materna de populações em situações de vulnerabilidade, e evidenciam a falta ou a ineficácia da assistência ofertada a elas 1, 3, 10, 11.
Nesse contexto, torna-se urgente o oferecimento de uma assistência em saúde indígena mais assertiva, na qual sejam priorizadas as questões que envolvam a saúde perinatal dessas populações, principalmente nos países em desenvolvimento em que as mulheres grávidas, bebês e as crianças constituem uma grande parte das populações indígenas, e tendem a ter taxas mais elevadas de fatores de risco 2, 11, 13.
Como limitações deste estudo destacam-se o pequeno número de procedimentos analisados, somente quatro (4) eixos dessa assistência, os desafios na comunicação relacionados ao domínio da língua portuguesa, que para algumas gestantes era limitado, tornando a realização da entrevista mais demorada e sendo necessário contar com a ajuda de um tradutor. Outra limitação refere-se à entrevista ter sido realizada por enfermeiro do hospital onde a mulher teve o seu parto, os mesmos foram treinados para atuar como entrevistadores, devido ao contexto da COVID-19 e respeitando as normas de biossegurança para mitigar a propagação da doença. Outro aspecto limitador do estudo se refere ao Eixo 4: prescrição de ácido fólico e sulfato ferroso na gestação, ter sido excluído do índice de adequação mínima do pré-natal, pelo seu baixo preenchimento, por trazer evidências de anemias em mulheres indígenas que deveriam estar recebendo essa suplementação no pré-natal. Nas ponderações do impacto final da adequação ao pré-natal, pois indica a não execução dessa importante medida.
Conclui-se, que a assistência pré-natal de mulheres indígenas de Mato Grosso do Sul evidenciou iniquidades em saúde, com baixos índices de adequação no pré-natal, reduzida cobertura de consultas e exames de rotina e piores índices entre as indígenas que residiam na região Sul do Estado e que tiveram o atendimento do pré-natal apenas por um dos profissionais (médico ou enfermeiro).
A melhoria do pré-natal nesta população envolve a necessidade de avanços na oferta de cuidado pelas equipes de atenção primária, seja no âmbito dos DSEIs e/ou nas unidades de saúde dos municípios, onde vivem mulheres indígenas, a fim de ampliar o acesso e a qualidade da assistência ao pré-natal, independente de regiões e locais de moradia das mulheres indígenas.

Contribuições dos autores
G.R. Abreu colaborou com a concepção e projeto do estudo, análise e interpretação dos dados, redação e revisão, e aprovou a versão final. R. P. Picoli colaborou com a concepção e projeto do estudo, redação e revisão; e aprovou a versão final. J. R. Welch colaborou com a concepção e projeto do estudo, a revisão e aprovou a versão final. C. E. A. Coimbra Jr. colaborou com a concepção e projeto do estudo, a revisão e aprovou a versão final.
Dados dos autores
Gislaine Recaldes de Abreu, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), gislaine.abreu@ufms.br, (ORCID: 0000-0002-8325-5660);
Renata Palópoli Picoli, Fundação Oswaldo Cruz Mato Grosso do Sul (Fiocruz/MS), renata.picoli@fiocruz.br, (ORCID: 0000-0002-3753-6832);
James R. Welch, Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro (RJ), jwelchmail@gmail.com, (ORCID: 0000-0002-9094-5491);
Carlos E. A. Coimbra Jr. Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro (RJ), carloscoimbrajr@gmail.com, (ORCID: 0000-0003-4085-1080).


Referências
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Abreu, G. R., PícolI, R. P., Welch, J. R., Coimbra Jr., C. E. A.. Adequação da assistência pré-natal ofertada à mulher indígena no estado de Mato Grosso do Sul: características maternas e dos serviços de saúde. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Jun). [Citado em 29/06/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/adequacao-da-assistencia-prenatal-ofertada-a-mulher-indigena-no-estado-de-mato-grosso-do-sul-caracteristicas-maternas-e-dos-servicos-de-saude/19298?id=19298

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