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Artigos

0414/2024 - Autopercepção de discriminação e avaliação do atendimento em serviços de saúde no Brasil
Perceived discrimination and evaluation of care in health services in Brazil

Autor:

• Paulo Victor Cesar de Albuquerque - Albuquerque, P.V.C - <albuquerque.pvc@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5066-8776

Coautor(es):

• María del Pilar Flores-Quispe - Flores-Quispe, M.del.P - <mariadelpilarfloresq@hotmail.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1472-7350

• Elaine Tomasi - Tomasi, E. - <tomasiet@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7328-6044



Resumo:

O objetivo deste artigo foi descrever a prevalência de discriminação autopercebida e identificar associações com fatores sociodemográficos e de avaliação dos atendimentos em estabelecimentos de saúde no Brasil. O estudo utilizou dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 e foram analisados dados de 44.001 adultos. A prevalência de discriminação em serviços de saúde foi de 11,4% (IC95% 10,8 – 12,0). A discriminação foi significativamente maior nas mulheres (12,2%), em pessoas de raça/cor de pele amarela ou indígenas (18,2%), em quem vivia com companheiro (11,9%), em quem possuía menor classificação econômica (13,6%), entre quem percebia sua saúde como muito ruim (21,7%) e naqueles que estiveram em consulta em um período menor de três meses (12,2%). Foram observadas maiores prevalências de discriminação nos grupos que avaliaram o atendimento como “regular, ruim ou muito ruim” quanto às características do atendimento médico, à recepção no serviço de saúde e ao tempo de espera para ser atendido. A discriminação pode estar associada a piores resultados de saúde e percepções negativas do paciente sobre a qualidade da assistência. Deve ser vista como um problema de saúde pública e necessita de ações de combate visando garantir a qualidade da atenção à saúde, principalmente de grupos vulneráveis.

Palavras-chave:

Discriminação; Serviço de saúde; Inquéritos epidemiológicos

Abstract:

The aim of this article was to describe the prevalence of perceived discrimination and to identify associations with sociodemographic factors and the evaluation of care in health services in Brazil. This study used datathe 2013 National Health Survey and data44.001 adults were analyzed. The prevalence of discrimination in health services was 11.4% (95% CI 10,8 – 12,0). Discrimination was significantly higher in women (12.2%), in people with yellow skin color or indigenous people (13.3%), in those who lived with a partner (11.9%), among those with lower economic status (13,6%), in those who had poor health perception (21,7%) and shortest time since the last medical consultation (12,2%). Higher prevalence of discrimination was observed in the groups that rated the service as “regular, bad or very bad” regarding the characteristics of medical care, the reception at the health service and the waiting time to be attended. Discrimination can be associated with worse health outcomes and perceptions about the quality of health care. Discrimination in health services must be seen as a public health problem that needs actions to combat it, aiming to guarantee the quality of health care, especially in vulnerable groups.

Keywords:

Discrimination; Health services; Health surveys

Conteúdo:

Introdução
A Constituição Brasileira de 1988 estabelece a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, assegurando o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde.1 Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) tenha sido responsável por ampliar significativamente o acesso à saúde, especialmente entre populações mais vulneráveis, como minorias étnico-raciais e pessoas de baixa renda, persistem desigualdades que comprometem a qualidade e a efetividade dos serviços oferecidos.2 Essas desigualdades não são exclusivas ao SUS, mas também afetam serviços privados, e uma das principais barreiras é a discriminação percebida pelos usuários dos serviços de saúde.3
A discriminação pode ocorrer de forma explícita ou velada, manifestando-se através do tratamento desigual com base em características como raça, cor, sexo, idade ou condição.4,5,6 Práticas discriminatórias afetam diretamente a experiência dos usuários e sua satisfação com o atendimento, especialmente em interações com profissionais de saúde. Estudos indicam que a percepção de discriminação está associada a piores desfechos de saúde, além de perpetuar as desigualdades existentes no acesso e na qualidade dos serviços.2,7 No entanto, a investigação sobre discriminação no contexto do atendimento médico no Brasil, incluindo serviços públicos e privados, ainda é limitada, o que ressalta a necessidade de estudos focados nesse aspecto.8
Este estudo visa preencher essa lacuna ao descrever a prevalência de discriminação percebida no atendimento médico no Brasil, tanto em serviços públicos quanto privados, e identificar suas associações com fatores sociodemográficos. Ao invés de focar exclusivamente no SUS, o estudo aborda a discriminação em ambos os contextos de atendimento, considerando que a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013 oferece dados que abrangem tanto os setores públicos quanto privados. Essa análise é fundamental, pois a discriminação percebida, especialmente no atendimento médico, pode agravar disparidades no cuidado e comprometer a efetividade das políticas públicas de saúde.4,6,9
Assim, o presente estudo tem como objetivo descrever a prevalência de discriminação percebida nos atendimentos médicos em serviços públicos e privados no Brasil, identificando suas associações com fatores sociodemográficos. Compreender essas dinâmicas é essencial para mitigar os efeitos negativos da discriminação e promover a equidade no acesso e na qualidade dos serviços de saúde, tanto no SUS quanto em outros setores de saúde, contribuindo para políticas mais inclusivas e eficazes.
Métodos
Realizou-se análise de dados provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), um estudo transversal de base populacional com amostragem em três estágios: setor censitário, domicílio e morador. A coleta ocorreu de agosto de 2013 a fevereiro de 2014, e foram obtidos registros de 60.202 indivíduos de 18 anos ou mais, entrevistados sobre estado de saúde, estilo de vida e doenças crônicas. Desse total de participantes, 44.001 estiveram em consulta médica em um período inferior a um ano e este número foi considerado para as análises deste trabalho.
A discriminação por médicos ou outros profissionais nos serviços de saúde foi aferida por meio de dez perguntas alinhadas à questão: “O(a) Sr(a) já se sentiu discriminado (a) ou tratado(a) pior do que as outras pessoas no serviço de saúde, por algum médico ou outro profissional de saúde por algum desses motivos?: 1) falta de dinheiro, 2) classe social, 3) raça ou cor, 4) tipo de ocupação, 5) tipo de doença, 6) preferência sexual, 7) religião ou crença, 8) sexo, 9) idade ou 10) qualquer outro motivo.". O entrevistado respondeu “sim” (atribuído o valor 1) ou “não” (atribuído o valor 0) para cada pergunta. As dez respostas foram agrupadas em um escore que somou os valores, resultando em uma variável binária: “nunca sofreu discriminação” e “já sofreu pelo menos um tipo de discriminação”, esta última sendo o desfecho.
As variáveis sociodemográficas disponíveis para toda a amostra foram: região (Norte; Nordeste; Centro-oeste; Sudeste; Sul), sexo (Masculino; Feminino), cor da pele ou raça (Branca; Preta; Parda; Amarela ou indígena), idade (18-30; 31-40; 41-55; 56 ou mais), vive com companheiro (Sim; Não), escolaridade (Nenhuma, apenas alfabetizado ou ensino fundamental incompleto; Ensino Fundamental completo ou Médio incompleto; Ensino Médio completo; Ensino superior), classificação econômica em quintis de riqueza calculados a partir de informações sobre posse de bens e características do domicílio, utilizando análises de componentes principais (ACP) (Quintil 1 - mais pobres; Quintil 2; Quintil 3; Quintil 4; Quintil 5 - mais ricos), autopercepção de saúde (Muito boa; Boa; Regular; Ruim; Muito ruim) e tempo da última consulta (Até três meses; Mais de três meses a um ano).
As variáveis para avaliação do atendimento recebido foram relacionadas: às habilidades do médico para tratá-lo(a), ao respeito do médico na maneira de atendê-lo(a), à clareza nas explicações do médico, à disponibilidade de tempo para fazer perguntas sobre o seu problema ou tratamento, à possibilidade de falar em privacidade com o médico, à forma como os atendentes o/a receberam e quanto ao tempo de espera até ser atendido. Estas perguntas tiveram as seguintes opções de resposta: “muito bom”, “bom”, “regular”, “ruim” e “muito ruim”. As respostas foram dicotomizadas em “muito bom ou bom” e “regular, ruim ou muito ruim”.
Primeiramente foi realizada a análise descritiva, aferindo as frequências absolutas (n) e relativas (%) da amostra. Por meio de análises bivariadas e multivariadas, estimou-se a associac?a?o entre a discriminação autopercebida e as variáveis sociodemográficas, assim como as razões de prevalência (RP) da percepção de discriminação nos serviços de saúde, com seus respectivos intervalos de confiança (IC) de 95%. A análise ajustada foi realizada a partir de modelo hierarquizado em quatro níveis compostos pelas variáveis que na análise bruta apresentaram <0,20. O primeiro nível foi constituído pela variável “região”, o segundo pelas variáveis “sexo” e “cor da pele”, o terceiro pelas variáveis “escolaridade”, “classificação econômica” e “vive com companheiro” e o quarto nível foi composto pelas variáveis “autopercepção de saúde” e “tempo da última consulta”. A variável independente pertencente ao primeiro nível foi inserida na regressão e, ao apresentar p<0,20 foi mantida na análise. Logo foram adicionadas as variáveis do segundo nível, seguindo o mesmo critério para sua permanência. O mesmo processo ocorreu na inserção do terceiro e quarto níveis até resultar no modelo final com as variáveis remanescentes onde, para a significância estatística, foi considerado p<0,05.
As análises estatísticas foram realizadas com o pacote Stata 15 (Statcorp, College Station, Texas, TX, EUA), considerando as ponderações necessárias para o desenho amostral. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013 utilizou um desenho amostral complexo, com amostragem probabilística estratificada por conglomerados em três estágios (setores censitários, domicílios e indivíduos). As ponderações foram aplicadas nas análises a fim de garantir representatividade O detalhamento dos procedimentos de amostragem pode ser obtido através do relatório técnico da pesquisa.10
O projeto da PNS foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, e obedeceu à Resolução do Conselho Nacional de Saúde no 466/12, tendo os participantes assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados
A maior parcela da amostra residia na região Sudeste (46,3%) e as mulheres predominaram (58,4%). Quanto à cor da pele, 49,5% eram brancos e 40,1% eram pardos. Cerca de um quarto (25,9%) tinha entre 18 e 30 anos e 62,9% dos entrevistados referiram viver com companheiro. O ensino médio predominou (44,6%) e em relação à classificação econômica, a amostra foi descrita em quintis de riqueza, sendo o primeiro quintil os mais pobres. Mais da metade da amostra tinha boa percepção da sua saúde (52,1%) e 67,4% esteve em consulta nos últimos três meses.
Em 2013, 11,4% (IC95%= 10,8 – 12,0) dos entrevistados referiram ter sofrido pelo menos um tipo de discriminação por médicos ou qualquer outro profissional de saúde nos últimos 12 meses.
Nas análises não ajustadas, as regiões Norte e Centro-Oeste foram as que apresentaram maior prevalência de discriminação (14,8% e 14,5% respectivamente), enquanto a menor prevalência foi observada na região Sudeste (9,8%).
A discriminação autopercebida pelas mulheres (12,2%) foi maior quando comparada aos homens (10,2%). As mulheres tiveram, em média, 20% mais probabilidade de serem discriminadas em serviços de saúde do que os homens (IC95% 1,10 – 1,32). A menor prevalência de discriminação foi entre brancos (10,1%) e as maiores foram entre quem tinha a cor da pele/raça amarela e indígena (18,2%). Em relação a quem tem a cor da pele branca, ter a cor da pele preta ou parda aumentou, em média, 23% (IC95% 1,06 – 1,43) (IC95% 1,11 – 1,36) a probabilidade de ser discriminado. Já a cor da pele/raça amarela/indígena aumentou a probabilidade de discriminação, em média, 80% (IC95% 1,30 -2,50). Adultos entre 41 e 55 anos apresentaram a maior prevalência (13,3%), seguida daqueles entre 31 e 40 anos (12,9%), enquanto que os mais jovens e os mais velhos apresentaram as menores prevalências de discriminação autopercebida, 10,2% e 9,4% respectivamente. Ter entre 41 e 55 anos aumentou, em média, 30% (RP= 1,30 IC95% 1,16 – 1,47) a probabilidade de discriminação.
Entre as pessoas que viviam com companheiro(a), a prevalência de discriminação foi 11,9% e entre os que viviam sem companheiro(a) foi de 10,5%. Não ter companheiro diminuiu, em média, 11% (RP=0,89; IC95% 0,81 – 0,97) a probabilidade de sofrer discriminação em relação a quem vive com companheiro. A maior prevalência de discriminação autopercebida foi encontrada entre quem não possuía nenhuma escolaridade, era apena alfabetizado ou possuía o ensino fundamental incompleto (12,0%). Ter ensino superior diminuiu, em média, 34% (RP= 0,66; IC95% 0,56 – 0,76) a probabilidade de receber discriminação em relação ao grupo de menor escolaridade. Quanto melhor a classificação econômica, menores as prevalências de discriminação. Pertencer ao quintil mais rico diminui, em média, 41% (RP= 0,59; IC95% 0,50 – 0,68) a probabilidade de sofrer discriminação nos serviços de saúde em relação a quem pertencia ao quintil mais pobre.
A prevalência de discriminação aumenta à medida que a percepção de saúde piora. Perceber a saúde como ruim e muito ruim aumentou, em média, 2,43 (IC95% 2,01 – 2,92) e 2,60 (IC95% 2,00 – 3,40) vezes, respectivamente, a probabilidade de discriminação. Quanto maior o período desde a última consulta, menor a probabilidade de discriminação. Quem esteve em consulta médica em um período maior de três meses teve uma prevalência de discriminação, em média, 20% (RP= 0,80; IC95% 0,73 – 0,88) menor quando comparado a quem esteve em consulta médica em um período de até três meses.
Na análise multivariada, as variáveis “idade” (valor-p: 0,667) e “escolaridade” (valor-p: 0,818) deixaram de ser estaticamente significativas.
Após ajustes, as mulheres apresentaram uma probabilidade, em média, 16% (RP: 1,16; IC95% 1,06 – 1,27) maior de perceber discriminação em serviços de saúde quando comparadas aos homens e ter a cor de pele preta ou parda significou o aumento, em média, de 13% (RP: 1,13 IC95% 0,97 – 1,32) (RP: 1,13 IC95% 1,02 – 1,25) na probabilidade de discriminação para ambas as categorias, enquanto que para a cor de pele/raça amarela/indígena, esse aumento significou, em média, 74% (RP: 1,74 IC95% 1,26 – 2,41) quando comparados às pessoas que se declararam brancas. Para os que viviam com companheiro(a) a probabilidade de discriminação aumentou, em média, 12% (RP: 0,88 IC95% 0,80 – 0,96).
O quintil mais rico teve, em média, uma probabilidade 26% (RP: 0,74 IC95% 0,63 – 0,86) menor de discriminação autopercebida quando comparado ao quintil mais pobre e ter uma percepção muito ruim de saúde aumentou, em média, 2,25 (IC95% 1,72 – 2,95) vezes a probabilidade de discriminação em relação aos que referiram uma percepção muito boa. Comparados a quem esteve em consulta médica nos últimos três meses, os que estiveram em consulta num período superior até um ano, tiveram probabilidade de percepção de discriminação nos serviços de saúde, em média, 14% (RP: 0,86 IC95% 0,78 – 0,95) menor.
A Tabela 3 apresenta as prevalências de discriminação autopercebida em serviços de saúde de acordo com a avaliação dos usuários sobre diversos aspectos do atendimento recebido. Em geral, a maioria dos entrevistados avaliou positivamente o atendimento médico nos itens: "habilidade do médico para tratá-lo(a)" (90,2%), "respeito do médico na maneira de atendê-lo(a)" (86,5%), "clareza nas explicações do médico" (84,4%), "disponibilidade de tempo para fazer perguntas" (79,8%) e "possibilidade de falar em privacidade com o médico" (84,3%).
Os usuários que avaliaram os atendimentos como "regular" a "muito ruim" apresentaram prevalências de discriminação significativamente mais altas. Em particular, a discriminação foi em média de 1,76 a 2,02 vezes maior entre aqueles com avaliações negativas, comparados aos que avaliaram o atendimento de forma positiva. Destacam-se as prevalências de discriminação entre aqueles que avaliaram negativamente a "forma como os atendentes os receberam" (2,06 vezes maior, IC95%: 1,88 – 2,27) e o "tempo de espera até ser atendido" (1,78 vezes maior, IC95%: 1,62 – 1,95).
No que tange ao acúmulo de discriminação (Figura 1), uma parte significativa da amostra relatou ter sido alvo de múltiplos tipos de discriminação. Entre aqueles que relataram discriminação, 24,5% perceberam três ou mais tipos, 28,2% identificaram dois tipos, e 47,3% relataram apenas um tipo, revelando a prevalência de múltiplas formas de discriminação. Em relação ao atendimento recebido, foi observado o efeito dose-resposta, quanto mais tipos de discriminação foram percebidos, menos positiva foi a avaliação do atendimento recebido. Dentre as pessoas que perceberam um tipo de discriminação, 80,9% consideraram o atendimento médico, quanto às suas habilidades ao tratá-las, como muito bom ou bom. A probabilidade de uma avaliação positiva em quem percebeu dois tipos de discriminação foi, em média, 6% (IC95% 0,89 – 0,99) menor que no primeiro grupo e entre os que perceberam três ou mais tipos, 20% (0,74 – 0,87) menor quando comparadas àquele mesmo grupo (Tabela 4).
Discussão
Nesta amostra de adultos brasileiros que utilizaram serviços de saúde nos 12 meses anteriores à entrevista, um em cada nove perceberam sinais de discriminação nestes contatos. O acesso universal e equitativo à saúde, assim como a utilização dos serviços de saúde, pode ser violado por fatores como racismo, sexismo e outras características socioeconômicas e culturais. Tais fatores podem funcionar de forma articulada nas diversas esferas do nosso sistema de saúde. A discriminação, uma construção social onde as relações sociais de dominação e opressão perpetuam privilégios de alguns grupos em detrimento de outros, pode ser expressa pela sobreposição de dois ou mais níveis de subordinação, formando uma intersecção entre múltiplas categorias, sejam elas biológicas, sociais ou culturais11,12.
Em 2003, uma pesquisa nacional de base populacional, a World Health Survey (WHS), realizada no Brasil, com 5000 adultos, identificou situações de discriminação e fatores associados nos serviços de saúde. Os indivíduos foram questionados se achavam que haviam sido tratados pior pelos prestadores de cuidados de saúde por algum dos seguintes motivos: sexo, idade, falta de dinheiro, classe social, grupo étnico ou cor da pele, tipo de doença ou nacionalidade. Parcela significativa de usuários ambulatoriais sofreu discriminação pelos seguintes motivos: sentir-se maltratados por falta de dinheiro (9,0%) e por sua classe social (8,0%)13.
Os autorrelatos de tratamento injusto surgem como mais um fator de risco para problemas de saúde14. Indivíduos que sofreram discriminação no passado podem ser mais relutantes em procurar atendimento médico, criando um efeito negativo na confiança e na satisfação dos indivíduos com o sistema de saúde e aumentando a probabilidade de adiar ou deixar de procurar assistência15. Usuários de serviços de saúde pertencentes a estratos populacionais mais vulneráveis às ações discriminatórias tendem a esperar que os sintomas se tornem mais graves para procurar tratamento16,17.
As mulheres apresentaram maior probabilidade de perceber a discriminação em relação aos homens. Em um estudo de coorte realizado com mulheres nos Estados Unidos observou-se que 39% das participantes perceberam a discriminação com base no gênero enquanto procuravam atendimento18. Embora tenham ocorrido mudanças ao longo das décadas em relação à saúde da mulher, estruturas e atitudes patriarcais remanescentes ainda são obstáculos para combater as práticas discriminatórias. Contudo, mesmo que as mulheres refiram mais facilmente a discriminação, existe a possibilidade de que elas não a percebam como tal, uma vez que estão inseridas em uma sociedade com certa naturalização das desigualdades, que impedem que o indivíduo perceba e se reconheça como vítima dessas ações19. Isto tornaria estas diferenças ainda maiores.
Não ter a cor de pele branca aumentou a probabilidade de discriminação. Dados do World Health Survey (WHS), realizado em 2003 no Brasil, indicaram que a cor da pele foi o motivo isolado menos relatado de discriminação entre as opções disponíveis (1,1% em atendimento ambulatorial e 1,6% em internação hospitalar)4,13. Entretanto, no mesmo estudo, os autores observaram que as pessoas de cor da pele mais escura relataram discriminação com maior frequência para falta de dinheiro e classe social respectivamente4. Essa intersecção de discriminações também pode ser vista quando pessoas com outra cor de pele, comparadas às brancas, apresentam múltiplas desvantagens sociais, principalmente, no que diz respeito ao acesso e utilização dos serviços de saúde19.
A menor prevalência de discriminação entre as pessoas que não tinham companheiro pode ser explicada por fatores relacionados à maior autonomia pessoal e menor exposição a preconceitos ou julgamentos que frequentemente afetam famílias e casais. Indivíduos solteiros, separados ou viúvos tendem a realizar as interações sociais e de saúde de maneira mais independente, o que pode reduzir a visibilidade de características que são comumente alvo de discriminação, como estrutura familiar, gênero e papéis conjugais20.
Nesta amostra, os entrevistados entre 31 e 55 anos informaram maiores prevalências de discriminação, apesar da variável idade como um todo não se mostrar associada ao desfecho. Esses achados sugerem que pessoas de meia-idade podem enfrentar mais discriminação devido a fatores como maior presença nos serviços de saúde e estereótipos que associam essa faixa etária a certas demandas ou condições crônicas. Em contraste, indivíduos mais jovens (18-30 anos) e mais velhos (56 anos ou mais) apresentaram menores prevalências de discriminação, o que pode estar relacionado a expectativas sociais e maior visibilidade de suas necessidades específicas.
Nossos resultados relacionados à classificação econômica são coerentes com outros estudos que registraram piores indicadores de saúde entre grupos de menor nível socioeconômico21,22. Portanto, não surpreende que tal relação também tenha sido observada na autopercepção de discriminação, mesmo após ajustes. A variável percepção de saúde mostrou que quanto pior a autoavaliação de saúde, maior a prevalência de discriminação. A autoavaliação da saúde pode ser considerada um bom preditor para problemas de saúde, além de estar associada com renda e escolaridade, evidenciando desigualdades em saúde na população brasileira23. Assim, a maior prevalência de discriminação percebida entre quem referiu pior percepção de sua saúde pode ser explicada pelos mesmos argumentos que relacionam a situação socioeconômica à situação de saúde.
A análise mostrou que indivíduos com autoavaliação de saúde ruim ou muito ruim apresentaram maior prevalência de discriminação percebida. Esses grupos, que deveriam ser acolhidos com mais atenção devido à vulnerabilidade, enfrentam maior discriminação, o que pode agravar seu estado de saúde e desestimular a busca por cuidados. A literatura confirma que a discriminação está associada a piores desfechos de saúde, especialmente entre os mais vulneráveis20.
Cerca de 80% dos entrevistados avaliaram o atendimento médico como muito bom ou bom em seus diferentes aspectos, entre eles, a clareza das informações recebidas do profissional, a privacidade na hora de falar com o mesmo e a disponibilidade de tempo para perguntas no momento da consulta. Os que avaliaram o atendimento como regular, ruim ou muito ruim, tiveram a prevalência de discriminação cerca de até duas vezes maior comparado ao primeiro grupo. Macdonald e colaboradores dizem que, além da discriminação percebida estar associada a piores resultados de saúde e à redução do envolvimento do paciente na proteção da saúde, também está associada a comportamentos e percepções negativas do paciente sobre a qualidade da assistência à saúde24. Alguns estudos apontam discriminação dentro do sistema de saúde, mas não examinam sua relação com a qualidade do atendimento ou a satisfação do paciente com o cuidado prestado. Apesar dessas lacunas na literatura, observa-se que experiências de discriminação dentro do sistema de saúde podem ter consequências importantes para o acesso e satisfação com o atendimento recebido25.
Indivíduos que percebem discriminação nos serviços de saúde têm menos confiança nesse tipo de serviço e ficam menos satisfeitos com o atendimento que recebem, sendo assim são mais propensos a relatar qualidade inferior de atendimento26. Além disso, o entrelaçamento de mais de um marcador social predispõe os indivíduos a receberem maior carga de discriminação27. Dessa forma, a avaliação da resposta à experiência discriminatória pode ser tão importante quanto a própria experiência26,27.
A subutilização de serviços de saúde, muitas vezes ligada à discriminação percebida ou maus-tratos, pode contribuir para resultados de saúde problemáticos entre membros de grupos socialmente marginalizados28.
O sistema público de saúde do Brasil, na medida em que se apresenta como um sistema universal e, portanto, sem distinções ou restrições buscando incluir todos os grupos sociais em seu território, cada vez mais terá de considerar as diferenças interculturais no âmbito das políticas de saúde e da assistência prestada29. A compreensão da relação entre saúde e determinantes sociais é fundamental para instrumentalizar a elaboração de políticas e programas de saúde pública voltados para o combate às desigualdades2. O avanço nas políticas de promoção da equidade na perspectiva de um sistema de saúde universal pode se constituir em uma estratégia para o enfrentamento de tais desigualdades. Entretanto, nos últimos tempos, temos assistido ao avanço de forças ancoradas no fundamentalismo conservador e ultraliberal na economia que vem atacando vários direitos sociais, especialmente aqueles que atendem às populações mais propensas a sofrerem discriminação30.
Embora a discriminação tenha sido avaliada por meio de um escore composto por 10 questões abordando diferentes formas de discriminação, reconhecemos que o uso de escalas validadas poderia fornecer uma avaliação mais robusta e padronizada. A ausência de instrumentos validados é uma limitação do questionário da PNS, e pode introduzir vieses que subestimem a complexidade das experiências de discriminação. Portanto, essa limitação deve ser considerada na interpretação dos resultados.
Ainda que o estudo tenha trazido resultados significativos, outras limitações também devem ser mencionadas, como o desenho transversal que impede inferir causalidade e a ausência de informações sobre a localização, frequência e intensidade dos episódios discriminatórios. O viés de recordação também pode ter subestimado a prevalência relatada. Entretanto, o estudo oferece contribuições valiosas devido ao tamanho da amostra e à representatividade nacional, além de garantir acesso aberto a dados de alta qualidade. Essas características fortalecem sua relevância para futuras pesquisas e o desenvolvimento de políticas públicas que visem combater desigualdades nos serviços de saúde, promovendo um cuidado mais equitativo e inclusivo.

Conclusão
Os resultados deste estudo representam um marco crucial na compreensão da discriminação nos serviços de saúde no Brasil, ao fornecer uma análise detalhada das desigualdades associadas ao atendimento. A inclusão dessas variáveis amplia a discussão e oferece subsídios concretos para a melhoria da gestão dos serviços e para a formação continuada de profissionais de saúde. A avaliação das experiências discriminatórias revela como essas práticas corroem os princípios de igualdade e justiça que fundamentam o Sistema Único de Saúde (SUS), reforçando a urgência de políticas públicas que eliminem preconceitos e privilégios.
Infelizmente, na PNS de 2019, as variáveis relacionadas à discriminação foram excluídas, o que limita a capacidade de compreender a profundidade dessas desigualdades na saúde. A ausência dessas variáveis impede uma análise comparativa mais robusta com edições anteriores, restringindo o monitoramento contínuo das discriminações e suas consequências para a saúde. Essa exclusão representa uma oportunidade perdida para entender a evolução das desigualdades e suas intersecções com as características sociodemográficas.
Para consolidar avanços futuros, é fundamental que a próxima PNS reintroduza essas variáveis e considere o uso de escalas validadas para garantir uma medição mais precisa e comparável das experiências discriminatórias. Este estudo não é apenas uma contribuição acadêmica, mas um chamado à ação, um convite a avançarmos na construção de um sistema de saúde mais equitativo, que trate com dignidade e justiça aqueles que mais precisam de acolhimento. O futuro da saúde pública no Brasil depende da nossa capacidade de enfrentar essas barreiras e garantir que a qualidade do atendimento seja, de fato, para todos.?
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Albuquerque, P.V.C, Flores-Quispe, M.del.P, Tomasi, E.. Autopercepção de discriminação e avaliação do atendimento em serviços de saúde no Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/dez). [Citado em 28/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/autopercepcao-de-discriminacao-e-avaliacao-do-atendimento-em-servicos-de-saude-no-brasil/19462?id=19462

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