0052/2024 - Câmaras que ecoam ódio, bolhas que destilam medo: constituição do eu e intolerância como raízes da desinformação.
Câmaras que ecoam ódio, bolhas que destilam medo: constituição do eu e intolerância como raízes da desinformação.
Autor:
• Paulo Roberto Vasconcellos-Silva - Vasconcellos-Silva, PR - <bioeticaunirio@yahoo.com.br; p.vasconcellos@unirio.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4646-3580
Coautor(es):
• Luis David Castiel - Castiel, L. D. - <luis.castiel@ensp.fiocruz.br>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9528-8075
Resumo:
Ilusão e verdade adquirem faces indistintas no ambiente virtual: xenofobia, misoginia e homofobia - entre outras falhas sistemáticas de discernimento pela ira - são vícios reincidentes no trânsito massivo das redes sociais. Assistimos a “Justiçamentos” físicos e virtuais por maltas que surgem e desaparecem ao sabor de ódios intensos e passageiros. A presente revisão-ensaio articula teorizações em três segmentos: Genealogias na constituição psíquica; ideia de ameaça à “ordem natural”; incertezas e desinformação gerando sentidos; exploração de ressentimentos para paliação da impotência. Mediações: “câmaras de eco”, “filtros bolha” e algoritmos de aderência; para aglutinação dos ressentidos e desorientados. Finalmente - Desdobramentos políticos e sanitários: ética indiferente ao engodo; atiçamento de intolerância com lucros; publicização de afrontas, polêmicas e repúdio para engajamento; nichos de poder político e consequências para as democracias e para segurança sanitária global. Como conclusões, destacam-se novos e monumentais desafios em uma mediosfera cada vez mais hostil e incompreensível, assim como a necessidade urgente de ambientes permeados pela comunicação plena.Palavras-chave:
comunicação em saúde, mídias e saúde, desinformação, Mídias Sociais, ódio.Abstract:
Illusion and truth acquire indistinct faces in the virtual environment: xenophobia, misogyny and homophobia - among other systematic failures of discernment due to anger - are recurrent vices in the mass traffic of social networks. We witness physical and virtual “Justices” by people who appear and disappear due to intense and temporary hatred. This review-essay articulates theories in three segments: Genealogies in the psychic constitution; idea of threat to the “natural order”; uncertainties and misinformation generating meanings; exploitation of resentments to alleviate impotence. Mediations: “echo chambers”, “bubble filters” and adherence algorithms; to bring together the resentful and disoriented. Finally - Political and health developments: ethics indifferent to deception; fanning intolerance with profits; publicizing insults, controversies and rejection of engagement; niches of political power and consequences for democracies and global health security. As conclusions, new and monumental challenges stand out in an increasingly hostile and incomprehensible mediosphere, as well as the urgent need for environments permeated by full communicationKeywords:
health communication, media and health, misinformation, Social Media, hate.Conteúdo:
Em 2018 uma mensagem incendiária de WhatsApp espalhou-se em Acatlán, México (1): “... fiquem atentos para uma praga de sequestradores de crianças que entrou no país (...) envolvidos no tráfico de órgãos (…) crianças de 4, 8 e 14 anos desapareceram e algumas foram encontradas mortas com seus órgãos removidos. Os seus abdómenes foram cortados, abertos e estavam vazios.”
Ricardo Flores (21 anos) e seu tio Alberto Flores (43 anos) foram detidos pelas autoridades. Não havia queixas formais contra eles nem registros de crianças sequestradas na cidade. Como trágica consequência, em poucas horas foram espancados e queimados vivos à porta da delegacia por terem sido acusados, sem qualquer lastro de veracidade, de roubo de órgãos de crianças. Foram executados por uma multidão colérica movida por uma “fake News” que, por algum motivo, tornara-se popular àquela época.
Ilusão e verdade podem, com muita facilidade e rapidez, adquirir faces indistintas no ambiente virtual. O universo digital abriga “personas digitais”, como representações online de si-mesmo sem vínculos com o real que podem assumir aparência pública hostil ou erotizada, no ritmo das percepções distorcidas na direção de expectativas. O anonimato e distanciamento, podem levar alguns indivíduos a adotar personas assim como as paixões tornam-se mais ardentes e os perigos parecem mais terríveis em função de amores ou terrores internamente hiperdimensionados.
Ao nível nacional, em 2014 o “Guarujá Alerta” (Facebook) divulgou informações sobre uma suposta “mulher que está raptando crianças para realizar magia negra” ressaltando que “se é boato ou não, devemos ficar alerta”. Foram postadas imagens de um retrato falado falso e a foto de uma mulher sem qualquer ligação com o caso. Nenhum desses rostos parecia-se com o de Fabiane Maria de Jesus, assassinada barbaramente ao ser confundida com a suposta sequestradora. A percepção pública de uma vil feiticeira desencadeou um comportamento de manada em uma horda de linchadores (havia boatos de centenas, talvez milhares) - homens, mulheres e até crianças envolveram-se no episódio (2). Participantes afirmaram que “o povo comentou que era a mulher da internet, que era da página Guarujá Alerta”. Estamos na terceira década do século XXI testemunhando retrocessos a uma “Idade Mídia” de “justiçamentos” físicos de feiticeiras e o retorno ao terraplanismo. Como à época da Santa Inquisição, alguém comentou “disseram que a mulher era a que tinha saído no Facebook, fazia magia negra”.
A microdinâmica dos processos de repercussão caluniosa em Acatlán e no Guarujá nos causa incômoda sensação de familiaridade e proximidade. Há milhares de fatos e farsas voltados à vulnerabilidade de crianças, à violência do meio urbano e às ameaças potenciais oferecidos por desconhecidos. Novos pânicos morais causados por vetores intangíveis e em escala planetária foram acrescentados pela pandemia do Covid-19. Novas situações provocam excessivos desacertos em juízos críticos comprometidos por aversões atávicas. A ética da provocação e do insulto anima xenofobias, misoginia, racismo, homofobia - entre muitas outras deformações sistemáticas do agir causadas pela ira. Teorias conspiratórias, discursos de ódio e perspectivas negacionistas - excitadas por interesses políticos e econômicos torpes - embaralham dados e informações produzindo mais sombras que luz. Infelizmente, com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação, tornaram-se vícios reincidentes no trânsito massivo das redes digitais.
1. Genealogia das “verdades alternativas”
Embora nascida de sentimentos extremados de aversão e mais tarde elaborada pela paz do pensar humanista, a ideia que implica transigência ao que é externo ao “nós” não seria em si um conceito psicanalítico. Freud testemunhou em seu tempo a instrumentalização do ódio e a incitação à violência contra diferenças na Alemanha dos anos 30. Diversos textos de Freud reafirmam sua objeção à instrumentalização da intolerância ao outro, como em “Psicologia das massas e análise do eu” (1921) (3); “Mal-estar na cultura” (1930) (4) e “Moisés e o monoteísmo” (1939) (5). A eclosão dos horrores perpetrados pelo nacional-socialismo nucleava-se na intolerância ao outro, amparados pela ideologia da supremacia de raças. A partir desse cenário, Freud analisou o mal-estar emergente na Europa nessas décadas considerando o matrimônio entre a violência e o individualismo, tão peculiares ao século XX. Em 1930 afirmou que “a civilização é um problema e nos deixa infelizes” (4) acreditando que os seres humanos são criaturas inerentemente agressivas, que se comprazem em exercer violência e ferir-se mutuamente. Sob tais perspectivas, nomeou como o “narcisismo das pequenas diferenças” o fenômeno da beligerância contumaz entre comunidades vizinhas sob a premissa da afirmação identitária para conexão social. Espanhóis contra portugueses, ingleses contra escoceses e alemães do norte contra os do sul exercem uma “cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade”, para fortalecer a coesão entre os membros da comunidade. (4) (p. 81). De tal forma, em o “narcisismo das pequenas diferenças” desenvolve a ideia de que a imagem narcísica se presta a “precursora da imagem de si” colocando-se aí, primordialmente, como mecanismo de constituição do “eu” e do “nós”. Essa composição tem como função psíquica elementar a necessidade de preservação do narcisismo da unidade que, levada a extremos, degenera em brutalidade extremada dirigida ao outro sob a forma de racismo e xenofobia, entre outras expressões paroxísticas da intolerância.
Sob tais perspectivas, a ira é divisora em nossa constituição psíquica - muito antes de ser destrutiva. A repulsa ajuda a apartar aquilo que está dentro (prazeroso) de outro que está fora (maléfico, desagradável) que é expelido e experienciado como externo. Em Freud (6), amor e ódio são forças qualitativamente distintas embora este último, como aversão, seja anterior. O prazeroso ao Eu-prazer primordial é incorporado e não mais percebido como externo na mesma medida em que o externo, o desprazer, é mau. Sob a perspectiva da aversão narcísica, a interdição ao objeto rejeitado opera como energia de preservação ao mesmo (o Eu que se fecha) e repulsa à alteridade. A interpretação freudiana do “narcisismo” nessa dimensão ressalta o embate do Eu narcísico com o “outro”. Este será eterno objeto de hostilidades e rancores assíduos inconfessos meramente por ser outro, que ameaça a unidade, por mais similar que este seja ao Eu. Quando instrumentalizada pela cultura, essa ira é conduzida ao paroxismo, desembocando na segregação e no racismo, expressões máximas da intolerância ao outro para coesão do mesmo.
Acerca da mentira a serviço do ódio, na dimensão do subconsciente não há distinção entre verdade e mentira - não há “signo de realidade” (7). Em outros termos, as fake news, ao nível das subjetividades, não seriam mentiras que escondem verdades, mas mentiras que são verdade. Para o subconsciente não haveria construção mentirosa, somente a veracidade sobre a posição do sujeito diante do desejo do Outro. A lógica do subconsciente não lida com o factual versus irreal, mas unicamente com construções necessárias às demandas de sentido na estruturação dos desejos.
Lacan observa que os homens, como “seres de fragilidade” em uma existência cotidiana cada vez mais complexa, vivem sob a penúria dos significados no desamparo estrutural causado pela emergência do real (8) (p. 14). Segundo esse entendimento, as Fake News seriam dispositivos geradores de significação perante o difícil choque com o real. Seres de fragilidade necessitam mais de narrativas que conferem sentido do que da concretude da verdade (8). Histórias falsas teriam como função essencial engendrar um equilíbrio precário entre sentimentos de desamparo (explicitado no discurso “não se pode crer em nada”) e a necessidade de segurança pelo restabelecimento de uma “ordem tradicional” de outrora. A mentira pode também estar a serviço do narcisismo, na base da constituição do “eu/nós” e do outro, proliferando nesses embates sem fim pela preservação da unicidade do eu. Cada detalhe do outro descrito de forma difamatória movimenta mais energias para o veto à alteridade. Essa compreensão vincula afetos que mantém unida uma organização para admitir que, em momentos de risco o amor interno não basta – faz-se necessária a presença do ódio, componente da pulsão de morte e destruição direcionada aos que nos são estrangeiros. Vincular a ira unicamente à destruição faz diminuir sua amplitude e complexidade fenomênica e conceitual.
O ódio pode ser uma commodity extremamente lucrativa, mas também é sentimento paradoxal em sentido, embora coerente com a constituição e afirmação do Eu. Embora se apresente em sua dimensão eversiva negativa, exerce também uma função psíquica afirmativa, de conservação narcísica que viabiliza a diferenciação entre o Eu e o objeto de rejeição. Em outras palavras, no odiar o Eu se afirma e define em sua diferenciação quanto ao objeto odiado. Sob tais perspectivas, a ira adolescente nasceria da ansiedade, solidão, sensação de impotência e falta de controle, como “afeto narcisista” que faz depender da aprovação dos pares. Até a afirmação de seu Eu, o adolescente pendulará entre a arrogância aparente, que dissimula o terror de parecer inadequado. Perante o espetáculo das telas, talvez seja frequente a sensação de retorno aos anos da puberdade. A exposição a corpos perfeitos e objetos de consumo causam impacto de frustração se comparados à mediocridade percebida na vida ordinária. Talvez não por coincidência, determinados conteúdos avidamente consumidos por muitos adolescentes fascinam por paliar frustrações usando o ódio.
Percepção de irrelevância - segurança na ordem natural das coisas
Atualmente parece crescer a multidão de pessoas comuns que, percebendo-se cada vez mais como indivíduos desatualizados, irrelevantes ou obsoletos, buscam a retomada de poder por meio da identificação e articulação política com pares. Acabam por pressionar o indivíduo na direção das demandas por sistemas epistêmicos monolíticos, simplificados, categóricos e naturais como os valores patrióticos, a família tradicional, normatividade de gênero e a grande verdade revelada por Deus. Os sistemas religiosos tradicionais resignaram-se à sua irrelevância na solução de problemas técnicos, não obstante à sua centralidade acerca das necessidades identitárias construídas com base em tradição moral. As Fake News também oferecem a ilusão de uma ordem natural que precisa ser restabelecida rumo ao Norte da Família, da Pátria e de Deus. Nesse percurso, o ódio se oferece como um poderoso propelente.
A desinformação pelas redes serve à geração de sentido e reafirmação de valores diante das complexidades e incertezas da realidade. O retorno aos valores tradicionais tranquilizam pelo senso de ordenamento universal, estável e inequívoco. As postagens enganosas pelas redes virtuais exploram ressentimentos e inseguranças, oferecendo-se como paliativos à sensação de impotência e falta de fé nas instâncias legitimadoras do mundo atual. Assim, sistemas epistêmicos simplistas ao redor de “valores patrióticos”, “família tradicional” e “verdades de Deus” servem ao resgate de um senso de propósito e direção. Usualmente, estes envolvem redimensionamento do ódio contra as ameaças à hetero-normatividade, à ordem moral e à comunidade. A ira é usada como força poderosa para mobilizar e impulsionar os indivíduos em direção a essa noção distorcida de ordem restaurada. Em resumo, as notícias falsas trabalham a favor do anseio por significado e segurança, oferecendo soluções simplistas ao apelar pelo retorno aos valores tradicionais. Exploram vulnerabilidades, nutrem o ódio e conduzem à visão distorcida de uma ordem natural (sob ameaça) que precisa ser defendida e restaurada.
2. Catalisadores e mediações
Câmaras que ecoam ódio, bolhas que destilam medo.
Escópia, Macedônia, inscreveu-se no mapa político contemporâneo como sede da indústria das Fake News. (9). Durante as eleições de 2016 e depois da posse de Trump - mais de mil sites de notícias falsas operavam na cidade levando jovens macedônios desempregados a acumular fortunas ao construir narrativas enganadoras. Páginas sobre política estadunidense (na maioria plágios de blogs da extrema direita americana) e matérias polêmicas fizeram jovens milionários. Para compreensão da escala exponencial observada na replicação dessas matérias, vale ressaltar o papel das engrenagens impulsionadoras de crenças coletivas geradas pela necessidade de afirmação de uma identidade grupal.
Um fenômeno implicado na genealogia e repercussão das fake News –refere-se às “câmaras de eco” (10) amplificadas pelas “bolhas de filtros” (ou filtro-bolhas) (11 - 12) e gestadas pelos vieses de confirmação (11). O conceito de “câmaras de eco” em suas origens, se mescla ao surgimento das redes sociais logo após o advento da banda larga. A necessidade dos grupos de compartilhamento de experiências, opiniões e teorias persecutórias encontra avenidas cada vez mais espaçosas para a veiculação de alarmes falsos sub-reptícios, como nas tragédias de Acatlán e Guarujá. Câmaras ideológicas são figuras metafóricas associadas (10) a indivíduos agrupados por posicionamentos semelhantes que se isolam da sociedade, acumulando versões ressentidas sobre fatos que reforçam um posicionamento grupal. Os que habitam o interior dessas câmaras são propensos a aceitar e compartilhar notícias alinhadas às suas crenças, descartando ou ignorando evidências contrárias. Indivíduos com ideias semelhantes se cercam de opiniões alinhadas às suas cosmovisões. O advento da banda larga proporcionou caminhos mais dilatados para o hiper dimensionamento dessas atmosferas de ódio.
Para ampla compreensão dessa maquinaria, é relevante mencionar o trabalho de Tversky e Kahneman (13) sobre a influência de elementos e princípios heurísticos a criar atalhos para julgamentos que, por sua vez, orientam o comportamento humano. Na vida cotidiana as interpretações e decisões são baseadas em crenças construídas sobre dados factuais não plenamente conhecidos nem ponderados. Assim, para reduzir a complexidade das decisões, indivíduos submetem suas vivências ao crivo de regras elementares (validadas por seu grupo), abrindo espaço para vícios sistemáticos de julgamento– também conhecidos como preconceitos. Vieses de confirmação são assim definidos como tendências de busca, interpretação e memorização de dados confirmadores de crenças (13). No contexto das câmaras de eco, confirmações desempenham um papel crucial na perpetuação dos ciclos de informações falsas. Como catalisadores, contribuem para a construção de sentido e estabilização de ambientes epistêmicos restritivos, onde indivíduos com posições semelhantes se isolam a reforçar crenças recíprocas.
Em potencialização de tais dispositivos, há os filtros-bolha - algoritmos de busca que se ocupam em abastecer os perfis com informações, vídeos e notícias que visam realçar e reafirmar certezas. Conteúdos ao feitio das crenças dos usuários são destacados e replicados, aprofundando a segregação das perspectivas e a polarização grupal extremada (12). Embora desenvolvidos para oferecer conteúdo pertinente aos hábitos de consumo de usuários, os filtros-bolha se colocam no terreno do capitalismo cognitivo como propelente ou “barreira anti-ação comunicativa”. Portanto, como já descrito, cria-se uma modalidade autossuficiente de exílio epistêmico, proporcionado pela ação de algoritmos que assumem a heteronomia da seleção de informações aceitas como “personalizadas”. Os “filtros bolha” constituem-se pelo poder dos algoritmos de pesquisa, alimentados por mecanismos de aprendizado de máquina que buscam preferências com base em dados fornecidos pelo usuário e seu “comportamento de cliques”. Usualmente conduzem a estados de isolamento epistêmico como produto de fluxogramas que agem fornecendo informações alinhadas a crenças e interesses a corroborar e tonificar as câmaras de eco. De tal modo, contribuem para a segregação de perspectivas insulares e aprofundamento da extrema polarização grupal. Como descrito, constituem uma modalidade autossuficiente de renúncia cognitiva-social, pelo intermédio da qual indivíduos se excluem dentro de bolhas comunicativas, erigidas por uma gama estreita de pontos de vista. Os habitantes dessas câmaras se veem, assim, sem abertura ao “sim” ou “não” nos atos de fala de interlocutores, o que inviabiliza os “êxitos ilocucionários” - quando em um plano de relações interpessoais, os participantes na comunicação se entendem entre si sobre algo no mundo (12). A gula pela novidade confirmatória (e obsessão pela vaidade de suas crenças irredutíveis) acumula forças para isolar os habitantes das câmaras de eco de qualquer tipo de ponto de vista contraditório pela curadoria de “algoritmos otimizadores de aderência” a conteúdos de ódio. Ouvir e compreender o outro é um processo dialético de entendimento que tem como meta um acordo que satisfaça as condições de um assentimento racionalmente motivado ao conteúdo de emissão. Em síntese, como ilustra Ricoeur, a “competência comunicativa engloba a arte de compreender a não compreensão e a ciência explicativa das distorções” (14).
A meta de uma plataforma de redes virtuais vai além da divulgação dos conteúdos tão formidáveis quanto irrelevantes e esquecíveis. Inclui, também, a instilação de rancores e cultivo de ressentimentos entre os usuários “fazer as coisas de maneira que eles se enervem, sintam-se em perigo ou tenham medo. A situação mais eficaz é aquela em que os usuários entram em estranhas espirais de um consenso muito poderoso ou, ao contrário, de sério conflito com outros usuários” (15). Nesse ponto percebem-se similitudes relevantes entre as mídias “antigas” e as novas tecnologias baseadas em curadoria por algoritmos. Catástrofes são matéria morbidamente valiosa para todas as mídias, sobretudo se decorrentes da ação torpe de homens (16). Os espetáculos visualmente trágicos são especialmente valorizados pelas câmeras de televisão em articulação com seu contraponto original e necessário, o voyeurismo das audiências (17). Da forma análoga, tragédias que dão sentido a discursos de intolerância são retoricamente poderosas para impulsionar as câmaras de eco e seus “espirais de consenso”.
3. Consequências políticas e sanitárias
No auge da pandemia de COVID-19 no Brasil, as vacinas já estavam disponíveis e as fake News inundavam as redes sociais. A desinformação acrescentou muitas mortes que poderiam ter sido evitadas. O número diário de mortos chegava às centenas e havia pessoas que se recusavam a usar as máscaras (como o próprio presidente da república da época). O PNI (Programa Nacional de Imunizações) encontrava forte resistência em convencer muitos brasileiros a se vacinar, provavelmente influenciados pelas Fake News nas redes sociais. Nesse contexto, o epidemiologista Roberto Medronho recorreu a uma metáfora interessante sobre o alcance negativo das mentiras e seu quantitativo de vítimas no Brasil: “são 4 ou 5 aviões caindo todo dia” – mesmo com a divulgação diária desses números macabros, milhões de indivíduos continuaram a embarcar na cilada da anti-vacinação (18). Talvez essa analogia bem retrate o poder e o alcance nefasto da desinformação, que expôs milhares de pessoas à doença e à morte. Em paralelo aos veículos oficiais de comunicação, as redes sociais derramam um grande volume de informações enganosas sobre saúde (19 - 20). Em 2022, uma a cada cinco Fake News circulando no Brasil se referia às vacinas contra a COVID-19 (21). Segundo Galhardi, a desinformação a respeito dos imunizantes se valia de “dados estatísticos distorcidos acerca do contágio, óbitos, curas e métodos caseiros de prevenção e cura da COVID” (21). Nos países com menor hesitação vacinal, há forte correlação entre a concordância com aspectos ligados à segurança e à eficácia das vacinas com os maiores índices de pessoas que informam ter vacinado seus filhos (22).
Discursos de ódio podem fomentar a hesitação vacinal por meio de teorias conspiratórias, não raro desprovidas de fundamentação sob qualquer perspectiva teórica. Tais narrativas frequentemente retratam as vacinas como peças de um intento malicioso e manipulador, explorando o medo e a desconfiança para atrair adeptos. Ao reforçar crenças negativas com fins de polarização, instituem a racionalidade do antagonismo e da cisão. A exploração das comoções constitui uma tática de manipulação emocional frequente nos discursos de ódio para cativar adeptos e extrair engajamento. Tensões acerca da segurança vacinal são exploradas por meio de narrativas dramáticas e alarmantes sobre casos e fatos, assim como os efeitos comunicativos de metáforas persecutórias (23). No terreno da competição pela atenção pública, aderência a teorias e formação de comunidades online, as histórias trágicas ganham com larga vantagem as versões bio-tecno-científicas. Nas comunidades anti-vax encontra-se mútuo apoio e reforço de crenças na constituição de atmosferas de validação e resistência a qualquer informação que se contraponha (24). Nessas bolhas, os relatos confessionais mais dramáticos, repletos de narrativas de sofrimento, operam como geradores de sentido e insegurança no contraste com as complexidades e incertezas das teorias imunobiológicas. Finalmente, o somatório de tantas “anti-evidências” produz (por equivalência e necessidade de localizar culpados) o efeito de aversão, intolerância e estigmatização dos defensores da vacina.
Alguns autores vinculam linearmente a disseminação incoercível das Fake News às insuficiências de escolaridade e de letramento informacional ou a “competência imbricada no processo de busca e uso eficiente, seguro e produtivo de dados, identificando sua relevância em determinado escopo” (25). Talvez a ausência ou o enfraquecimento momentâneo desse tipo de competência sirva como modulador de “aversões agudas” de manadas enfurecidas sob as circunstâncias de múltiplas penúrias, como em Acatlán e no Guarujá. Por outro lado, tais teorizações não dão sentido à preocupante escalada de “ira organizada” em agremiações políticas que fazem apologia a extermínios de minorias por diversos países europeus. Manifestações xenofóbicas se tornaram cada vez mais frequentes e violentas no Velho Mundo e parecem irreprimíveis pelos sistemas legais. Em pleno século XXI, a cólera se expressa de maneira explosiva e cada vez mais aparelhada. As forças da ira se reorganizaram por meio do “esquadrismo digital” das redes virtuais e expressam-se no epicentro dos novos populismos europeus, latino-americanos e estadunidenses. Uma forma nova e peculiar de “letramento informacional do ódio”, gestada no interior das câmaras de eco e bolhas de intolerância, domina pouco a pouco a cena política de países que se tornaram exemplares por seus insignes sistemas educacionais. Estes possibilitaram notável desenvolvimento material, embora não tenha protegido essas sociedades da infâmia.
São abundantes os recursos e percursos da mentira na dispersão de notícias falsas, geradas unicamente pela força retórica que cultiva ira entre grupos de eleitores que se percebem isolados e irrelevantes. Nas campanhas políticas, empresas de tecnologia de algoritmos usam técnicas de análise de dados e inteligência artificial para segmentar e manipular grupos de eleitores e acentuar divisões sociais. Existe abundância de matéria prima para a linha de produção do caos: ressentimentos pela sensação de obsolescência e irrelevância política e social; temor dos riscos onipresentes vindos de fora; e sensação de descrença nas instituições. Nas palavras de Da Empoli, “se para Lenin o comunismo eram “os Sovietes e a eletricidade”, para os engenheiros do caos o populismo é filho do casamento entre a cólera e os algoritmos” (15) (p. 88)
Na cautionary tale (ou conto de advertência) "The Waldo Moment" da série britânica “Black Mirror”, o personagem principal é uma animação “Waldo”, controlada por um comediante que interage com políticos, tecendo comentários cáusticos para expô-los ao ridículo e à aversão pública. Waldo torna-se popular e começa a ser levado a sério na medida em que incita animosidades contra representantes do sistema político - já em franco descrédito. Torna-se assim uma figura “anti-política” - uma criação tecnológica esvaziada de humanidade que manipula a opinião pública contra os personagens do teatro partidário tradicional – simulacro de personagens do mundo real. Esse conto moral se refere à facilidade com que é possível atrair e confundir grandes massas pelo entretenimento superficial em prejuízo do essencial debate político.
Na Europa, manifestações racistas são cada vez mais frequentes e violentas (26 - 28). Na Hungria, a ira é direcionada aos judeus e ciganos, com brutalidade e mortes de cidadãos da etnia romani (27). O partido Jobbik, com discurso, doutrina e práticas neonazistas obteve 1% dos votos com o mote “É culpa dos ciganos” – também defendem o registro de identidades especiais para os descendentes de Judeus. Boa parte dos membros da Frente Nacional Francesa são antissemitas a considerar que “a França esteve no lado errado da WWII”. Jean Marie Le Pen acrescenta que o vírus da Ebola deveria ser usado para limpar a Europa dos imigrantes e outros “impuros”. Os “identitaires” holandeses, (29) profundamente antissemitas, também defendem uma Guerra declarada ao Islã. O Partido Democrático Nacional da Alemanha é abertamente nazista e em franca projeção, contando com membros suspeitos de fornecer apoio a atentados violentos (27). O “Liberdade Austríaca” defende a deportação forçada de turcos e não europeus. Na Itália, com a vitória da coalizão de extrema-direita nas eleições de 2022, Giorgia Meloni chegou ao poder como primeira-ministra. Meloni é uma líder eurocética do “Irmãos da Itália” (seu patrono é Benito Mussolini) que propõe políticas anti-imigração, a redução dos direitos da comunidade LGBTQ e do acesso ao aborto com um jargão bem conhecido: “Deus, pátria e família” (27). Na Grécia, o Golden Dawn –abertamente nazista e com líderes vinculados a grupos criminosos (30), está implicado em ataques a mesquitas e sinagogas e divulgam os “Protocolos do Sião” como verdadeiros. Os “Verdadeiros Finlandeses” travam guerra contra grupos islâmicos (considerados “inferiores”), glorificam a aliança entre a Finlândia e a Alemanha nazista e querem o país fora da Europa. O “Partido Dinamarquês Popular” se opõe a qualquer presença não nórdica na Dinamarca, criticando o controle dos limites fronteiriços com a Suécia – “permeáveis demais” aos imigrantes. Os dinamarqueses afiliados estimulam conflitos contra grupos islâmicos para fomentar seu extermínio. Os “Democratas Suecos” cresceram de 5,7% em 2010 para 20,5% em 2022 – estão segundo lugar atrás apenas dos social-democratas. Sua popularidade crescente se deveu à crise migratória de 2015, gerada pela entrada maciça de refugiados das guerras na Síria e no Iêmen.
Nos Estados Unidos, a cólera é focada em mexicanos e muçulmanos e materializada nas palavras de ordem: “eles roubam nosso trabalho, eles mudam nosso estilo de vida”. Interessante observar que os novos populistas de direita fincaram suas raízes discursivas no solo da Economia para projetar discursos de ódio, embora exista uma falácia econômica sintetizada pelo “Paradoxo de Waldo” - não são os segmentos sociais mais economicamente desfavorecidos, nem os mais expostos à imigração e ao contato com culturas forasteiras os que, como apontado por Da Empoli “se entregaram ao abraço do urso Waldo” (15) (p.74). Os eleitores com nível de renda mais elevado, menos vulneráveis ao desemprego, portanto, votaram maciçamente em Trump em 2016 – mais do que em Hillary Clinton. Na Europa os partidos xenofóbicos conquistaram seus melhores resultados em regiões em que a densidade demográfica de imigrantes era mais escassa. Usualmente argumentos ligados à economia são colocados à frente mas, em essência, lidam na verdade com um valor imaterial: a ira.
Conclusão
No atual contexto de infobesidade e hiperfluxo de informações, o esforço para informar sobre Ciência e esclarecer sobre vacinas pode estar sendo suplantado pelo poder mistificador das fake news. Talvez nossa geração tenha se perdido nessa “Idade Mídia”, quando o poder das opiniões e convicções parece superar a concretude dos fatos. Talvez, nesse exato momento, em algum recanto das comunidades digitais, alguém de reputação informativa confiável reproduz um post sobre um fato espantoso ou constrangedor, aparentemente genuíno que, por alguma razão, talvez seja de certa forma incomodamente sedutor. O post pode tratar de um cenário revoltante, que aparece do nada, afetando a todos de tal modo que o não “curtir e compartilhar” aproxima-se do impensável. Nesse instante, para o “sapiens proto-jornalista” é custoso opor-se ao frenesi de divulgação do que é indigno, inqualificável, revoltante ou, de alguma forma, diferente. No reino da plausibilidade, fenômenos perturbadores como o descrito tomam forma, misturando a abjeção simbólica com o potente impulso da ilusão de esclarecimento alimentado pela raiva. Essa combinação volátil desencadeia consequências extremas, provocando atenção generalizada e divulgação pública imediata, muitas vezes deixando de fora detalhes cruciais. Neste ambiente, o imperativo da partilha urgente domina as nossas ações, podendo comprometer nossa capacidade de reflexão crítica e de escrutínio da veracidade de mensagens. Ao contemplar esta situação peculiar, é essencial munir-se de considerações sensatas. Uma interpretação possível é que essa ocorrência representa uma peça infame de manipulação, explorando ressentimentos atávicos, profundamente enraizados e reprimidos dentro da sociedade. A geração de lucros explora esses instintos primitivos, invocando intensas reações emocionais e gerando divisão, adoecimento social e muito dinheiro.
Parece ser senso comum que pessoas que participam das redes digitais, além de buscar exposição, oferecem e consomem cosmovisões, e perspectivas alinhadas às suas sobre as coisas do mundo – na ambivalência de proto-repórteres e opinião pública em mútua alimentação. A Internet é povoada por analistas políticos, experts em cinema, peritos em tecnologias e autoridades em qualquer matéria que emergem em ritmo frenético na disputa por espaços de relevância na cartografia do espetáculo. O número de palavras acrescentadas ao léxico usual da Internet, além de ser impressionante pela amplitude de temas, também preocupa pela incômoda sensação de “ignorância iminente” – aquela a que supostamente chegaremos muito em breve, desde que não incessantemente atualizados pelo hiperfluxo do espetáculo.
Na segunda década do século XXI nos encontramos inundados por volumes monumentais de conteúdos redundantes ou irrelevantes a cercar as gemas do pensamento crítico. Proliferam centenas de termos e anglicismos tornando-se gírias ordinárias. Milhares de tecnojargões acrescentados às conversações da esfera pública estimulam a sensação latente de insipiência como prenúncio da desimportância. Tais sentimentos fornecem condições para geração espontânea das bolhas ressentidas de exílio epistêmico, segregadas e nutridas por perspectivas encolerizadas a conjurar os extremismos mais ferozes. Nesse contexto, será que além da relevância da devastação ambiental acarretando eventos climáticos extremos, seria também importante considerar a devastação de nosso senso crítico a produzir eventos políticos e sanitários extremos? Ciclos de ódios nascem amiúde sob circunstâncias de ameaças entre lacunas de confiança no futuro ou derivados da frustração pelas expectativas de condições de vida menos estreitas. As redes digitais da mentira, como parteiras, aguardam as contraturas de momentos traumáticos pelo pânico e comoção pública. Não geraram o rancor nem conceberam a mentira, embora tivessem sido projetadas para destilar ressentimentos a espera da trágica irrupção da violência. Aversão e ódio engendram mentiras, engajamento e lucros. A intolerância gera cliques, cultiva e aglutina usuários de juízo crítico afetado que se percebem como irrelevantes e ultrapassados. Somos seres de fragilidade de índole social - nosso bem-estar depende, em grande parte, da aceitação e acolhimento dos que estão ao redor. Ao contrário dos outros animais, o homem nasce sem defesas e sem capacidades para sobrevivência, continuando assim por muitos anos. Desde o início, sua sobrevivência depende de conexões estabelecidas com outros. O poder de atração das redes sociais se baseia nesse elemento primordial estruturante - cada curtida é reafirmação do Eu, como uma carícia materna.
Alternativamente, tais circunstâncias poderiam ser vistas como um aviso oportuno, um conto de advertência destacando os perigos que espreitam em nosso mundo cada vez mais complexo, hostil e incompreensível. Ele serve como um lembrete dos formidáveis desafios que enfrentamos como sociedade, impelindo-nos à reflexão e ação em meio ao caos em turbilhão. Em última análise, discernir a verdadeira natureza de tais ocorrências requer um exame cuidadoso, desvendando a teia de intenções, motivações e decorrências. Considerações sensatas nos levam a explorar os motivos subjacentes à vileza simbólica e nos encorajam a refletir sobre implicações mais amplas, considerando o impacto potencial na coesão social, no bem-estar individual e em nosso progresso coletivo como civilização. Talvez em ambientes permeados pela comunicação plena e colaboração entre profissionais/educadores e comunidade, o poder dos discursos de ódio, do negacionismo científico e das Teorias conspiratórias se enfraqueça, dando lugar a uma nova Renascença.
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