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0008/2024 - Condições de vida, qualidade da alimentação e fatores associados em mulheres e crianças de comunidades quilombolas em Goiás, Brasil
Living conditions, diet quality and associated factors in women and childrenquilombola communities in Goiás, Brazil

Autor:

• Priscila Olin Silva - Silva, P. O - <priscilaolin@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8916-5650

Coautor(es):

• Raquel Machado Schincaglia - Schincaglia, R. M. - <raquelms@outlook.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8450-6775

• Leonor Maria Pacheco Santos - Santos, L. M. P - <leopac.unb@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6739-6260

• Muriel Bauermann Gubert - Gubert, M. B. - <murielgubert@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0103-4187



Resumo:

O estudo objetivou descrever condições de saúde e vida e analisar fatores associados à qualidade da dieta de mulheres e crianças menores de 5 anos em 9 comunidades quilombolas rurais, certificadas e não tituladas do estado de Goiás. Estudo de delineamento transversal, no qual foram construídos indicadores de consumo de alimentos ultraprocessados, diversidade e qualidade da dieta. Foi avaliada a associação de fatores socioeconômicos com os indicadores de diversidade e qualidade da dieta, usando teste de qui-quadrado de Pearson, teste exato de Fischer e análise de regressão logística. Participaram do estudo 203 mulheres e 73 crianças de 0 a 59 meses. Nas mulheres, maior diversidade da dieta associou-se à maior renda, não participação em programa de transferência de renda e maior escolaridade; nas crianças, à menor quantidade de moradores no domicílio, classificação socioeconômica B/C e dieta diversa materna. A baixa qualidade da dieta em crianças associou-se à menor diversidade da dieta materna; em mulheres, a variável renda esteve associada à menor qualidade da dieta na análise de qui-quadrado, mas a análise múltipla mostrou um resultado oposto para esta variável. Há urgência em implementar ações efetivas para garantia do direito à saúde e alimentação adequada e saudável para essa população.

Palavras-chave:

saúde, nutrição, grupos com ancestrais do continente africano

Abstract:

The study aimed to describe health and living conditions and analyze factors associated with the quality of the diet of women and children under 5 years of age in 9 rural quilombola communities, certified and without land title in the state of Goiás. Cross-sectional study, in which were constructed the indicators of consumption of ultra-processed foods, diet diversity and diet quality. The association of socioeconomic factors with indicators of dietary diversity and quality was assessed using Pearson\'s chi-square test, Fischer\'s exact test and logistic regression analysis. 203 women and 73 children aged 0 to 59 months participated in the study. In women, greater dietary diversity associated with higher income, non-participation in an income transfer program and higher education; in children, fewer people living in the household, B/C socioeconomic classification and different maternal diet. Low diet quality in children associated with less diversity in the maternal diet; in women, the income variable was associated with lower diet quality in the chi-square analysis, but the multiple analysis showed an opposite result for this variable. There is an urgency to implement effective actions to guarantee the right to health and adequate and healthy food for this population.

Keywords:

health, nutrition, groups with ancestorsthe African continent

Conteúdo:

Introdução
As comunidades remanescentes de quilombos, cuja origem histórica remete aos espaços de resistência à escravidão, contribuíram essencialmente para a formação da história e identidade brasileiras. Ao longo da história, o termo “quilombo” foi ganhando outros contornos, mas continua sendo uma referência a um movimento de resistência à opressão histórica, com ancestralidade negra e relação diferenciada com o território, mantendo um conjunto de manifestações e práticas tradicionais transmitidas por gerações (1,2).
Apesar do reconhecimento legal (3) e da instituição de políticas públicas que tentam “compensar” séculos de exclusão e invisibilidade, ainda não há efetivação dos direitos básicos dessa população. A baixa escolaridade, precária assistência à saúde, insegurança alimentar (InSAN) e más condições de moradia e saneamento estão entre os principais problemas e violações a que essas comunidades estão submetidas (4–8).
Mesmo com a expansão de estudos sobre saúde e nutrição da população quilombola, persistem lacunas sobre demografia, saúde, e alimentação e nutrição, especialmente quando se trata do público materno-infantil, um grupo reconhecidamente mais vulnerável à violação de direitos humanos (9). Destacam-se na literatura duas pesquisas em âmbito populacional, a Chamada Nutricional Quilombola (2006), e o Censo dos territórios quilombolas titulados (2011) que forneceram dados sobre condições de saúde, acesso a políticas públicas, disponibilidade de alimentos, estado nutricional e segurança alimentar (7,10).
A tendência de aumento do excesso de peso entre crianças e adultos nas comunidades quilombolas (11,12) e as práticas de alimentação infantil e a baixa qualidade da alimentação disponível para esta população são aspectos preocupantes de um cenário que reflete o processo de transição alimentar e nutricional observado no Brasil, e a insegurança alimentar e nutricional nessas comunidades (7,12).
Diante deste panorama, o estudo teve como objetivo descrever condições de saúde e vida e analisar os fatores associados à qualidade da alimentação de mulheres e crianças menores de 5 anos em comunidades quilombolas em Goiás.
Métodos
Desenho e população do estudo
Estudo de delineamento transversal, sendo um recorte da pesquisa Promoção da Saúde e Qualidade de Vida das Comunidades Quilombolas de Diferentes Regiões Brasileiras: um Estudo Multicêntrico.
As comunidades quilombolas incluídas neste estudo foram selecionadas por meio de sorteio, a partir dos registros de comunidades certificadas em Goiás pela FCP (ano de referência: 2016). Foram consideradas elegíveis comunidades certificadas, rurais e não tituladas.
Todos os domicílios das comunidades eram elegíveis para participar da pesquisa matriz. No presente estudo foi feito um recorte para aqueles com mulheres e/ou crianças menores de 5 anos. Após duas tentativas sem sucesso de encontrar os moradores, o domicílio era excluído da pesquisa. Eram elegíveis todas as mulheres de 19 a 59 anos e todas as crianças menores de 60 meses, estratificadas em duas faixas etárias: 0 a 23 meses e 24 a 59 meses. Quando havia no domicílio mais de uma criança na mesma faixa etária, apenas uma foi sorteada para participar. A amostra final foi de 203 mulheres e 73 crianças.
Coleta de dados
A coleta de dados ocorreu entre julho de 2017 e julho de 2018 por meio de visitas domiciliares, com aplicação de questionários semiestruturados e aferição de medidas antropométricas, realizadas por estudantes de graduação e pós-graduação na área da saúde previamente treinados. As questões sobre características socioeconômicas do domicílio e da família foram preferencialmente respondidas por uma moradora do sexo feminino com mais de 18 anos. As questões sobre crianças menores de 5 anos foram respondidas pela mãe ou responsável.
Variáveis
Caracterização socioeconômica, de infraestrutura e de segurança alimentar
Foram avaliadas variáveis relacionadas a serviços públicos e infraestrutura (fonte de água; destinação do lixo); participação em programas de transferência de renda; renda familiar mensal; sexo, escolaridade e condição de trabalho do chefe da família. A classificação socioeconômica dos domicílios foi feita com base em adaptação do Critério de classificação socioeconômica Brasil 2019 (13).
A situação de segurança alimentar do domicílio foi avaliada utilizando-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, um instrumento de medida de percepção e experiência com a fome composto por 14 questões. A classificação final baseia-se no somatório de respostas afirmativas às questões. Os pontos de corte, considerando a presença ou ausência de moradores menores de 18 anos no domicílio, são, respectivamente: Segurança Alimentar (0 pontos), ou Insegurança Alimentar Leve (1-3; 1-5), Moderada (4-5; 6-9) ou Grave (6-8; 10-14) (14).
Saúde, estado nutricional e qualidade da dieta
Crianças
Foram coletadas informações sobre vacinação com consulta direta à Caderneta da Criança, solicitada pelo entrevistador à família; e suplementação de vitamina A e de ferro (crianças de 6 a 24 meses), a partir de relato da mãe.
Para avaliação do estado nutricional foram aferidos peso e estatura, usando balança digital marca Seca com capacidade de 200 kg, graduação de 100g, estadiômetro portátil marca Seca, para medições de até 205 cm e um estadiômetro infantil marca Seca para as crianças menores de 2 anos. Foram calculados os indicadores estatura para idade e Índice de Massa Corporal por idade, classificados de acordo com os pontos de corte preconizados pela OMS (15).
Os dados de consumo alimentar foram coletados por meio de um Recordatório Alimentar 24 horas (R24h) e, para as crianças menores de 24 meses, foi aplicado também um formulário contendo questões relativas ao aleitamento materno (AM) e ao consumo alimentar no dia anterior, baseado no formulário de marcadores de consumo alimentar preconizado pelo Ministério da Saúde (16).
O AM foi avaliado com base nos indicadores propostos pela OMS (17): aleitamento materno exclusivo em menores de 6 meses (AME); aleitamento materno continuado aos 12 meses; aleitamento materno entre menores de 24 meses.
A avaliação da dieta foi realizada para crianças de 6 a 59 meses e englobou três indicadores:
(a) diversidade da dieta (DD) (18, 19): considerou-se dieta diversa quando foram consumidos no dia anterior alimentos pelo menos 5 dos 6 grupos alimentares (cereais/raízes/tubérculos, feijões, legumes e verduras, frutas, carnes e ovos, leite e queijos) definidos em acordo com as recomendações dietéticas para a população brasileira (20) e para crianças brasileiras menores de 2 anos (21), independentemente da quantidade ingerida;
Para as crianças de 6 a 23 meses, foram utilizados os mesmos grupos alimentares das crianças maiores de 23 meses. Mas, neste primeiro grupo etário, o consumo no grupo dos leites e queijos foi pontuado se houve ingestão tanto de leite materno, quando a criança era amamentada, quanto para outros leites, para crianças que não estavam sendo amamentadas. Ressalta-se que a recomendação é manter a amamentação pelo menos até os dois anos de idade, e nesse caso não seria necessário oferecer outro tipo de leite, além do materno (21). Contudo, considerando que mais da metade das crianças nessa faixa etária não recebia mais leite materno à época da pesquisa, e que dividir o grupo de crianças menores de 2 anos em amamentadas e não amamentadas poderia reduzir ainda mais a robustez da análise, optou-se por realizar a construção do indicador da forma descrita.
(b) consumo de AUP no dia anterior: considerou a ingestão de um ou mais alimentos deste grupo no dia anterior, de acordo com a Classificação NOVA, como proposto pelo Guia Alimentar para a População Brasileira (20).
(c) qualidade global da dieta: agregação dos dois indicadores anteriores, considerou-se como dieta de baixa qualidade quando não foi alcançada a diversidade mínima da dieta e ocorreu, concomitantemente, o consumo de pelo menos um AUP no dia anterior. Este indicador foi inspirado na proposta de Contreras et al., 2015 (22), que avaliou a exposição à dupla carga de alimentação subótima (pelo menos uma prática de alimentação complementar inadequada + consumo de um AUP) entre crianças entre 6 e 35 meses. No presente estudo, considerou-se como prática alimentar inadequada apenas o não alcance da diversidade mínima da dieta.
Adicionalmente, calculou-se também a proporção de cada um dos grupos de alimentos por grau de processamento em relação ao total de alimentos registrados nos R24h. Os alimentos foram listados e classificados em um dos grupos: Grupo 1: alimentos in natura e minimamente processados + ingredientes culinários; Grupo 2: alimentos processados; Grupo 3: AUP. Posteriormente foi calculada a proporção dos 3 grupos, considerando o quantitativo de alimentos em cada um dos grupos, em relação ao número total de alimentos registrados. A lista dos alimentos com a classificação por grau de processamento está disponível no Material Suplementar 1.
Mulheres
As medidas antropométricas utilizadas para avaliação do estado nutricional foram peso, estatura e circunferência da cintura, coletadas usando os mesmos equipamentos utilizados para a avaliação de crianças, com exceção do estadiômetro infantil. A classificação do estado nutricional foi feita pelo Índice de Massa Corporal (IMC) e pela circunferência da cintura, seguindo os pontos de corte preconizados pela Organização Mundial da Saúde. Para a circunferência da cintura, utilizou-se o ponto de corte de 80 cm (OMS) (23).
A avaliação da dieta englobou os mesmos três indicadores usados para crianças: (a) diversidade da dieta; (b) consumo de AUP no dia anterior; e (c) qualidade global da dieta. Também foi calculada a participação proporcional dos grupos de alimentos por grau de processamento no total de alimentos consumidos.
Análise estatística
Foram apresentadas as frequências e proporção das variáveis sociodemográficas, de saúde e nutrição. Para o número de grupos alimentares consumidos foram apresentadas as médias e desvios-padrão por grupos etários.
Para avaliar os fatores associados aos indicadores diversidade e qualidade da dieta, usou-se teste Exato de Fisher ou de qui-quadrado de Pearson. As variáveis independentes incluídas na análise de mulheres foram idade, escolaridade e situação conjugal da mulher; renda mensal familiar; classificação socioeconômica, número de moradores e sexo do chefe do domicílio; situação de segurança alimentar domiciliar; e participação em programa de transferência de renda. Para crianças, incluiu-se além das variáveis já citadas, a diversidade e qualidade da dieta materna e o sexo da criança. Nesta análise foram incluídos apenas os casos com todos os dados completos. Considerou-se estatisticamente significativa a análise com valor de p < 0,05.
Adicionalmente, procedeu-se a análise de regressão logística com estimativa da Razão de produtos cruzados (Odds ratio) e seu intervalo de confiança de 95%, tendo como desfechos a dieta diversa e a baixa qualidade da dieta de crianças de 6 a 59 meses e de mulheres. Foram realizadas as análises brutas e as variáveis que tiveram p<0,20 foram incluídas na regressão múltipla, que em seguida passou pelo método backward até que apenas variáveis com p-valor de aproximadamente 0,2 permaneceram no modelo final. As análises foram conduzidas no Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 21.
O poder da amostra no grupo de crianças foi calculado considerando os resultados das análises de regressão múltipla para a associação entre a dieta diversa dessas e de suas mães (bicaudal, Odds Ratio de 0,4, proporção de 42,6% de dieta diversa, amostra de 47, alfa de 0,05, R² de 0,5% e distribuição binomial) e retornou o valor de 20%. De forma semelhante, foi feito para as mulheres usando a associação entre dieta diversa e estimativa de renda familiar mensal em salários-mínimos (bicaudal, Odds Ratio de 4,9, proporção de 25,8% de dieta diversa, amostra de 186, alfa de 0,05, R² de 25,4% e distribuição binomial) que resultou em um poder de teste de 99%. Esses cálculos foram conduzidos de forma post hoc para regressão logística no G*Power 3.1.9.7.
Aspectos éticos
A pesquisa foi iniciada após anuência dos representantes das comunidades e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas com o número 4735646415.4.0000.5013.
Resultados
Foram avaliadas 203 mulheres adultas e 73 crianças menores de 60 meses (8 crianças < 6 meses; 24 crianças de 6 a 23 meses; 41 crianças de 24 a 59 meses) vivendo em nove comunidades quilombolas em Goiás. Entre as mulheres, 65 eram mães biológicas ou responsáveis das crianças incluídas no estudo.
Caracterização socioeconômica, de infraestrutura e de segurança alimentar
Com exceção de uma, as demais comunidades visitadas localizam-se a mais de 5 km da sede do município, onde acessavam a maior parte dos serviços públicos. Três comunidades possuíam escola pública dentro do território e uma possuía Unidade Básica de Saúde. Em relação às condições domiciliares, 47% das mulheres (n=95) e 38,3% das crianças (n=28) viviam em domicílios cuja renda mensal estimada era de até 1 salário-mínimo (R$ 937,00 à época da coleta) e cerca de 80% estavam nos estratos socioeconômicos D e E. A maioria dos domicílios era chefiada por homens e, 60,6% das famílias das mulheres e 76,7% das famílias das crianças participavam de programas de transferência de renda. Com relação à situação de SAN, 27,2% das mulheres e 26% das crianças viviam em domicílios com InSAN moderada ou grave. Entre as mulheres, 52,2% tinham menos de 8 anos de estudo e mais de 80% declararam ter emprego informal ou não estar trabalhando (Tabela 1).
Tabela 1. Caracterização socioeconômica e de acesso a serviços públicos de mulheres e crianças menores de 5 anos em domicílios de 9 comunidades quilombolas de Goiás (2018).
Saúde, estado nutricional e qualidade da dieta
Crianças
O registro de vacinação estava adequado ao calendário vacinal preconizado pelo Ministério da Saúde para 86,3% das crianças. A suplementação com vitamina A foi ofertada a 55,4% (n=36) das crianças entre 6 e 59 meses. Apenas 17,4% (n=4) das mães de crianças entre 6 e 23 meses relataram que receberam o suplemento de sulfato ferroso nos últimos 3 meses. Das crianças investigadas, 5,8% (n=4) apresentaram déficit estatural, e 20,2% excesso de peso (sobrepeso e obesidade) (Tabela 2).
Entre as 8 crianças menores de 6 meses avaliadas, nenhuma estava em AME. O AM continuado foi prevalente entre 77,7% (n=7) das crianças menores de 12 meses e o AM em menores de 24 meses foi de 46,9% (n=15) (Tabela 2).
O escore médio de DD para crianças de 6 a 23 meses (n=23) foi 3,83 (DP=1,26) (não apresentados em tabela) e 73,9% não atingiram a diversidade mínima da dieta. Entre as maiores de 24 meses (n=34), o escore médio de DD foi 4,32 (DP=1,27), e 88,2% delas não tiveram uma dieta diversa no dia anterior. Quase metade das crianças avaliadas (47,4%) apresentavam dieta de baixa qualidade (Tabela 2). Por outro lado, apenas 10,5% das crianças atingiram a diversidade mínima e não consumiram nenhum AUP no dia anterior.
Das 57 crianças entre 6 e 59 meses com dados de consumo alimentar, 75,4% consumiram pelo menos um AUP, e mais da metade (52,6%) consumiu 2 ou mais AUP no dia anterior. Os AUP mais consumidos foram biscoitos salgados e doces e sucos artificiais em pó. No grupo de crianças menores de 24 meses, entre os 51 alimentos registrados a partir do R24h, 37,3% (n=19) eram ultraprocessados. Para as crianças maiores, dos 89 alimentos citados, 30,3% (n=27) eram ultraprocessados.
A análise de fatores relacionados à diversidade e à qualidade da dieta foi realizada para 47 crianças entre 6 e 59 meses com dados completos para as variáveis independentes avaliadas. A maior DD associou-se à menor quantidade de moradores no domicílio (p=0,039), à classificação socioeconômica B/C (p=0,026) e à dieta diversa materna (p<0,001). Para as crianças, a única variável que apresentou associação significativa com a baixa qualidade da dieta foi a menor DD materna (p=0,046) (Tabela 3).
As análises brutas e múltiplas para crianças são apresentadas na Tabela 4. No modelo múltiplo, verificou-se uma maior chance de dieta diversa nas crianças cujas mães também tinham dieta diversa. Observou-se também menor chance de baixa qualidade da dieta quando as mães apresentavam dieta diversa (única variável que permaneceu no modelo múltiplo com p<0,20) (Tabela 4).
Mulheres
A média de idade das mulheres foi de 39 anos (DP=11,71). No que diz respeito ao estado nutricional, a avaliação pelo IMC mostrou que 61,2% (n=123) apresentavam excesso de peso (sobrepeso e obesidade) e 2,5% (n=5) estavam com baixo peso; 61,6% (n=119) estavam com medida da circunferência da cintura elevada, indicativo de risco aumentado de doenças cardiovasculares.
Na avaliação do consumo alimentar (n=191), o escore de DD foi 3,81 (DP=1,02), sendo que 26% delas apresentaram uma dieta diversa. Para o subgrupo de mulheres mães de crianças menores de 5 anos (n=63), o escore médio da DD foi 3,75 (DP=1,07), e 30% tiveram uma dieta considerada diversa (Tabela 2).
A prevalência de consumo de pelo menos um AUP no dia anterior foi de 57,9% entre todas as mulheres, sendo os mais consumidos os biscoitos salgados e doces e sucos artificiais em pó. Do total de 137 tipos de alimentos consumidos pelas mulheres no dia anterior, 34 (24,8%) eram ultraprocessados.
A análise de fatores relacionados à diversidade e à qualidade da dieta incluiu 186 mulheres com dados completos para as variáveis independentes avaliadas. Uma adequada DD esteve relacionada com maior renda (p<0,001), não participação em programa de transferência de renda (p=0,038) e à maior escolaridade (p<0,001). Em relação à baixa qualidade da dieta, somente foi verificada uma relação significativa com menor renda (p<0,001).
Tabela 2. Variáveis de saúde de saúde, estado nutricional e práticas alimentares de crianças de 0 a 59 meses e mulheres em 9 comunidades quilombolas de Goiás (2018).
Tabela 3. Associação de fatores sociodemográficos, maternos e da criança à diversidade e à qualidade da dieta de crianças de 6 a 59 meses e mulheres em 9 comunidades quilombolas de Goiás (2018).
No modelo múltiplo para dieta diversa em mulheres, verificou-se uma menor chance desse desfecho nas que viviam em domicílios com 5 ou mais moradores e maior chance de dieta diversa naquelas com estimativa de renda familiar com mais de 1 salário-mínimo mensal e naquelas com 8 anos de estudo ou mais. Já no modelo de baixa qualidade da dieta em mulheres, verificou-se que houve menor chance desse desfecho que residiam em domicílios com 5 ou mais moradores e maior chance para aquelas com estimativa de renda familiar mensal de mais de 1 salário-mínimo (Tabela 5).
Tabela 4. Associação de fatores sociodemográficos, maternos e da criança à diversidade e à qualidade da dieta de crianças de 6 a 59 meses em 9 comunidades quilombolas de Goiás (2018).
Tabela 5. Associação de fatores sociodemográficos, maternos e da criança à diversidade e à qualidade da dieta de mulheres em 9 comunidades quilombolas de Goiás (2018).
Discussão
As mulheres e crianças das comunidades quilombolas avaliadas no estudo vivenciam uma situação de vulnerabilidade econômica e exclusão social, apresentam dieta de baixa qualidade e alta prevalência de excesso de peso, reforçando achados existentes para a população quilombola de Goiás e de outras regiões do país e apontam para uma invisibilidade desses grupos pelos agentes públicos (4,5,10,11). As mulheres e crianças pequenas são mais suscetíveis às consequências negativas das desigualdades socioeconômicas e em saúde, o que se agrava quando se trata de população negra (24) em especial, comunidades afrorrurais (9). A localização das comunidades na região rural pode configurar-se como dificultador para o acesso a serviços públicos, como escolas e unidades de saúde. Isso implica repensar a organização desses serviços, considerando não apenas a distância dos centros urbanos, mas as características das comunidades, os recursos humanos e tecnológicos necessários para garantir atenção equitativa em saúde e outras áreas (9,25).
As iniquidades constatadas neste estudo são experienciadas também em comunidades tituladas (7). O processo de titulação da terra não garante, por si só, a melhoria das condições de vida nas comunidades quando não há, de fato, uma agenda política comprometida com a realização dos direitos dessa população. Dados da pesquisa realizada nessas comunidades mostraram que metade das famílias estavam em InSAN grave (6), situação pior em relação às comunidades avaliadas neste estudo, onde menos de 10% dos domicílios encontravam-se em tal situação. Ainda assim, mais de 60% dos domicílios das comunidades quilombolas de Goiás visitadas apresentaram algum grau de InSAN.
Silva et al. (2017) avaliaram comunidades rurais quilombolas e não quilombolas no Nordeste brasileiro e identificaram que, apesar da prevalência de insegurança ser alta em todas as comunidades estudadas, era maior e mais grave nas quilombolas (8). Em um estudo de base populacional com domicílios com crianças brasileiras menores de 5 anos, observou-se níveis de InSAN na região Centro-Oeste quase 3 vezes menor do que no nosso estudo, reforçando a maior frequência das inequidades nas comunidades quilombolas (26) e que pode ter piorado durante a pandemia de COVID-19 (27).
No âmbito das práticas alimentares infantis, a manutenção do AME por 6 meses parece ser um dos maiores desafios, com oferta precoce de chás, outros leites e alimentos, práticas permeadas por questões culturais e conhecimentos tradicionais (28,29). No contexto de InSAN em que vivem as comunidades quilombolas, o AM, que tem grande importância para a nutrição e saúde da criança, com repercussões ao longo da vida (30), pode ter uma relevância ainda maior, sendo uma estratégia segura e de baixo custo para alimentação infantil (31,32). Por isso, é essencial que ações de promoção, proteção e apoio ao AM considerem as especificidades sociais e culturais dessas famílias.
A análise do consumo alimentar das mulheres e crianças quilombolas mostrou um padrão alimentar monótono, com diversidade e variedade alimentar restritas e alto consumo de AUP, dados que acompanham a tendência observada para a população brasileira e mundial (33). Em estudo com crianças brasileiras entre 6 e 36 meses, apenas 20% apresentaram uma dieta diversa (34), e outro estudo de base populacional evidenciou que pelo menos 50% das crianças brasileiras e da região Centro-Oeste apresentaram dieta diversa, sendo mais prevalente nas crianças com idade entre 6 e 23 meses (35). Fatores que denotam inequidades, como viver em domicílio com InSAN, baixa escolaridade materna, domicílio na zona rural e falta de contato da mãe com o serviço de saúde agravam a situação e apontam uma associação com uma DD ainda menor (22,35,37-40).
A DD está associada com crescimento linear em crianças e com a adequação de macro e micronutrientes em crianças e adultos, sendo um bom proxy da qualidade da dieta e tendo relação com desfechos positivos em saúde (19,40,41). Nosso estudo apontou que a possibilidade de a criança ter uma dieta diversa e dieta de melhor qualidade é maior quando a mãe também tem uma dieta diversa. Entretanto, pela característica do estudo, não é possível afirmar se esta é uma influência do comportamento alimentar materno ou dos cuidadores sobre a criança ou resultado do maior acesso da família como um todo a alimentos variados.
Se entre as crianças não pôde ser observada uma influência direta dos fatores socioeconômicos na diversidade da dieta, entre as mulheres quilombolas, a escolaridade e a renda tiveram impacto substancial neste indicador. Entretanto, de forma oposta, a maior renda foi um fator de risco para a baixa qualidade da dieta nas análises múltiplas. Esse resultado pode sugerir, como já encontrado em outros estudos, que em alguns grupos com maior renda há maior consumo de AUP, elemento que compõe a análise da qualidade da dieta no presente estudo e pode estar causando esse efeito. Contudo, é necessário aprofundar a compreensão em relação ao papel da renda e do consumo de AUP nos diferentes grupos sociais. Mas, cabe ressaltar que já há um conjunto importante de evidências sobre as iniquidades sociais em alimentação e nutrição, mostrando que grupos populacionais com menor posição socioeconômica, incluindo baixa renda e escolaridade, de cor/raça preta e que vivem em áreas rurais, tem mais dificuldade de atingir uma dieta adequada e saudável (43,44).
Mais de 75% das crianças e cerca de 30% das mulheres do estudo consumiram pelo menos um AUP no dia anterior. Resultados semelhantes foram encontrados em estudo que avaliou o consumo alimentar de crianças entre 12 e 60 meses em comunidades quilombolas de Alagoas, Brasil (42) e também em um inquérito nacional com crianças brasileiras menores de 5 anos (35), porém nesse último estudo, as crianças maiores de 2 anos ingeriram mais AUP que as mais jovens. Em pesquisa sobre consumo de AUP e síndrome metabólica em mulheres quilombolas de Alagoas, esta prática alimentar foi frequente e o alto consumo desses alimentos esteve associado com maior prevalência de hipertensão, enquanto que menor escore de consumo de AUP foi protetor contra diabetes e baixo HDL (45).
A situação da disponibilidade de alimentos em territórios quilombolas titulados, na qual bolachas, biscoitos, refrigerantes e sucos artificiais eram mais comuns nos domicílios que verduras e hortaliças (7), dialoga com os resultados encontrados. Já há evidências robustas de que o consumo elevado de AUP está associado a desfechos negativos em saúde, especialmente o desenvolvimento de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis em crianças e adultos (46).
Foram constatadas altas prevalências de excesso de peso em crianças e mulheres, sendo que nas crianças, a prevalência foi maior que nos inquéritos nacionais (47,48). Apesar deste cenário, sabe-se que há ainda a população quilombola ainda está mais suscetível à desnutrição e carências nutricionais (9,49,50). Compreender e atuar frente a má nutrição em suas diferentes formas, que estão interrelacionadas e são frequentemente coexistentes, envolve considerar que suas raízes incluem, além de elementos biológicos e nutricionais, um componente socioeconômico e político, profundamente relacionado com a qualidade da alimentação à qual a população tem acesso (51).
Além de ações mais amplas, como os programas de transferência de renda e políticas de segurança alimentar e nutricional, têm sido implementadas iniciativas mais específicas destinadas à população quilombola, como o Programa Brasil Quilombola (52). Contudo, o programa funcionou mais como um dispositivo de inclusão simbólica das comunidades quilombolas na agenda pública brasileira, do que propriamente como um concretizador de ações efetivas de mudança na realidade (53).
O tamanho da amostra, a heterogeneidade no número de famílias por comunidade e a escassez de registros demográficos oficiais mais completos dificultaram análises mais robustas e estratificadas por comunidade, sendo limitações importantes do estudo. Estima-se que o total de domicílios incluídos na pesquisa em Goiás (sem considerar o recorte de domicílios com mulheres e crianças) representou 60 a 70% do total de domicílios existentes nestas comunidades à época do estudo, de acordo com informações fornecidas pelas lideranças quilombolas. Mesmo com alguns resultados semelhantes aos encontrados para as mulheres, a maioria das análises para o grupo de crianças não apresentou significância estatística, o que possivelmente se deu em razão do baixo tamanho amostral para essa faixa etária.
Apesar das limitações, o estudo inova em fazer uma avaliação de múltiplos aspectos em comunidades quilombolas em Goiás, abrangendo diferentes regiões do Estado, e com enfoque em práticas alimentares. Apesar de os resultados não poderem ser extrapolados para outras populações, o cenário encontrado possivelmente se assemelha ao de outras comunidades quilombolas rurais no estado e em outras regiões do país, contribuindo para a compreensão sobre as condições de vida dessa população. O panorama traçado por este estudo evidencia a urgência de ações efetivas e adaptadas culturalmente para a melhoria de acesso à alimentação adequada e saúde para essa população.

Referências
1. Calheiros FP, Stadtler HHC. Identidade étnica e poder: os quilombos nas políticas públicas brasileiras. Rev Katálysis. junho de 2010;13:133–9.
2. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Quilombos das Américas. Articulação de Comunidades Afrorurais. Brasília: IPEA; 2012. 79 p.
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Silva, P. O, Schincaglia, R. M., Santos, L. M. P, Gubert, M. B.. Condições de vida, qualidade da alimentação e fatores associados em mulheres e crianças de comunidades quilombolas em Goiás, Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/jan). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/condicoes-de-vida-qualidade-da-alimentacao-e-fatores-associados-em-mulheres-e-criancas-de-comunidades-quilombolas-em-goias-brasil/19056?id=19056

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