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0323/2025 - COORDENAÇÃO, INTEGRAÇÃO E CONTINUIDADE DE CUIDADOS: O QUE PRECISAMOS APÓS 30 ANOS DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA?
COORDINATION, INTEGRATION, AND CONTINUITY OF CARE: WHAT DO WE NEED AFTER 30 YEARS OF THE FAMILY HEALTH STRATEGY?

Autor:

• Eduardo Alves Melo - Melo, E. A. - <eduardo.melo@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5881-4849

Coautor(es):

• André Schimidt da Silva - Silva, AS - <andre.schimidt@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7064-5731



Resumo:

A Estratégia Saúde da Família (ESF), após seus trinta anos, apresenta inúmeros avanços na reorientação do modelo assistencial, ampliação do acesso com equidade e na saúde da população. Contudo, o cuidado em rede permanece como questão não resolvida. Este artigo aborda desafios e possibilidades para a coordenação do cuidado na ESF, modo predominante de conformação da atenção primária à saúde (APS) no Brasil, considerando sua posição nas redes de atenção e regiões do SUS. Inicialmente, realizou-se breve caracterização da situação no que tange à coordenação, continuidade e integração de cuidados. Além de reconhecer a face interna da coordenação, no âmbito próprio da APS (relacionando-se também com o acesso, qualidade e ofertas de cuidado), elementos decisivos para a coordenação que extrapolam a APS são tematizados, notadamente aqueles ligados à organização e funcionamento da atenção especializada (AE), sem perder de vista sua relação com desafios estruturais do SUS. Exploram-se também alguns dispositivos de coordenação, integração e continuidade do cuidado entre APS e AE. Por fim, o artigo apresenta proposições de estratégias técnico-políticas para avançar na coordenação do cuidado pela ESF.

Palavras-chave:

atenção primária à saúde, Estratégia Saúde da Família, coordenação do cuidado, atenção especializada.

Abstract:

The Family Health Strategy (ESF), after thirty years, has shown numerous advances in reorienting the care model, expanding equitable access, and improving population health. However, networked care remains an unresolved issue. This article addresses the challenges and possibilities for care coordination within the ESF, which is the predominant model for structuring primary health care (PHC) in Brazil, considering its role within care networks and regions of the Unified Health System (SUS). Initially, a brief overview of the situation regarding coordination, continuity, and integration of care is presented. In addition to recognizing the internal aspects of coordination within the scope of PHC (also related to access, quality, and availability of care), the article discusses decisive factors for coordination that go beyond PHC, particularly those related to the organization and functioning of specialized care (AE), while keeping in view their connection with structural challenges of the SUS. The article also explores certain mechanisms for coordination, integration, and continuity of care between PHC and AE. Finally, it presents technical-political strategy proposals to improve care coordination by the ESF.

Keywords:

primary health care, Family Health Strategy, care coordination, specialized care.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO: OS AVANÇOS DA APS BRASILEIRA E O DESAFIO PERSISTENTE DA COORDENAÇÃO DO CUIDADO
Após trinta anos da Estratégia Saúde da Família (ESF), a reorientação do modelo de atenção baseada na territorialidade, cuidado de proximidade, equipes multiprofissionais e atuação individual, familiar e coletiva, produziu inúmeros avanços. A expansão do número de equipes (atualmente com mais de 51 mil)1 e da cobertura populacional permitiram a ampliação do acesso e uso dos serviços (fortalecendo o atributo de primeiro contato2), a redução da taxa de mortalidade infantil e da mortalidade de adultos por algumas condições sensíveis à atenção primária à saúde (APS), a melhoria no controle de doenças infecciosas e a redução de desigualdades em saúde3. Esse processo gerou destaque da APS brasileira diante de experiências internacionais consagradas4. Mais que isso, a ESF, combinada com a sua indução federal (via estratégia inovadora de financiamento) e a municipalização da saúde, contribuiu para a materialidade, capilaridade e visibilidade do SUS no seu processo de implementação desde os anos 19905. Na última década, o Programa Mais Médicos favoreceu a renovação dessa visibilidade, provendo uma quantidade inédita de profissionais para a APS em inúmeras áreas com dificuldade de atração e fixação em todo o país6.
Ainda que tais conquistas mereçam e requeiram comemoração, parece-nos oportuno reconhecer também limites e entraves existentes, movimento fundamental para ampliar os efeitos positivos da APS na vida das pessoas, a sua legitimidade e a sua contribuição mais geral para o SUS. Tais limites são em parte condicionados por desafios estruturais do SUS, que envolvem seu financiamento, o processo de regionalização, as relações público-privadas e a conformação de carreiras públicas7. Acrescente-se a isto o passado recente do agravamento de problemas relacionados às condições de vida e saúde diante de crises e da pandemia de Covid-19, bem como aos retrocessos sócio-políticos pelos quais o país passou na última década.
Diante da heterogeneidade das experiências do SUS (e da APS em particular) existentes nos municípios brasileiros, ainda há questões a serem enfrentadas para a ampliação do acesso aos cuidados de saúde, como o número de pessoas por equipe, a violência armada nas regiões metropolitanas, a distância nas regiões rurais remotas, formas limitadas de comunicação e contato dos usuários com as equipes além de outras barreiras organizacionais (organização de agendas, horários de funcionamento, mecanismos de adscrição etc.)8,9,10.
No que tange aos trabalhadores, destacam-se a progressiva precarização, terceirização e quase ausência de carreiras11 (a despeito de as UBS serem quase que exclusivamente públicas e estatais), bem como a regulação ainda insuficiente da formação de profissionais e especialistas, tendo como um dos seus impactos o insuficiente número de médicos com residência ou especialização em Medicina de Família e Comunidade, ainda que crescente12.
Neste cenário, o foco deste artigo é a coordenação do cuidado, um atributo essencial da APS, internacionalmente reconhecido e adotado pela Política Nacional de Atenção Básica. Considerou-se a coordenação na situação atual da ESF e em conexão com outros atributos da APS, a exemplo do que ocorre com os princípios do SUS, em que universalidade, equidade e integralidade precisam ser vistos como um tripé com efeito de conjunto e não isoladamente, ainda que cada princípio tenha a sua singularidade13.
Desta forma, o artigo aborda desafios e possibilidades para a coordenação do cuidado na ESF, tendo como pano de fundo o seu lugar nas redes e regiões do SUS. O debate sobre a posição da ESF na rede de atenção à saúde tem seu caráter oportuno renovado na conjuntura atual, em que o Ministério da Saúde (MS) apresenta, pela primeira vez, uma nova e complexa política, buscando induzir uma organização diferente da atenção especializada. Por meio de um novo modelo de financiamento, busca-se responder diretamente uma das principais insatisfações da população com o SUS, a saber: os longos tempos de espera para consultas e exames especializados.
É importante lembrar que a integração de cuidados é atravessada por questões contemporâneas nos sistemas de saúde pelo mundo, como seus aspectos econômicos, as desigualdades no acesso, a busca por efetividade dos modelos de cuidado, problemas de saúde complexos e emergentes, a reestruturação produtiva e a transformação digital na saúde, além do envelhecimento populacional e os desafios da atenção às condições crônicas.

Na primeira seção do artigo busca-se resgatar os conceitos de coordenação, integração e continuidade, caracterizar a situação atual e apresentar elementos-chave para pensar a coordenação do cuidado pela APS no SUS. Em seguida, são descritos e problematizados os principais dispositivos de coordenação, continuidade e integração de cuidados implantados ou discutidos no Brasil. Por fim, a título propositivo, é indicado um conjunto de estratégias técnico-políticas que, se levadas a cabo, teriam o potencial de impactar importantes nós críticos para a coordenação do cuidado a partir da ESF.

PENSANDO A COORDENAÇÃO, INTEGRAÇÃO E CONTINUIDADE DOS CUIDADOS A PARTIR DA ESF: NOÇÕES, SITUAÇÃO E ELEMENTOS-CHAVE

A coordenação do cuidado pode ser entendida como a capacidade de gerir o cuidado de uma pessoa, de advogar pelo usuário, de acompanhar e manejar sua trajetória assistencial, de defender sua vida a partir de relações de vínculo e responsabilização14. Contudo, coordenação, integração e continuidade do cuidado são noções que, por vezes, se sobrepõem e se confundem, sendo necessário compreender suas especificidades, interseções e complementaridade. Apenas a título indicativo, vale lembrar que formulações em torno das noções de gestão do cuidado e de governança (ou gestão da) clínica, respectivamente brasileira e anglo-saxã, ao buscarem operar uma aproximação entre os mundos da gestão e do cuidado e reconhecerem distintos atores e espaços que influenciam direta ou indiretamente as práticas de saúde 15, também miram, em alguma medida e a despeito de suas diferenças, em elementos que remetem a esta discussão.
Com alguma frequência, a coordenação do cuidado também é concebida como o gerenciamento ativo e sistemático das ações que integram assistência de uma pessoa, envolvendo dois ou mais participantes deste processo— incluindo o próprio paciente — com o propósito de assegurar a prestação adequada dos cuidados. Esse processo compreende a articulação de profissionais e demais recursos necessários à execução das intervenções previstas, sendo frequentemente viabilizado por meio da troca estruturada de informações entre os responsáveis por diferentes dimensões do cuidado16.
Em uma perspectiva mais abrangente, a integração constitui um processo voltado à criação e manutenção de uma governança entre atores e organizações autônomas, com o objetivo de coordenar sua interdependência, facilitando a cooperação para a execução de projetos de cuidado compartilhados. Esse processo reconhece que nenhuma das partes envolvidas detém a totalidade dos recursos e competências necessários para abordar de maneira eficaz os problemas de saúde de uma população ao longo de seus distintos ciclos de vida17.
De forma recorrente nos estudos sobre o tema, a integração é analisada sob duas dimensões. A chamada integração vertical diz respeito à articulação entre diferentes modalidades de serviços envolvidos nos cuidados em saúde. No contexto da assistência à saúde, isso implica a conexão entre a APS, serviços diagnósticos, ambulatórios especializados, unidades de urgência e emergência e hospitais, dentre outros, com o intuito de assegurar a continuidade do cuidado ao paciente. Por sua vez, a integração horizontal envolve o alinhamento organizacional entre ações, serviços e atores do mesmo âmbito de atenção, com o objetivo de proporcionar uma resposta mais eficaz às demandas de usuários que apresentam múltiplas condições de saúde e necessidades assistenciais complexas18.
A continuidade do cuidado, por sua vez, refere-se ao grau em que uma série de eventos assistenciais distintos é percebida como um processo coerente, articulado e compatível com as necessidades clínicas do paciente, bem como com seu contexto social e pessoal. A dimensão temporal e o foco centrado na pessoa, considerando sua trajetória e singularidade, são os dois elementos-chave da continuidade19. Haggerty e colaboradores19 enumeram três dimensões da continuidade do cuidado: a continuidade informacional, que assegura o uso adequado de dados clínicos e pessoais do paciente; a continuidade gerencial, voltada à coordenação e integração dos planos terapêuticos; e a continuidade relacional, baseada na manutenção de vínculos entre paciente e profissionais de saúde19.
Consideradas tais nuances, distinções e complementariedades entre os termos, propõe-se neste artigo incorporar integração e continuidade à coordenação do cuidado para indicar de modo mais abrangente a imagem-objetivo desejada: evitar a descontinuidade; cuidar oportunamente, de maneira adequada, qualificada e humanizada; e constituir espaços e atores com responsabilidade, legitimidade e condições efetivas para que o cuidado se dê ao longo da rede15. Embora este processo se dê em parte na própria APS ou dentro de um mesmo serviço, a ênfase deste artigo é voltada para o âmbito mais crítico da coordenação na ESF: a articulação da APS com diferentes modalidades de serviços e instâncias. A escolha por este enfoque (entre diferentes serviços de saúde), no entanto, não ignora a relevância e os avanços obtidos no Brasil em termos do trabalho em equipe multiprofissional em diferentes pontos do sistema – atenção psicossocial, SAMU, atenção domiciliar e a própria experiência dos NASF e ESF. Tampouco se pode esquecer que o cuidado integral por vezes requer um trabalho articulado com outras políticas (para além da saúde), inclusive para avançar em processos da saúde como, por exemplo, a desospitalização.
No Brasil se tornou uma espécie de “mantra” dizer que a APS é coordenadora do cuidado e ordenadora da rede, o que em si não é problema a priori, mas pode vir a ser, se cair em uma lógica normativa, idealizada e descontextualizada20. De fato, a vivência empírica dos autores nos serviços e na gestão em diferentes localidades e âmbitos e, especialmente, as publicações de estudos existentes no Brasil (com diferentes abrangências) revelam que a coordenação do cuidado pela APS, quando os usuários necessitam de cuidados especializados ou são cuidados em diferentes serviços, ainda é mais exceção do que regra21,22,23. No contexto internacional, a coordenação do cuidado também se mostra desafiadora, por vezes com capacidade limitada de orientação de fluxos a partir da APS, tanto em relação ao acesso a serviços especializados quanto às ações tradicionais de saúde pública24.
O que se observa com grande frequência no Brasil são níveis irregulares da capacidade de resposta às necessidades dos usuários25; baixa interação entre profissionais de diferentes serviços26,27, numa espécie de quimera da referência e contrarreferência, de caráter burocrático e com baixa adesão dos profissionais22; a regulação assistencial distante da APS e focada em procedimentos isolados e não no acesso a cuidados integrados28, apesar da crescente estruturação de espaços e processos de regulação do acesso29; tempos de espera elevados para a atenção especializada (com variações a depender da especialidade, exame, procedimento ou localidade)30,31; a quase ausência de informações clínicas compartilhadas eletronicamente entre serviços de diferentes modalidades32, em que pese incremento importante de prontuários eletrônicos na APS29; e dificuldades adicionais e ainda mais expressivas de acesso a cuidados especializados para usuários de municípios de menor porte populacional, mesmo havendo pactuações de serviços de referência entre municípios de regiões de saúde33. Ademais, com alguma frequência, usuários pagam do próprio bolso para realizar consultas e exames no setor privado, buscando construir seus próprios itinerários de cuidado por meio de diferentes estratégias34, processo reforçado pela presença de clínicas privadas ditas populares, por vezes expondo usuários a novos problemas e fragmentação do cuidado35.
Diante disto, faz-se necessário caracterizar alguns dos elementos-chave para a coordenação do cuidado pela APS, sem perder de vista que outras dimensões e desafios da APS também influenciam sua capacidade de coordenação, direta ou indiretamente.
Pois bem, o primeiro ponto chave deles diz respeito à capacidade de a APS acolher e criar vínculos com os usuários, o que não é algo que se decreta, como a adscrição formal, mas que se constrói processualmente - vínculo como relação afetiva e de confiança, elemento central para o cuidado, tecnologia leve por excelência. O vínculo podendo funcionar como referência, porto seguro para os usuários, ponto a partir do qual se estrutura o compromisso de lutar para viabilizar o cuidado e acesso ao que o usuário necessita. Vínculo também relacionado à responsabilização pelos casos e seu acompanhamento, estejam os usuários sendo cuidados na APS ou também em outros serviços. Para tanto, o acesso facilitado às UBS é um primeiro passo importante, devendo ser seguido pela capacidade de acompanhamento e de resposta às demandas e necessidades de saúde pelas equipes de Saúde da Família, abordada a seguir.
O segundo aspecto, então, diz respeito à qualidade técnica dos profissionais e ao escopo de práticas e ofertas de cuidado, essenciais para a abordagem e manejo de distintos problemas e condições de saúde e para a legitimidade da APS perante os usuários e junto aos profissionais dos serviços especializados. Trata-se da capacidade clínica e de cuidado da ESF, necessárias para a coordenação do cuidado, expressando capacidade resolutiva e de manejo da APS. Esses elementos influenciam a qualidade e pertinência das demandas por exames, tratamentos e cuidados na atenção especializada, contribuindo para evitar encaminhamentos e prescrições sem indicação, qualificar os modos de encaminhamento (por exemplo, cuidados prévios, preparo do paciente, disponibilização de informações essenciais etc) e também fazer face aos interesses de mercado e ao processo de medicalização que aí se colocam produzindo demandas, ainda que seu enfrentamento vá para muito além da APS.
O terceiro elemento se refere à articulação entre os profissionais na rede de atenção (por alguns autores concebida como colaboração interprofissional36), que pode ser favorecida ou não pela lógica de organização do trabalho e a existência de mecanismos efetivos para interação (remota e/ou presencial).
O quarto aspecto diz respeito à articulação entre serviços e com instâncias de gestão (também nominada colaboração interorganizacional)36, que depende da disponibilidade e distribuição espacial de profissionais e serviços especializados, da relação entre oferta e demanda por ações e serviços em âmbito loco-regional, de fluxos assistenciais, da governança regional, de mecanismos de regulação do acesso a exames, consultas e intervenções, bem como da lógica de organização e funcionamento da atenção especializada.
Por fim, destaca-se, como quinto aspecto, a integração de informações clínicas essenciais dos usuários (informações compartilhadas entre serviços, com atenção à devida proteção dos dados), para evitar dúvidas sobre dados diagnósticos e terapêuticos, repetição ou sobreposição de condutas, atrasos no cuidado por falta de informação, deslocamentos evitáveis e para possibilitar monitoramento do processo de cuidado.
Os dois últimos elementos indicados claramente extrapolam o espaço da APS, além de remeterem a dimensões técnicas, organizacionais e políticas que envolvem o planejamento e gestão de uma rede de serviços. Neste sentido, algumas ponderações são necessárias. A coordenação formal da rede não pode ser feita pela APS (como por vezes se fala), esta cabe aos gestores, com participação social e dos trabalhadores. A ordenação da rede pela APS, por sua vez, depende da abrangência e funcionamento da APS, mas também do quanto a gestão dos diferentes serviços e a macrogestão do SUS nas regiões de saúde incorporam e efetivam esta ideia nas decisões, como por exemplo, antes de (ou ao) implantar um novo serviço hospitalar, ambulatorial ou de urgência e emergência.
Além disso, em algumas situações específicas e menos frequentes, o acesso aos recursos da atenção especializada não necessariamente deve se dar apenas via solicitação da APS às centrais de regulação, como por exemplo na reabilitação especializada pós alta hospitalar, na conclusão de um diagnóstico ou no ciclo pré-operatório. Assim se evita a burocratização que compromete a continuidade do cuidado, mas deve-se garantir a disponibilidade oportuna das informações sobre tal processo para a APS. Por fim, em casos específicos, a coordenação do cuidado pode ser compartilhada entre APS e serviços especializados, como por exemplo em cuidados intensivos de saúde mental, oncologia, terapia renal, em que a situação concreta deve ser cotejada com o ideal de coordenação para encontrar as mediações necessárias, pensando ao mesmo tempo no melhor para cada usuário e na organização de um sistema que se propõe a garantir acesso universal.
Ao invés de só repetir o mantra mencionado no início deste item, faz-se muito necessário interrogar como nossa APS está em relação a cada um destes aspectos, por quê, se é possível mudar, qual o potencial e alcance das iniciativas e medidas em curso e como avançar.

DISPOSITIVOS DE INTEGRAÇÃO, CONTINUIDADE E COORDENAÇÃO DO CUIDADO NO SUS

Nesta seção serão explorados alguns dispositivos que podem fazer avançar a coordenação, integração e continuidade dos cuidados. O quadro 1 apresenta tais dispositivos.

Quadro 1: Dispositivos para coordenação, integração e continuidade do cuidado

Quadro 1

Como se pode ver, alguns dispositivos, como as linhas de cuidado, são de natureza predominante organizacional, outros são de ordem tecnológica-instrumental (como o registro eletrônico). Determinados dispositivos se colocam mais no plano relacional e interprofissional, como o apoio matricial. De certa forma, isto revela distintos âmbitos e estratégias para a coordenação, que não se localizam apenas no trabalho direto dos profissionais de saúde no cuidado, embora quase sempre se materializem ou convirjam para este espaço. Não se trata, por outro lado, de dispositivos com formulação inédita nos dias de hoje, mas, pelas suas potencialidades e experimentações, merecem ser recuperados para ajudar na reflexão acerca das dificuldades e possibilidades para a coordenação. Neste sentido, ainda que brevemente, alguns comentários podem ser oportunos.
As linhas de cuidado permitiriam um transitar dos usuários pela rede de forma mais planejada e com definições claras dos papeis de profissionais e serviços, além de materializar a noção de rede em situações específicas. Apesar de frequente em experiências de grandes cidades (como a linha de cuidado envolvendo pré-natal, parto e puerpério), a implementação em âmbito regional ainda é incipiente, além de ter limites inerentes ao seu caráter focal.
O apoio matricial possui o potencial de contribuir para reduzir a fragmentação do cuidado e ampliar a responsabilização clínica 41. Embora tenha ganhado repercussão com a implementação dos NASF e possa ser realizado presencial ou remotamente, o matriciamento parece se encontrar restrito às interações com as equipes multiprofissionais de suporte na APS42 e aos serviços de Saúde Mental43.
Apesar de frequente em serviços de saúde mental e em alguns centros de reabilitação, projetos terapêuticos singulares ainda são relativamente pouco incorporados na APS, exigindo possivelmente uma adaptação ou formulação diferente do dispositivo para este espaço com base nas especificidades do seu público, tipos de demandas e necessidades de saúde e organização do trabalho.
Quanto à regulação do acesso, observam-se alguns limites, como constrangimentos em determinadas ofertas (regulação da escassez), o foco da regulação em procedimentos isolados (e não em cuidados integrados), a não publicização dos tempos de espera e a coexistência de diferentes filas, sob diferentes gestões/responsabilidades, para um mesmo procedimento em um dado território.
Embora haja experiências exitosas conhecidas44,45, a cogestão entre serviços enfrenta obstáculos políticos e organizacionais para sua viabilização, mesmo em municípios com gestão de diferentes tipos de serviços.
Avanços na última década relacionados ao registro eletrônico em saúde foram observados no SUS, sobretudo a partir da estratégia e-SUS Atenção Básica, que construiu base para uma nova arquitetura da informação, promoveu a integração com alguns sistemas tradicionalmente no campo da vigilância em saúde e a disseminação do uso do prontuário eletrônico na APS46. Contudo, a não efetivação, até o momento, de uma estratégia e ferramenta pública e nacional para registros clínicos na atenção ambulatorial especializada e hospitalar, desenvolvida para se integrar e interoperar com a APS e os processos de regulação assistencial, restringe o compartilhamento de informações entre diferentes tipos de serviços.
Ainda que não tematizados na sua especificidade, cabe assinalar que parte das condições de possibilidade de efetivação destes dispositivos remetem, no geral, à conformação de redes regionalizadas de atenção à saúde e, em particular, à oferta, financiamento, organização e funcionamento da atenção especializada, bem como à dependência que isto tem em relação a dimensões estruturais do SUS. Ademais, ao contrário da APS, é importante lembrar que a atenção especializada do SUS é predominantemente privada (filantrópica ou “pura”/típica) e contratada.

PARA AVANÇAR NA COORDENAÇÃO, INTEGRAÇÃO E CONTINUIDADE DE CUIDADOS A PARTIR DA APS

Considerando os limites e problemas apontados, caracterização dos pontos-chave e os dispositivos existentes, são propostas aqui, em caráter preliminar, algumas estratégias que, uma vez adotadas, poderiam tensionar o atual cenário de baixa capacidade de coordenação do cuidado pela APS para uma outra direção, a de uma coordenação mais efetiva. Mais do que fixar as proposições em si na sua especificidade, sujeitas que são, evidentemente, a mudanças e ponderações de acordo com o cenário, a intenção é evidenciar estratégias com potencial de deslocar os vetores atuais da coordenação, de enfrentar os nós críticos existentes nos aspectos-chave anteriormente mapeados.

a) Para ampliar a capacidade clínica e de cuidado da APS, dentre inúmeras medidas (que certamente não se restringem aos médicos, mas os incluem necessariamente), caberia destacar as seguintes:
• Induzir financeiramente a ampliação do escopo de ações diagnósticas e terapêuticas da APS, incorporando a digitalização e novos arranjos tecnológicos de cuidado (tele-eletrocardiograma, teledermatologia, cuidado à dor crônica, teleconsultas, exames laboratoriais, de imagem, dentre outras)
• Definir meta e prazo viáveis para especialização e titulação de médicos e enfermeiros de família no Brasil, adotando diferentes estratégias de formação e incentivos (itinerários formativos, certificação de competências, ampliação de residências e dispositivos para induzir a sua realização, provas de título de especialista, incentivos financeiros vinculados à formação, exigências e valorização da especialização, dentre outros).

A ampliação do escopo teria o potencial de melhorar a capacidade de resposta e legitimidade da APS, além de diminuir encaminhamentos e a necessidade de deslocamento dos usuários. Requer para isto investimento com incorporação tecnológica e qualificação profissional, além de organização dos processos e condições de trabalho. A titulação possibilitaria aprimorar a qualidade técnica dos profissionais, aproximar o seu perfil da natureza da APS e contribuir para o desenvolvimento e valorização profissional ao longo do tempo.

b) No que se refere à atuação mais direta da APS para viabilizar acesso dos usuários a ações e recursos de serviços especializados, a proposição a seguir merece atenção:
• Descentralização de parte das prerrogativas e funcionalidades de regulação do acesso para a APS, utilizando estratégias como formação básica em regulação, cotas parametrizadas por regiões/unidades com monitoração oportuna do uso e mecanismos de interação entre UBS e centrais de regulação, além de fomento à atuação da APS na gestão das listas de espera para a atenção especializada (com monitoramento e cuidado com usuários que aguardam acesso), bem como ampliação da adoção de protocolos clínicos e de encaminhamento na APS, articulando-os a estratégias como a do Telessaúde.

Como se sabe, na ESF ainda predomina grande distância e baixa interação com profissionais das centrais de regulação, onde se tomam decisões sobre acesso a ações e serviços especializados de modo distante da realidade singular dos usuários e das expectativas das equipes da APS. Ainda que este tipo de estratégia requeira forte suporte da gestão, preparo técnico e tempo/disponibilidade das equipes, pode suscitar uso mais criterioso de recursos especializados, representar a ampliação do campo de visão dos profissionais da APS sobre a rede, além de favorecer maior vínculo e responsabilização pelos usuários em filas de espera, inclusive para acompanhar dinamicamente eventuais mudanças de estados clínicos e atuar junto às instâncias de gestão visando garantir acesso.

c) No que se refere à organização e funcionamento da atenção especializada, recomenda-se:
• Regular a formação de especialistas, incidindo desde a definição de vagas e sua distribuição nas regiões a partir das necessidades do SUS até a obrigatoriedade de os currículos das residências médicas em diferentes especialidades preverem um período na APS realizando apoio matricial, para ampliar compreensão dos especialistas sobre a APS, bem como o desenvolvimento de competências e cultura de matriciamento.
• Implementação de tempos de espera máximos em diferentes linhas de cuidado, etapas assistenciais e especialidades em diferentes regiões do país, com respectivo monitoramento, publicização e incorporação no financiamento, contratação e contratualização de prestadores.
• Financiamento da atenção especializada contemplando, dentre outros aspectos, a obrigatoriedade de realização de matriciamento (presencial e/ou virtual) para a APS (viabilizando interações diretas entre profissionais dos diferentes serviços para resolução de dúvidas e manejo de casos), além de cuidados especializados integrados (ao invés de procedimentos isolados).
• Construir política progressiva de fortalecimento da atenção especializada pública, como a implantação e custeio de policlínicas regionais, para diminuição da dependência do SUS em relação ao mercado privado, inclusive com reforço e colocação do enorme potencial dos hospitais universitários a serviço do SUS, e maior regulação sobre o setor privado na área.

Estas proposições teriam o potencial não apenas de incrementar a disponibilidade de ofertas da atenção especializada e a visibilidade do que acontece neste espaço como também de alterar a sua lógica de funcionamento, frequentemente fragmentada, atravessada por interesses privados e de mercado, marcada por baixíssima interação com a APS e significativas desigualdades regionais e entre municípios. A Política Nacional de Atenção Especializada (PNAES) em parte contempla tais proposições, notadamente a partir da estratégia de “Ofertas de Cuidados Integrados (OCI)” – pagamento pelo conjunto de procedimentos e tecnologias de cuidado de etapas chave de linhas de cuidado, buscando superar a lógica do pagamento por procedimentos isolados. Porém, sua implementação incremental (em algumas especialidades e fases do cuidado), justificada pela complexidade que sua mudança de lógica (do procedimento isolado para o cuidado integrado) implica, bem como a forte dependência da contratação privada (muito necessária no curto e mesmo médio prazo), requerem atenção ao tempo e à direcionalidade das mudanças que pode materializar.

d) Quanto ao caráter estratégico da informação para a coordenação do cuidado, diante da multiplicidade de sistemas e da lentidão para sua efetiva interface e desenvolvimento de funcionalidades, caberia indicar:
• Aceleração de estratégias colaborativas para produção de inovações visando integração e interoperabilidade ente sistemas de informação utilizados na APS, atenção especializada, centrais de regulação e demais serviços, para viabilizar histórias clínicas eletrônicas compartilhadas e facilitar a gestão do cuidado, com primado dos princípios e necessidades do SUS sobre o mercado de tecnologia de informação na saúde.
Ainda que a participação com o mercado privado seja necessária neste campo, novas bases de indução e regulação se fazem necessárias, bem como o investimento na capacidade pública de desenvolvimento e inovação voltada para o SUS.

As estratégias propostas, como se pode ver, incidiriam sobre a APS, mas também sobre a atenção especializada e a gestão, deixando claro que a coordenação do cuidado a partir da APS só pode ser viabilizada plenamente se mudanças ocorrerem também nos serviços especializados bem como na organização e gestão da rede e em políticas estruturantes. Evidentemente, cada proposição requer análise de viabilidade técnica, política e financeira e ajustes que se mostrarem necessários, tendo em mente os problemas e nós críticos que buscam enfrentar e objetivos que visa atingir.
Seria fundamental conceber uma grande estratégia que combinasse elementos das diferentes proposições acima elencadas, assim como outras necessárias. Além disso, que se considerasse fortemente a heterogeneidade das experiências de APS, os alcances e limites do caráter incremental das políticas e o grau de sustentabilidade das experiências inovadoras. Ainda que não se vislumbrem mudanças drásticas, inclusive pelos elementos estruturais e para além da APS que influenciam suas condições de possibilidade, seria muito desejável lograr um grau de uniformidade-abrangência e um tempo-velocidade que tivessem força de efeito demonstração para acumular e abrir efetivamente uma nova avenida de possibilidades neste campo. Considerar não apenas a APS, mas também as demandas e expectativas dos usuários, as novas iniciativas na atenção especializada e a situação mais geral da gestão do SUS podem ser boas balizas neste sentido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sabe-se da grande e fundamental contribuição que a APS brasileira, por sua gigantesca capilaridade em todo o país, tem dado e ainda pode dar no acesso ao SUS, no enfrentamento às desigualdades, no manejo das condições crônicas e dos problemas agravados com a pandemia e a precariedade da vida.
Neste sentido, embora tenhamos muito o que comemorar, é essencial reconhecer limites ainda existentes, como aqueles relacionados à coordenação, continuidade e integração de cuidados, vividos frequentemente pela população sob a forma de dificuldades de acesso aos serviços especializados. Isto evidencia que a consolidação da APS depende do enfrentamento de importantes desafios do SUS, que remetem à regionalização e à conformação da atenção especializada nas redes e seus condicionantes.
Este artigo buscou caracterizar dispositivos de coordenação, integração e continuidade do cuidado já existentes ou em discussão no SUS, identificar nós-críticos, examinar aspectos-chave para a coordenação do cuidado a partir da APS e, finalmente, indicar um conjunto de proposições de estratégias técnico-políticas que, se levadas a cabo, poderiam representar uma acumulação material e simbólica para a APS e para o SUS.
A ESF, por sua característica territorial e comunitária, sendo um lugar fundamental de acesso, cuidado e proteção da vida, tem o potencial de colaborar na constituição de novas sociabilidades no campo que envolve o SUS, os serviços públicos e a população, algo não desprezível diante de múltiplas crises e processo de reconstrução democrática do Brasil. Para isto, no plano concreto, garantir acesso, qualidade e continuidade do cuidado é fundamental.

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ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA AOS 30 ANOS: QUANDO O CUIDADO TEM O QUE DIZER À POLÍTICA

Jairnilson Silva Paim - Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA); Prof. Titular em Política de Saúde, aposentado, do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.

A pergunta que inspira a elaboração do artigo submetido ao debate – “o que precisamos após 30 anos de Estratégia da Saúde da Família?”, poderia, em princípio, insinuar uma resposta genérica e retórica: precisamos que o Sistema Único de Saúde (SUS) seja consolidado como um sistema público, integral e universal de saúde.
Se esta é uma premissa para assegurar as condições de possibilidade das diretrizes que conformam o Programa de Saúde da Família (PSF), reiteradas no formato de Estratégia de Saúde da Família (ESF) e nas primeiras edições da Política Nacional de Atenção Básica em Saúde (PNAB)1, a discussão poderia se deslocar para os grandes impasses do SUS (subfinanciamento, relação público-privada espúria, sub-regulação, questão do trabalho, entre outros) e, consequentemente, para o seu enorme desafio que é político. Aliás, o artigo, desde o seu resumo, promete não perder de vista as questões estruturais do SUS.
Todavia, na medida em que o texto em debate privilegia a dimensão do cuidado, particularmente os atributos de coordenação, integração e continuidade, é forçoso reconhecer o foco sobre os modelos de atenção e de organização2, como componentes centrais de um sistema de saúde. Dessa perspectiva, mesmo considerando as suas relações com aspectos administrativos e políticos, a ESF é tratada na sua especificidade. Este é um dos méritos do artigo pois, sem ignorar os distintos condicionantes da efetividade da Atenção Primária em Saúde (APS)3, faz um esforço de ressaltar o que ainda precisa ser feito para o seu desenvolvimento depois de mais de três décadas de implantação, enquanto uma das principais políticas de saúde do Brasil.
Outro mérito do artigo é destacar os avanços da ESF no período, sem triunfalismos, apoiando-se em publicações nacionais e internacionais. Reconhece a diversidade de experiências do SUS e da APS e assinala a persistência de problemas relativos às condições de vida e saúde da população, às desigualdades, à violência armada, à terceirização e precarização dos trabalhadores de saúde, à ausência de carreira do SUS, à regulação, etc. Além disso, insere a discussão da APS/ESF nas proposições de redes e regiões do SUS, anunciando genericamente possíveis desdobramentos na conjuntura, tendo em vista uma “nova e complexa política” para a atenção especializada apresentada pelo Ministério da Saúde (MS).
Finalmente, mas não menos importante, o texto elenca propostas no âmbito técnico-administrativo para o fortalecimento da APS/ESF/SUS, sem prejuízo de outras proposições políticas a serem consideradas nas análises de coerência, factibilidade e viabilidade, sob a perspectiva do pensamento estratégico. A aposta num “conjunto de estratégias técnico-políticas” pode estimular aos leitores desta publicação e, em última análise, aos atores em cena discutirem um desenho estratégico para viabilizar as proposições formuladas.
O recurso ao quadro conceitual sistematizado por Barbara Starfield, assim como a documentos doutrinários e normativos produzidos no Brasil e na literatura internacional permite examinar noções, elementos-chave e a situação referente aos cuidados, questionando certo “mantra” acionado por técnicos, gestores, assessores e acadêmicos que afirma a APS como “coordenadora do cuidado e ordenadora” da rede. Apontar este véu ideológico que tende a escamotear as contradições do sistema de saúde e secundarizar a distribuição do poder setorial e societário representa um passo fundamental para a análise política em saúde, investigando e agindo sobre a realidade tal como ela é e não como objeto de crenças e utopias. Desse modo, poder-se-ia considerar distintos âmbitos do poder em saúde e desencadear processos, produzindo novos fatos a partir de alianças e coalizões entre sujeitos para alterar a correlação de forças com vistas à consolidação do SUS/APS/ESF. Esta poderia ser uma via para evitar a submissão da estratégia a “uma lógica normativa, idealizada e descontextualizada”.
Portanto, trata-se de um texto cuidadoso, bem argumentado e fundamentado na literatura atualizada. Assim, no que se refere ao cuidado, ou seja, ao conteúdo do sistema de saúde e não ao continente organizacional, administrativo e político, o artigo destaca cinco elementos-chave para a APS: capacidade de acolher e criar vínculos com os usuários; qualidade técnica dos profissionais e das práticas de saúde; articulação entre profissionais nos processos de trabalho; “colaboração interorganizacional”; e integração de informações clínicas. Certamente tais elementos, sustentados por protocolos assistenciais e normas técnico-administrativas, tenderiam a elevar a qualidade, a resolutividade e a efetividade do cuidado, revigorando um modelo de atenção centrado em necessidades.
Ainda que gestores, dirigentes e políticos possam revelar uma consciência mágica ou ingênua acerca de mudança imediata nos modelos de atenção, é responsabilidade da ciência e da técnica em Política, Planejamento e Gestão analisar situações concretas e apontar alternativas para o privilegiamento da qualidade do cuidado por referência à organização, à gestão, à captação de recursos e à política. Na disputa de racionalidades (política, econômica, burocrática e técnico-assistencial) no processo decisório em saúde os sujeitos da APS/ESF não deveriam abrir mão da defesa da racionalidade técnico-assistencial, fazendo a diferença na prestação do cuidado.
Nos dispositivos apresentados para a coordenação, integração e continuidade do cuidado o artigo explicita ideias e propostas elaboradas pela Saúde Coletiva brasileira, inclusive na Saúde Mental, sem esquecer que a atenção especializada no SUS representa um gargalo historicamente produzido, pois é predominantemente privada4. Assim, a APS/SUS tem sido refém do setor privado cuja relação espúria com o SUS, por dentro e por fora, submete-os à lógica do mercado, comprometendo a saúde como direito de todos e como bem público.
O texto em debate é finalizado com uma lista de propostas, admitidas como preliminares, com o propósito de enfrentar os nós-críticos identificados na APS/ESF. Ainda que a maioria dessas propostas sejam pertinentes no que diz respeito ao que fazer, haveria que discutir o como, com quem, contra quem, com que apoio e qual o desenho estratégico para a construção da viabilidade. Diante desses aspectos, podem aparecer dissensos segundo o ponto de vista do debatedor, sobretudo ao considerar a conjuntura, a atual correlação de forças setorial e societária, a urgência dos problemas identificados e a proposta do governo federal centrada no Programa Agora tem Especialidade (PATE), lançado em maio de 2025.
No que se refere à ampliação da “capacidade clínica e de cuidado”, fundamental para a qualidade da atenção, a incorporação de novos meios de trabalho sustentados em conhecimentos derivados de avaliação tecnológica em saúde, assim como a formação, a especialização, a valorização e a titulação de profissionais de saúde (não apenas médicos) para a APS não podem depender, exclusivamente de universidades, de faculdades e de hospitais integrantes do chamado Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS). Ainda que seja indiscutível a relevância das unidades públicas de ensino e pesquisa no avanço da qualidade da atenção, não é possível ignorar o grande crescimento dos estabelecimentos privados, insuficientemente regulados pelo Estado, cujos profissionais formados podem estar muito distantes das prioridades, princípios e diretrizes do SUS. Além disso, por mais investimento que se possa fazer em incorporação tecnológica, quando a qualificação profissional depende de mudanças curriculares, cumpre lembrar o extenso tempo de formação (graduação, residência, especialização e pós-graduação), implicando duração em anos, diante de problemas que são urgentes e precisam ser enfrentados no aqui e agora. Portanto, sem prejuízo dos esforços voltados para a qualificação profissional no âmbito das instituições acadêmicas, novas estratégias da educação permanente em saúde precisam ser acionadas, sob a coordenação do Ministério da Saúde em parceria com as secretarias estaduais e municipais de saúde, para assegurar respostas mais oportunas aos problemas do presente5.
No que concerne à contribuição da APS para assegurar o acesso dos usuários aos serviços especializados - um dos grandes nós do SUS decorrente do subfinanciamento público, do modelo médico-assistencial hegemônico e da sub-regulação do setor privado, a noção de responsabilização ou accountability deveria estar presente nas proposições. Alguém ou alguma instância da APS precisaria responder e prestar conta por esse acesso, discutindo e superando os entraves e contradições que aumentam o sofrimento dos usuários na via crucis que são obrigados a se submeterem no cotidiano do SUS. Descentralizar partes das “prerrogativas e funcionalidades da regulação”, sob o domínio de “cotas parametrizadas” que se traduzem para o cidadão comum e para mídia como “fila da morte”, não parecem suficientes para reduzir tempo de espera, mesmo quando acionam protocolos clínicos ou o telessaúde. Os poderes técnico, administrativo e político das centrais de regulação (CR) podem ser deslocados para instâncias de gestão da APS, como um indicador de democratização do processo decisório, desde quando seja possível abrir a caixa cinzenta das CR para a sociedade visando ao controle democrático exercido pelos conselhos do SUS. Transferir simplesmente parte da regulação para a APS, mas mantendo o segredo burocrático, as cotas para o racionamento da oferta, a opacidade dos mecanismos técnico-administrativos, a falta de transparência para o usuário e seus familiares, bem como decisões autoritárias sem suficiente base técnica e científica, além de não alterarem a dinâmica produtora de filas, deixam de concretizar o direito à saúde e o cuidado digno e de qualidade aos usuários do SUS. A pergunta que não quer calar é quem controla o controlador das CR, seja no nível central, regional e municipal, seja na APS?
No que tange à organização e ao funcionamento da atenção especializada, lamentavelmente, as recomendações embora defensáveis não parecem atingir os propósitos e o ritmo apontados pelo Programa Agora tem Especialistas (PATE). Regulação da formação de especialistas, mudanças curriculares de residências médicas para incluir experiência em apoio matricial, estabelecimento de tempos de espera, mudanças no financiamento para obrigar o matriciamento presencial e/ou virtual em reforço à APS e o fortalecimento de atenção especializada pública parecem ir na contramão das prioridades e estratégias do PATE que aprofundam a “dependência do SUS em relação ao mercado privado”. A Política Nacional de Atenção Especializada (PNAES) e a estratégia de “Ofertas de Cuidados Integrados (OCI)”, definidas na gestão da ministra Nísia Trindade, “requerem atenção ao tempo e à direcionalidade das mudanças”, como alerta o texto e, junto ao PATE, demandam elevação do financiamento público, intervenção estatal na regulação da oferta e da demanda6, bem como a implantação e funcionamento de mecanismos democráticos de monitoramento e avaliação por instâncias técnicas, acadêmicas e conselhos de saúde.
Finalmente, quanto às sugestões técnicas para superar a multiplicidade de sistemas de informação e a sua baixa interoperabilidade, por revelarem uma área sensível e com dimensões éticas, políticas e econômicas, exigem uma discussão maior com especialistas diante dos interesses do “mercado privado” não convergentes, necessariamente, com o interesse público.
Mesmo reconhecendo que “cada proposição requer análise de viabilidade técnica, política e financeira”, além de ajustes que se fizerem necessários, o artigo sublinha que “a coordenação do cuidado a partir da APS” só pode ser plenamente alcançada se forem concretizadas mudanças na atenção especializada, assim como “na organização e gestão da rede”. Este condicionamento, portanto, coloca praticamente entre parênteses boa parte das propostas do artigo já que não se vislumbram “políticas estruturantes” no Brasil a curto ou médio prazo.
Apesar dessas restrições, mais um mérito desta publicação é a possibilidade de suscitar um grande de debate em defesa da consolidação de um SUS predominantemente público e de qualidade onde os acúmulos e conquistas de 30 anos de implementação da ESF joguem um papel significativo no atual processo político. Como alerta a Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde, “o fortalecimento da atenção especializada, com base em um modelo público, integrado e coordenado pela APS, é condição indispensável para garantir o direito universal à saúde e consolidar os princípios que norteiam o SUS desde sua criação”7(2). Nessa perspectiva, a reconfiguração do cuidado teria muito o que dizer à política.

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O DESAFIO PERMANENTE DA CONTINUIDADE DO CUIDADO: DAS PNABS À PNAES

Helvécio Miranda Magalhães Júnior

Uma importante iniciativa tratar dos temas continuidade, coordenação e integração de cuidados nesta agenda comemorativa dos 30 anos da implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF), no campo da Atenção Primária à Saúde (APS). E os autores o fizeram de forma muito interessante e com uma abordagem que nos estimula ao debate. Trata-se de um dos principais desafios contemporâneos do SUS, da sua APS e da própria ESF. E partem de uma análise justa dos grandes feitos da APS brasileira ao adotar a ESF, opção vitoriosa, para dar conta da sofisticada agenda de atributos da APS e de toda sua potência estruturadora para sistemas universais de saúde como o caso brasileiro. Mas este patamar elevado de conquistas objetivas não deve interditar o debate sobre os limites e as dificuldades encontradas para que a APS e a ESF de fato conquistem os corações de grande parte da população brasileira, em especial dos mais pobres e vulneráveis. E esta conquista se expressa concretamente no momento em que os usuários têm suas necessidades atendidas em toda a plenitude. Um outro jeito este, de nominar o nosso belo princípio constitucional da integralidade. E para se ter necessidades em saúde alcançadas, a continuidade do cuidado como os usuários, se torna um fim em si mesmo. Objeto, portanto, de todo o sistema de saúde.
Neste ponto, cabe uma observação central sobre os conceitos trabalhados no artigo. Parece ser um dos objetivos finalísticos centrais do sistema de saúde, a continuidade do cuidado, da forma necessária, mirando a integralidade, ao longo do tempo e da vida de cada um. Se reveste de nuances variadas e multiformes e exige um conjunto de ofertas de serviços e atos de saúde, só possíveis no seu conjunto, com o que podemos chamar de uma rede de atenção à saúde (RAS). E para se ter continuidade permanente do cuidado, há que existir coordenação deste cuidado por um ou mais elementos da equipe de saúde, para articular processos e dispositivos, ofertas e recursos, em variados espaços, de diferentes tecnologias. De outra forma, coordenação deve ser vista como condição para continuidade do cuidado. E a integração de serviços e atos de saúde, a seguir, poderia ser apresentada como um dos meios, em que as ofertas de serviços se relacionam, de uma forma mais harmônica e resolutiva, servindo como um mosaico de nós entrelaçados, ou seja, pontos de uma mesma rede. Falar de integração, é apontar para a necessidade de efetiva rede integrada de atenção. Neste sentido, nos parece que o esforço concreto é conseguir que o sistema dê os meios e ferramentas para que exista coordenação do cuidado, a partir de uma rede integrada, com o fim de se conseguir continuidade do cuidado. Modo este um pouco diferente da visão apresentada no artigo. E concordando claramente com os autores, ao serem categóricos ao afirmar que a possibilidade real de exercício da tarefa de coordenar o cuidado de um ou de milhares de usuários, só pode ser feita na sua plenitude por equipes que tenham a possibilidade de um contato próximo, contínuo e de confiança mútua entre equipes e usuários. Por óbvio, pelas suas características de extraordinária capilaridade em todo o território nacional, pela sua plasticidade de formato e de ofertas, pela proximidade com os usuários, são as equipes da APS e de sua ESF que podem exercer de forma eficiente esta coordenação e alcançar o objetivo da continuidade do cuidado.
Não tenhamos dúvida que parte expressiva da insatisfação dos usuários para com o SUS, se dá exatamente pela não continuidade do cuidado por eles requerido. Sentem-se frustados, inseguros e desamparados, com tanta fragmentação e descoordenação. O problema das filas, mais do que a angústia da espera para seus ocupantes, tendendo para o infinito, é porque se trata de um lugar intangível, de não cuidado. A tragédia do não atendimento efetivo, das idas e vindas, da desinformação como regra, da não transparência e do (não) cuidado. E se atendidos, deparam-se com unidades de atenção especializada focadas em procedimentos e não em seus dilemas, sem nenhuma troca de informação clínica por mecanismos tecnológicos de informação fluindo e sem retorno adequado às unidades de origem. E enfrentar isto, para se ter continuidade, é avançar em mirar a coordenação do cuidado e emponderar o complexo da APS para que este tenha condições de exercer de fato esta função, como protagonista e, muitas das vezes, em parceria com o conjunto de outros serviços necessários.
Em sua primeira parte, o artigo aborda bem aspectos diversos e verdadeiros do diagnóstico do cenário atual do SUS, que impede esta coordenação, ainda que sempre lembrada e reafirmada em normativos formais do sistema. Fizeram bem em lembrar que coordenação não pode ser um “mantra” a ser repetido sempre e é preciso ser concretizada na prática dos serviços e na RAS. Ainda que, sem citar e datar no artigo, tanto a coordenação como a continuidade do cuidado, foram inscritas pela primeira vez na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2011, reafirmando princípios e propondo, pelo menos em parte, um conjunto de dispositivos e soluções para os entraves na concretização destes atributos. Observando a linha do tempo do movimento cumulativo do SUS, a PNAB 2011 convive temporalmente com as iniciativas marcantes de indução das chamadas redes temáticas de atenção à saúde, todas elas em seus enunciados apontando para a necessária coordenação do cuidado pela APS. Mas uma espécie de elo perdido nunca havia sido buscado ou enfrentado. O que parece ser o total anacronismo e postura anti SUS, na forma hegemônica, da chamada atenção especializada brasileira. É como se a PNAB 2011 estivesse por clamar e já anunciasse a necessidade de algo que viria a ser a aposta, anos depois, do que se tornou a primeira Política Nacional de Atenção Especializada (PNAES). E todas as mazelas deste nível da atenção estão declarados no corpo do normativo que deu vida à PNAES. Todos os diagnósticos e observações que são feitos ao longo do artigo, seja no campo interno à APS, ou nos desarranjos e insuficiências no conjunto das redes de atenção, aparecem de forma contundente no texto referido, aí incluídas as demandas pela transformação digital ampla no sistema de saúde, as fragilidades de fixação e qualidade dos profissionais e a ortodoxia e distância entre o aparato da regulação e o mundo do cuidado. E inova nas suas propostas contempladas em oito eixos estruturantes. Não só, como apareceu no artigo em questão, talvez por falta de espaço, como inovação na questão do financiamento. Este, inovando no seu formato e na sua precificação, tem papel relevante, mas sozinho não conseguirá subverter a ordem estabelecida em décadas de repetição de práticas da atenção especializada, que remonta ao velho INAMPS, cuja famosa tabela de procedimentos, dos tempos pré-SUS, vem resistindo há décadas.
Isto posto, necessário voltarmos ao tema da coordenação. Concordando com o conjunto das afirmações do artigo, algumas referências, como contribuição ao debate, precisam ser feitas, no enfrentamento dos desafios existentes. Seguindo o roteiro do artigo, no que foram chamados de elementos chave da coordenação, nos dispositivos e nas propostas ao final.
O primeiro bloco é o interior da APS. Muito ainda em se avançar na efetiva criação de vínculo e responsabilização entre equipes e usuários. Ponto inicial de confiança a ser estabelecida na tarefa da garantia da continuidade do cuidado exigido. Base para a desconstrução do sentimento de desamparo e insegurança dos usuários, ao não encontrar ninguém que pegue simbolicamente na sua mão e os guie na intricada rede de serviços. A tarefa de coordenação, garantidora da continuidade, muitas vezes já falha no interior de cada ESF. A grande maioria dos pacientes crônicos podem ser muito bem cuidados, com pequeno aparato de suporte, apenas no interior da APS. Só uma parte dos usuários vai exigir atuação de fora dos seus limites e em outros serviços. E de que papel estamos falando? De algo que caminha para ser uma fronteira na organização de todos os serviços de saúde, incluindo a APS. A função estratégica de gestão ou navegação do cuidado. Esta poderá ser cumprida em variados formatos, por técnicos definidos ou em rodízio. Não cabe aqui aprofundar nas diversas experiências já em curso. O certo é que há uma necessidade de se definir esta função e as responsabilidades em cada equipe sobre as tarefas pertinentes. O que já existe de experiências no mundo da atenção hospitalar, em que equipes, de alguma forma, já se ocupam da gestão do cuidado, com diferentes nomenclaturas e abordagens, precisa de uma equivalência proporcional nas unidades da APS e nas unidades ambulatoriais de atenção especializada. Esta função concretiza a ideia da coordenação do cuidado. Não é uma generalidade retórica, tem que ter nome e rosto, ser identificada pelos usuários e agir em sua defesa. Se temos mais tarefas, o primeiro passo é isto ser considerado no redimensionamento das equipes, em especial das unidades da APS. E quanto mais capacidade técnica das equipes e mais aparato diagnóstico e terapêutico as unidades básicas tiverem, mais legitimidade terão junto aos usuários, desde que o processo de gestão do cuidado esteja presente sempre. Merece destaque que a PNAES já prevê no seu primeiro programa de expansão e qualificação da atenção especializada, o que veio a ser chamado de Núcleos de Gestão do Cuidado, termo genérico, mas que se refere ao que foi aqui colocado e precisa estar presente em todos os pontos de atenção da rede.
Ainda neste âmbito, é preciso abordar as ferramentas necessárias para esta tarefa de coordenação, sendo a principal delas, a definição política gestora do papel fortalecido para a APS. A delegação de coordenação é do gestor e exige coerência na reestruturação do aparato regulatório e seus dispositivos, que precisam se aproximar da APS, no que a PNAES chamou de regulação de segunda geração. Também os aspectos relacionados ao que pode ser englobado na saúde digital. Envolve os dispositivos de prontuário clínico integrado nos vários serviços e de acesso a todas as equipes, e como bem lembra o texto, a interoperabilidade premente dos sistemas de informação, a bem do cuidado contínuo e integrado. E o mundo inesgotável e pouco explorado ainda no SUS do telessaúde e seus diferentes formatos e possibilidades. Também, as inovações nos sistemas da regulação e no diagnóstico exato do tamanho das filas ou listas de esperas, esta uma tragédia brasileira, melhor ainda, do monitoramento expresso dos tempos de espera por especialidades ou procedimentos. Uma agenda que apenas se inicia no SUS e com um longo caminho a avançar, mas necessária à verificação da continuidade do cuidado, como central na performance das redes de atenção e do próprio sistema de saúde.
Este aspecto anterior se relaciona a seguir, à necessidade de estruturação da rede de atenção, com definição clara dos papéis de cada ponto ou serviço, dos fluxos assistenciais bem lembrados no texto, com as chamadas linhas de cuidado orientadoras dos processos de atenção, com a previsão de interação clara das equipes de cada serviço e de sua responsabilidade com o conjunto da APS. Este desenho precisa ser explicitado, pactuado e monitorado de forma permanente, com mecanismos de governança e vigilância contínuas, objetivando dar transparência aos resultados e a seu replanejamento. Mais uma vez, mecanismos previstos no corpo da PNAES e que demanda uma agenda própria. A mensagem central aqui é que a retórica da coordenação do cuidado pela APS, exige a implementação progressiva de todos estes dispositivos políticos e técnico assistenciais para não ser apenas uma imagem teórica, como tem sido a prática até hoje no SUS.
Por fim, referência às necessárias mudanças estruturais no interior da atenção especializada para dar vida a este novo papel interativo com as unidades da APS, compartilhando informações clínicas e gerenciais do processo de cuidado e prática de apoio matricial. Neste ponto a abordagem corajosa, sem perda do protagonismo das equipes da APS na coordenação do cuidado, exige ousar falar também, em boa parte das vezes, numa solidária co-coordenação do cuidado, em especial nas situações clínicas mais complexas e desafiadoras, sempre a bem do bom cuidado e segurança para os usuários. Que esta bela agenda prossiga como central do SUS e da APS nos próximos trinta anos!























PARA CONTINUIDADE DO CUIDADO E PARA CONSOLIDAR A COORDENAÇÃO DA APS: UM NOVO MODELO DE GESTÃO DA REDE

Gastão Wagner de Sousa Campos – professor titular aposentado da FCM/UNICAMP. (e-mail: gastãowsc68@gmail.com; orcid.org/0000-0001-5195-0215)

Agradeço o convite para dialogar com o artigo “Coordenação, integração e continuidade do cuidado: o que precisamos após 30 anos da Estratégia de Saúde da Família?
Trata-se de um trabalho excelente e oportuno. Em particular, destaco as propostas práticas sintetizadas nos denominados “dispositivos” apresentados no Quadro 1.
Necessitamos de uma reformulação importante no sistema de regulação do SUS. O papel de coordenação da APS somente será possível com reformulação da regulação de redes.
O principal desafio será integrá-lo, transformá-lo em um sistema unificado com uma gestão coordenada e tripartite. É fundamental regular a circulação de usuários em toda a rede do SUS: equipes e serviços dos estados, municípios e da União, hospitais universitários e prestadores contratados1. Construir critérios comuns e de manejo simples para todo e qualquer encaminhamento. No modelo atual de regulação, trabalhadores e usuários do SUS têm pequena capacidade de interferir no acesso. A regulação no Brasil se assenta principalmente em máquinas, aplicativos, em sistema digital programado para ordenar fluxos em acordo com a disponibilidade de vagas. Essa estrutura, que vem sendo armada ao longo dos anos, é necessária, porém, não é suficiente. Está organizada em uma lógica funcional, não tendo aptidão para priorizar a clínica, o risco ou a vulnerabilidade.
Apresento uma nova estratégia para o funcionamento em rede e para a regulação centrada na ampliação do poder de profissionais da saúde e usuários no encaminhamento de casos. Trata-se da construção de um sistema de regulação em que todo, todo, encaminhamento inclua diagnóstico de risco e da vulnerabilidade psicossocial dos usuários. Os objetivos são ampliar o compromisso do sistema com os usuários, aumentar a influência e o poder dos profissionais nesse processo e, ao mesmo tempo, explicitar a responsabilidade daqueles que solicitam acesso a um especialista, a determinado procedimento diagnóstico ou terapêutico. Para tal será essencial a instauração de um clima de confiança nas decisões e competências dos trabalhadores de saúde. Centralmente, todo encaminhamento na rede SUS passaria a se basear no risco e vulnerabilidade psicossocial, avaliadas e registradas por profissional preparado para tal função, permitindo que o acesso solicitado seja atendido em tempo oportuno. Esse novo tipo de procedimento aumentará a concretude das redes de cuidado.
A verificação da adequação do encaminhamento seria sempre examinada a posteriori. Princípio da confiança. Para aperfeiçoar esse modelo a gestão do SUS necessitará de uma rede da apoiadores institucionais que realize contato com equipes e profissionais para discutir adequação dos pedidos, tratando de também ofertar educação permanente com intuito de qualificar o novo sistema de regulação.
Para essa estratégia, sugere-se que a avaliação de risco e de vulnerabilidade seja classificada em 4 níveis de prioridade: Urgência, Prioridades 1, 2 e 3. Essa metodologia necessitará ser utilizada por todo e qualquer profissional que solicitar algum tipo de apoio a outras equipes ou serviços de saúde.
O diagnóstico de Urgência costuma ser realizado por todos profissionais do SUS e, inclusive, pelos próprios usuários. O destino da urgência é a Rede de Urgência e Emergência (RUE), que inclui o SAMU e serviços de várias complexidades. No entanto, as equipes e profissionais da rede de Urgência também deverão utilizar a avaliação de Risco e de Vulnerabilidade para encaminhar seus usuários. Estima-se que 70 a 80% dos encaminhados pela RUE para continuidade do cuidado se destinariam à Atenção Primária. Nesses casos, os profissionais da RUE deverão utilizar a Prioridade 1 para que os usuários sejam atendidos nas Unidade Básicas em 48 horas após a alta: os inscritos na Estratégia de Saúde da Família seriam enviados para as equipes em que estão inscritos e os demais, orientados para buscar uma Unidade Básica conforme seu endereço para efetivar sua inscrição. Os serviços de urgência também encaminham para centros cirúrgicos, UTI, especialidades, entre outras; nessas situações haverá Urgência e os demais graus de prioridade.
Para todos os casos avaliados como Prioridade 1 se recomenda acesso ao cuidado solicitado em 48 horas. Aqueles classificados como Prioridade 2, em 7 a 14 dias; e aqueles em 3, aguardarão na lista por ordem de chegada. Nas ocasiões em que não for possível respeitar os prazos indicados, o usuário será atendido assim que possível com prioridade.
A implementação dessa metodologia para regulação dependerá de mudanças e de avanços na integração e na cogestão do SUS. Trata-se de uma nova cultura institucional, do estabelecimento de um movimento instituinte que dependerá da construção de um projeto consensuado e que necessitará de apoio e colaboração entre Ministério da Saúde, Secretarias dos Estados e da gestão local. Um trabalho continuado e que envolva equipes e usuários durante alguns anos. Espera-se que essa estratégia seja adotada em todos os níveis; ainda quando a atenção primária tenha destaque tanto por sua ubiquidade, capilaridade quanto pelo papel central na coordenação do cuidado.
Para orientar a avaliação de risco e vulnerabilidades dos encaminhamentos será fundamental a construção de um novo estilo de protocolo, mais um mapa para orientar a avaliação de riscos e da vulnerabilidade. Esses mapas serão elaborados segundo uma perspectiva objetiva e de fácil manejo, evitando-se listas exaustivas de doenças. Pensou-se na construção de diagnósticos sindrômicos, que sintetizem conjunto de agravos e de problemas de saúde referentes à dificuldade de andar a vida dos usuários. Assim, haveria protocolos para câncer, saúde mental, dificuldade de mobilidade domiciliar, laboral ou de circulação, comprometimento de sociabilidade, insônia, comportamento violento, dores, agravos crônicos e a própria efetividade do cuidado. Ou seja, a avaliação de prioridade seria baseada em critérios sindrômicos que indiquem alteração das funções vitais e não em listas de doenças.
Vejamos algumas possibilidades: para a Prioridade 1 seriam incluídos todo diagnóstico presuntivo de câncer – em oncologia sempre há urgência em assegurar acesso ao diagnóstico e ao tratamento. Em saúde mental avaliar sintomas ou comportamentos agressivos contra si mesmo, outras pessoas ou ao ambiente. Insônia grave, delírio, e dificuldade importante de sociabilidade, não importando, logo de saída, o diagnóstico psiquiátrico. No campo de movimento e corpo, os principais critérios serão dor e prejuízo à mobilidade.
Em alguns ensaios bastante limitados, verificou-se que entre 20 a 25% dos encaminhamentos realizados pela Atenção Primária foram classificados como Prioridade 1. Assim, essa porcentagem de encaminhamentos, com o desenvolvimento do programa, não entraria em filas de espera. Deverão ser atendidos em até dois dias, 48 horas. Não havendo capacidade imediata de prestação do cuidado, os casos classificados como Prioridade 1 terão acesso antes que outros na lista de espera.
As equipes ou profissionais que estiverem ultrapassando os 20% de encaminhamento como Prioridade 1, serão, a posteriori, identificados e receberão visitas de apoiadores institucionais para orientação sobre uso do mapa/protocolo. Óbvio que a implementação dessa estratégia dependerá de um sistema de gestão capaz de identificar e de orientar os profissionais.
O funcionamento desse sistema será uma potente forma de identificar regiões e redes de cuidado com deficiência de capacidade instalada, indicando a necessidade de investimentos para o SUS. Emendas parlamentares, por exemplo, poderão estar obrigadas a serem utilizadas nesses estrangulamentos. Em dois anos, se conhecerá o mapa de carências daquilo ofertado pelo SUS.
Na Prioridade 2 se incluiriam encaminhamentos para procedimentos eletivos decorrentes de agravos debilitantes ou de risco. Fisioterapias, terapia familiar, agravos intermediários de saúde mental, cirurgias de varizes, vesícula, catarata, entre outras. Além de agravos crônicos que necessitem de apoio especializado.
O nível 3 de prioridade será o de processos sob controle na APS, mas que necessitem de seguimento ou procedimento especial.
Vale uma reflexão cuidadosa sobre as possibilidades de implementação de um projeto de tal ordem no Brasil.
Há desafios técnicos sanitários ligados a construção compartilhada do mapa/protocolo para orientar os encaminhamentos segundo risco e vulnerabilidade psicossocial. Haverá necessidade de um processo compartilhado entre equipes, especialistas e universidade. No entanto, esse Mapa para orientar encaminhamentos por risco e vulnerabilidade psicossocial, dependerá principalmente de um processo formativo em avaliação, em que seu uso sirva como indicador de mudanças. Uma abordagem centralmente acadêmica do instrumento não será adequada se não for combinada com a experiência prática de sua utilização. Os critérios gerais deverão ter emprego universal, ainda que, com certeza, serão necessárias variações nos critérios conforme a região e o território em que seja aplicado, tanto por diversidades na capacidade instalada do SUS quanto pelos diferentes padrões epidemiológicos e culturais existentes no país.
No entanto, acredito que os maiores obstáculos serão aqueles de ordem política e de gestão. Quem terá a competência para julgar o risco, a vulnerabilidade e proceder ao encaminhamento? Até agora não mencionei o termo “médicos”, ainda que obrigatoriamente os médicos do SUS serão encarregados dessa tarefa, tanto da atenção primária quanto especialistas. Entretanto, há as enfermeiras; há os profissionais das equipes Multiprofissionais, na verdade, esse projeto supõe que todos os profissionais do SUS poderão realizar encaminhamento, desde que considerem o Mapa para orientar encaminhamentos e estabeleçam o diagnóstico que justifique o procedimento. A circulação adequada na rede depende de fluxos entre equipes de Estratégia de Saúde da Família e equipes e-Multi, entre APS e serviços especializados, entre os próprios serviços especializados.
É sempre bom lembrar que segundo essa metodologia, os serviços e profissionais de referência estariam obrigados a receber o encaminhamento e tomar medidas cabíveis. Somente então poderão, eventualmente, devolver o caso, depois de um julgamento ao vivo do usuário ou grupo em questão.
Há ainda a complexa governança sistêmica a ser desenvolvida. Esse projeto enfrentará a fragmentação resultante de nosso modelo político federativo. Diferenças partidárias e regionais. Há a dificuldade de gestão em rede dos hospitais e serviços contratados – filantrópicos, do terceiro setor e privados. O sucesso desse novo sistema de regulação depende de que o Mapa regule os encaminhamentos em todas as modalidades organizacionais que façam parte do SUS.
Certamente as estratégias de construção e de implementação desse projeto serão gradativas, precedido por uma etapa de discussão e aprovação pelas instâncias maiores de deliberação do SUS (Comissão Tripartite e Conselho Nacional de Saúde, entre outas).
Felizmente, o cálculo financeiro favorece o projeto. Tratar-se-á, principalmente, de reorganização e de mudanças em recursos já existentes: fortalecimento da rede de regulação, utilização de profissionais já em operação no SUS. O acréscimo de gastos decorrerá, caso sejam aprovados, da ampliação e qualificação da rede de cuidado do SUS.

REFERÊNCIA

1- Machado, José Ângelo. Políticas Públicas Descentralizadas e problemas de coordenação: o caso do Sistema Único de Saúde. Belo Horizonte, tese de doutorado Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG; 2007.













TRÉPLICA DOS AUTORES

Eduardo Alves Melo – Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) e Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (ISC/UFF) - https://orcid.org/0000-0001-5881-4849
André Schimidt da Silva - Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) - https://orcid.org/0000-0002-7064-5731

Recebemos com satisfação as análises e reflexões de Jairnilson Paim, Helvécio Magalhães Miranda Jr e Gastão Wagner de Sousa Campos, diálogo que nos honra por suas renomadas trajetórias acadêmicas e na gestão do SUS, que tanto contribuem para a formulação e análise de políticas de saúde no Brasil. Antes de prosseguir, registramos o fato de sermos todos autores homens, fato a se refletir no nosso tempo histórico e reconhecer as possíveis ausências e lacunas que esta composição implica para o debate.
Dialogando com Paim, antes de mais nada, agradecemos e reconhecemos a leitura minuciosa e cuidadosa, explicitando elementos tácitos do texto, explorando premissas e exercendo um modo de análise estratégica com destaque para a questão do poder, chegando à ideia do cuidado como lugar de ancoragem para uma abordagem técnico-política. Cabe lembrar que escrevemos o texto base antes do lançamento oficial do “Agora tem Especialistas”, embora tendamos a considerar que tal programa é uma continuidade da PNAES e do PMAE, ainda que intensificando de maneira notável a possibilidade de participação do setor privado na atenção especializada em saúde, bem como da gestão federal.
Falando mais proximamente da coordenação do cuidado, mesmo que concordemos com o autor no sentido de que os processos regulatórios (e outros que se dão basicamente entre gestores) devam ser mais publicizados e abertos à participação, consideramos que descentralizar parte da regulação do acesso para a APS é uma das medidas necessárias para ampliar a capacidade de coordenação. Contudo, isto não reduz a necessidade de uma regulação mais sistêmica, articulada com o planejamento, programação e governança da rede. Esta ideia nos permite também esclarecer que, a despeito de enunciarmos os condicionantes estruturais da coordenação do cuidado pela APS, não se trata de uma lógica do tipo “tudo ou nada”, mas sim de pensar numa acumulação progressiva (a exemplo da própria ESF no SUS em 30 anos), tendo consciência dos seus alcances, limites e condições de possibilidade. Neste sentido, as proposições buscam saídas que escapem do imobilismo à espera de todas as resoluções estruturais e do espontaneísmo descontextualizado e despolitizado.
Passando ao diálogo com Miranda Jr, reconhecemos que não exploramos plenamente as interfaces entre coordenação, integração e continuidade do cuidado, tendo sido nossa maior preocupação evidenciar o ganho de utilizarmos os três conceitos associados, atentando para as suas zonas de sombreamento e de especificidade. No entanto, as relações de influência entre ambos os conceitos podem ser objeto de diferentes configurações e entendimentos. Concordamos com o autor nas observações sobre a integralidade, mas, em parte por coerência com isto, temos dúvida da ideia da continuidade como grande objetivo finalístico e relativizamos o caráter definidor da coordenação pela APS para a continuidade. Integralidade como objetivo último, coordenação como estratégia ativa (via diferentes componentes), continuidade como importante necessidade e integração como forma essencial nos parece um quadro de referência mais preciso, embora em situações concretas o valor ou peso delas possa ser diferente.
No que se refere à PNAES, estamos de acordo que o texto oficial inova para além do modelo de financiamento (em termos de modelo de atenção, por exemplo). Entretanto, se política se traduz em agenda e dispositivos e não apenas em recomendações, é forçoso indicar que boa parte das inovações ficou nos princípios e diretrizes, sem a mesma tradução estratégica e operacional que teve o modelo de financiamento. Não à toa, pelo menos até o momento, a APS não integra as OCI (ou algo associado) e nada obriga ou induz consistentemente que os serviços especializados matriciem a APS, por exemplo. O grande avanço no modelo de alocação de recursos e pagamento, prevendo rol de procedimentos acessados oportunamente e de forma conjunta em etapas chave de algumas linhas de cuidado, tem seu potencial relativizado se o subfinanciamento e as distorções nas relações público-privado não forem enfrentadas. Quanto ao que falta na APS em termos de coordenação, tendemos a concordar com a necessidade de que esta incorpore de maneira mais prática e substantiva a função estratégica de gestão ou navegação do cuidado, mas sua mudança depende, a nosso ver, da adoção de dispositivos que de fato tensionem os condicionantes internos e externos à APS explorados no nosso artigo, sem deixar de reconhecer e aproveitar, evidentemente, ferramentas e estratégias de coordenação já existentes.
Campos, por sua vez, foca seu texto na regulação do acesso, no sentido da sua democratização (com destaque para os profissionais da APS), qualificação (orientada pelo risco e vulnerabilidade, além de diagnósticos sindrômicos orientadores) e desburocratização (princípio da confiança com verificações a posteriori). A formulação aponta para mais uniformidade no funcionamento dos serviços do SUS e propõe lógica que conecta e traciona práticas profissionais e organização do sistema. Reconhecendo tais aspectos, parece-nos difícil viabilizar essa maior facilidade de acesso da APS à atenção especializada sem adequado dimensionamento da oferta, que requer estratégias, minimamente, de médio prazo, e maior proximidade/interação entre serviços e iniciativas para “qualificar” as demandas. Lembramos também que, para identificar vazios sanitários, temos a programação em saúde, que pode ser feita com base em necessidades e não (apenas) na oferta (desigual) existente. Ainda que o autor nos faça ver um novo campo de possibilidade, seria necessário considerar de modo mais abrangente a materialidade do que existe nas redes do SUS e os condicionamentos a serem necessariamente enfrentados.
Por fim, nosso agradecimento aos autores, cujas diferentes ênfases evidenciam que o desafio da coordenação, integração e continuidade requer, ao mesmo tempo, política e técnica, ousadia e materialidade.



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Melo, E. A., Silva, AS. COORDENAÇÃO, INTEGRAÇÃO E CONTINUIDADE DE CUIDADOS: O QUE PRECISAMOS APÓS 30 ANOS DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA?. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/set). [Citado em 05/12/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/coordenacao-integracao-e-continuidade-de-cuidados-o-que-precisamos-apos-30-anos-da-estrategia-saude-da-familia/19799

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