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Artigos

0061/2025 - Efeitos da volatilidade da força de trabalho, determinantes de óbitos infantis e resiliência na Atenção Primária do SUS
Effects of workforce volatility, determinants of infant deaths and resilience in SUS Primary Care

Autor:

• Paula de Castro Nunes - Nunes, P.C - <paula.nunes@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9117-9805

Coautor(es):

• Alessandro Jatobá - Jatobá, A. - <alessandro.jatoba@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7059-6546

• Paloma Palmieri - Palmieri, P. - <paloma.palmieri@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3376-2215

• Patricia Passos Simões - Simões, P. P - <patricia.passos@fiocruz.br>

• Omara Machado Araujo de Oliveira - Oliveira, O.M.A - <omara.machado@fiocruz.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8264-0196

• Paulo Victor Rodrigues de Carvalho - Carvalho, P.V.R - <paulo.rodrigues@fiocruz.br >
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9276-8193



Resumo:

Este artigo se propõe a analisar os efeitos da volatilidade da força de trabalho da Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS) sobre a resiliência dos serviços e a redução dos óbitos infantis. Para isso, foi utilizada a relação entre a força de trabalho na APS e os indicadores sensíveis à infância: vacinação (de poliomielite e sarampo) e óbitos infantis. Trata-se de um estudo ecológico de séries temporais, que tem como fontes de informação os indicadores relativos à força de trabalho, coberturas vacinais e de óbitos infantis por causas evitáveis, de todos os estados do Brasil, entre 2018 e 2022, totalizando um painel balanceado com 135 variáveis. Para a análise dos dados, foram estimados três modelos: de regressão simples em painel, de efeitos fixos e de efeitos fixos e efeito no tempo. Os resultados no modelo fixo estimado, demonstram significância estatística na associação da força de trabalho da APS e na redução dos óbitos infantis, sendo os médicos os que mais contribuíram para tal redução, seguidos dos enfermeiros. Em relação às coberturas vacinais, a vacina tetra de sarampo se mostrou significativa e contribui para a redução dos óbitos infantis.

Palavras-chave:

Sistemas de Saúde; Resiliência de Sistemas de Saúde; Recursos Humanos; Atenção Primária à Saúde

Abstract:

This article aims to analyze the effects of the volatility of the Primary Health Care (PHC) workforce in the Unified Health System (SUS) on the resilience of services and the reduction in infant deaths. To do this, we used the relationship between the PHC workforce and child-sensitive indicators: vaccination (Poliomyelitis and measles) and infant deaths. This is an ecological time series study, using as sources of information indicators relating to the workforce, vaccination coverage and infant deaths from preventable causes, from all Brazilian states, between 2018 and 2022, totaling a balanced panel with 135 pieces of information. To analyze the data, three models were estimated: simple panel regression, fixed effects and fixed effects and time effect. The results of the estimated fixed model show statistical significance in the association between the PHC workforce and the reduction in infant deaths, with doctors contributing most to this reduction, followed by nurses, for the same chance. About vaccination coverage, the quadruple measles vaccine proved to be a significant contributor to the reduction in infant deaths.

Keywords:

Health systems; Health System Resilience; workforce; primary health care.

Conteúdo:

Introdução
Sistemas de saúde resilientes são os que mantem suas Funções Essenciais de Saúde Pública1 (FESP) ao lidar com eventos externos, disruptivos - pandemias, desastres - ou eventos internos, oriundos de estressores crônicos, como subfinanciamento, falta de profissionais de saúde, de medicamentos etc2,3. Segundo os Descritores em Ciências da Saúde4 (DECS), a resiliência de sistemas de saúde consiste na “capacidade de adaptação que os sistemas de saúde devem desenvolver e manter para atender de forma adequada ao repentino aumento da demanda causada por eventos extraordinários que afetam a saúde da população, direta ou indiretamente, concomitante à manutenção de seu funcionamento, segurança, qualidade e disponibilidade de serviços. Representa o grau com que um sistema continuamente impede, detecta, atenua o dano ou reduz a chance de incidentes”.
A Força de Trabalho em Saúde (FTS) é considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma das funções essenciais de saúde pública resilientes5. No Brasil, tal aspecto passou a ser foco de atenção das políticas públicas a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), no contexto da Reforma Sanitária. Neste sentido, passou a abarcar múltiplas dimensões, como: a composição e distribuição da força de trabalho, formação, qualificação profissional, mercado de trabalho, organização do trabalho, regulação do exercício profissional, relações de trabalho, além da tradicional administração de recursos humanos em saúde6.
Todos os profissionais do SUS e, especialmente da APS, são responsáveis pela atenção à saúde de populações que apresentam vulnerabilidades sociais específicas e, por consequência, necessidades de saúde específicas. Isso porque a APS possui responsabilidade direta sobre ações de saúde em determinado território, considerando suas singularidades, o que possibilita intervenções mais oportunas em situações específicas, com o objetivo de ampliar o acesso à Rede de Atenção à Saúde (RAS) e ofertar uma atenção integral à saúde. Cabe destacar que a aprovação do Programa Mais Médicos, sancionado pela Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013, propiciou o provimento de profissionais médicos na Estratégia Saúde da Família (ESF) em todo país.
O Brasil possui dimensões territoriais continentais e desigualdade regional marcante com consequências deflagradas na distribuição geográfica, populacional e institucional7, uma das origens das iniquidades em saúde no país. Com relação a distribuição de profissionais de saúde, principalmente na atenção primária8, nota-se que há uma maior concentração nas regiões sudeste, nordeste e sul, enquanto existem vazios profissionais e assistenciais nas regiões centro-oeste e norte, aonde o número de profissionais encontra-se abaixo da meta estabelecida por agências internacionais, como a OCDE, o que vai contra os princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS)9.
O SUS está organizado em três níveis de atenção à saúde, tendo a Atenção Primária em Saúde (APS) como primeiro nível. Segundo a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), as Unidades Básicas de Saúde (UBS), possuem equipes vinculadas à Estratégia de Saúde da Família, compostas prioritariamente por médicos de família, enfermeiros e agentes comunitários de saúde, indispensáveis à realização das ações de APS nos municípios, como prevenção e promoção, assistência, gestão do cuidado, alimentação dos bancos de dados e indicadores de saúde, impactando-os de forma direta10. Dentre os indicadores de saúde mais importantes da APS estão àqueles relacionados à saúde da criança (como a cobertura vacinal e mortalidade infantil), saúde da mulher e gestante e de portadores de doenças crônicas não transmissíveis (como hipertensos e diabéticos)11.
A APS é fundamental para o alcance de uma cobertura vacinal ampla e efetiva e à redução dos óbitos infantis, mas enfrenta problemas estruturais, como o desabastecimento de imunizantes e medicamentos essenciais e falta de acesso à internet em regiões mais vulneráveis, o que dificulta o registro de dados, continuidade dos serviços e o alcance de metas destes indicadores que são sensíveis a investimentos governamentais12. A taxa de mortalidade infantil (TMI) faz parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e no Brasil a taxa teve uma importante redução entre os anos de 2000 a 2015 e mostrou relação inversamente associada à acessibilidade aos serviços de alta complexidade, porte populacional, à referência para o parto, à taxa de nascidos vivos, à renda per capita e à taxa de desemprego13.
Ao contrário de grandes desastres e pandemias, que se manifestam de forma abrupta e requerem resposta imediata, os sistemas de saúde lidam cotidianamente com crises sistêmicas, que se apresentam de forma lenta e gradual a partir do descasamento demanda versus capacidade, e podem induzir fragilidades no sistema sempre que algum indicador fundamental (como a força de trabalho) varia para baixo. Deste modo, este estudo se propõe a quantificar os efeitos da volatilidade da força de trabalho na resiliência. Para isso, foi utilizada a relação entre a força de trabalho na APS e os indicadores sensíveis à infância: vacinação (de poliomielite e sarampo) e óbitos infantis.

Métodos
Desenho de Pesquisa
Trata-se de um estudo ecológico de séries temporais, de natureza quantitativa, que tem como fontes de informação os dados dos indicadores de saúde que constam no barramento do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) do Ministério da Saúde (MS), contando com informações de todo território nacional. Elaborado de acordo com as recomendações das diretrizes da EQUATOR Network e o checklist Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE)14.
Fontes de informação
Os dados utilizados têm como fontes de informação os indicadores de saúde que constam no barramento do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) do Ministério da Saúde (MS), contando com informações de todo território nacional de acesso livre e universal. Foram incluídas as informações relativas à força de trabalho da APS do SUS, de coberturas vacinais e de mortalidade infantis por causas evitáveis, disponíveis no Sistema de Informação do Programa Nacional de Imunizações (SIPNI), do Sistema de Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES) e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM).
Procedimento de coleta de dados
A base de dados foi construída com indicadores coletados por Unidades da Federação (UF), considerando o período de 2018 a 2022, totalizando um painel balanceado com 135 informações no total. O indicador “óbitos infantis por causas evitáveis” foi definido como variável de desfecho do modelo e os demais indicadores, como variáveis independentes, sendo estes as informações representativas da força de trabalho da Atenção Primária à Saúde (APS) do SUS consideradas no presente trabalho, tais como o quantitativo de agentes comunitários de saúde (ACSs) e de médicos e enfermeiros de família, além das coberturas vacinais de poliomielite (VIP e VOP) e de sarampo.
Inicialmente foram coletados dados da variável “equipe de saúde da família”, entretanto não seria possível observar o efeito individual de cada categoria profissional. Em função disso, foram incluídas variáveis relacionadas aos profissionais: médicos da Estratégia de Saúde da família e médicos da AB, enfermeiros de família e ACS (correspondente a equipe básica da Estratégia de Saúde da Família).
Procedimento de análise de dados
Foi elaborada uma rotina em software estatístico R Studio versão 2023.06.0., de análise da tendência espaço-temporal dos óbitos infantis e suas relações com os indicadores das variáveis da força de trabalho e vacinação; e estimação de um modelo de regressão de dados seccionais agregados, com o objetivo de quantificar os efeitos dessas variáveis ao longo do tempo.
O modelo de efeito fixo estimado considera que os valores dos interceptos para cada regressão variam de acordo com o efeito de cada estado (UF) e que os coeficientes de declividade (das variáveis independentes) para cada equação são os mesmos para cada ano.
O modelo deste estudo foi definido da forma:

Yit=?Xit+?Ui+eitYit=????Xit+????Ui+eit

Onde,
YitYit
é o resultado da UF “i” no ano “t”;
XitXit
é o vetor de variáveis independentes dos das UFs “I" no tempo “t”; e
UiUi
consiste no conjunto não observável da UF “I". Convém destacar que os inobserváveis são imutáveis ao longo do tempo, por isso temos a falta do subscrito de tempo. Finalmente,
eiteit
é o termo de erro.
Desta forma, o intercepto da equação é diferente para cada UF, mas o efeito das variáveis independentes é o mesmo sobre a variável dependente. Isto indica que existem aspectos característicos em cada UF que influenciam os óbitos infantis, como por exemplo, a força de trabalho na APS e cobertura das vacinas selecionadas. Ressalta-se a importância para a resiliência de que a volatilidade dos aspectos que compõe as FESP (como é o caso da força de trabalho) devem pelo menos se manter em um nível estável, para que o sistema de saúde apresente um desempenho mais apropriado e o seu potencial para a resiliência melhore.

Resultados
A figura 1 mostra uma distribuição desigual dos médicos de família e AB nos estados brasileiros, em que pode ser observada uma tendência tanto de crescimento, isto é, aumento do quantitativo desses profissionais nos estados, quanto de espalhamento para os estados do Amazonas, Rio Grande do Sul e Minas Gerais etc. Entretanto, mesmo com o crescimento, ainda se observa desigualdades, uma vez que São Paulo concentrou o total de 241 médicos de família e AB no ano de 2022, enquanto Alagoas, Amapá, Mato Grosso do Sul e Tocantins contam com apenas 1 médico, seguidos de Acre e Paraíba com dois e Piauí com três para atender toda a população do território. Tal discrepância não se verifica para os óbitos infantis evitáveis, haja vista que não há evidências que demonstrem que a distribuição é desigual entre os estados ao longo do tempo (Figura 2).

Fig 1

Figura 2 – Distribuição espaço-temporal do número de óbitos infantis nos estados brasileiros do período de 2010 a 2022.

Fig 2

O gráfico 1 ilustra a série histórica brasileira e a taxa de variação (volatilidade) nos óbitos infantis nos últimos vinte anos. Pode ser observada uma redução acentuada do número de óbitos infantis evitáveis ao longo de todo tempo, sobretudo no ano de 2020, no qual a série apresenta uma quebra de sua estrutura e indica um crescimento no período pós-pandêmico.
Gráfico 1 – Número de óbitos infantis no Brasil e variação percentual no período de 2010 a 2022.

Gráfico 1

Em relação ao modelo de regressão estimado, apresenta-se elementos seccionais agregados (“pooled”) e independentes, isto é, utilizam-se dados que resultam da obtenção de amostras aleatórias de uma população em pontos distintos do tempo. A Tabela 1 apresenta o conjunto de variáveis que compõem o modelo ajustado junto com os respectivos valores estimados dos coeficientes do modelo, o erro padrão dos coeficientes, os valores da estatística T e o p-valor, a razão de chance (odds ratio) e o intervalo de confiança de 95%.
Na Tabela 1, apresenta-se os resultados obtidos para o modelo fixo estimado, no qual se tem evidências estatísticas de diferenças significativas na redução dos óbitos infantis relacionadas tanto com a força de trabalho da APS quanto com a vacinação, sendo os médicos os profissionais que mais contribuem para tal redução, seguido dos enfermeiros e dos ACSs.
O coeficiente negativo (-0,49) para a variável médico sugere que a presença de cada profissional médico de família na unidade de atendimento reduz a probabilidade média de ocorrência dos óbitos infantis na mesma proporção. A razão de chance (odds ratio) de 0,61 indica que chance de ocorrência de óbitos infantis evitáveis, mantendo as demais variáveis constantes, reduz em 0,61 chances com a presença de cada médico.
Em relação às coberturas vacinais, todas também se mostraram significativas para explicar a redução dos óbitos infantis, ao nível de confiança de 90%. A vacina de sarampo tetra e contribui fortemente para a redução dos óbitos infantis, na ordem de –1,44 menos probabilidade de ocorrência de um óbito infantil, a cada variação unitária desta cobertura vacinal
Tabela 1 -Modelo de efeitos fixos para o desfecho: óbitos infantis

Tab. 1

A gráfico 2 apresenta o resultado do modelo para o número de óbitos infantis esperados no Brasil, ao se isolar os efeitos do tempo. Dessa forma, as estimativas sugerem que os óbitos infantis se distribuem de forma desigual no território de forma estatisticamente significativa.
Os resultados sugerem, por exemplo, uma quantidade média significativamente superior de óbitos infantis para o São Paulo em relação dos demais estados, independente das demais variáveis do modelo, proporcionalmente ao tamanho da população. Controlando os efeitos temporais, cada variação unitária nas variáveis da força de trabalho e vacinação reduz, em média, aproximadamente 2.241 óbitos infantis em Roraima no período analisado, seguido de 2.237 no Acre, dentre outras. No sentido oposto, cada variação unitária negativa no quantitativo da força de trabalho e a vacinação, há um aumento médio de 7.967 óbitos infantis no estado de São Paulo, no período analisado.

Gráfico 2

Discussão
Diferente das situações de grandes desastres e demais eventos disruptivos, que ocorrem abruptamente e requerem resposta imediata, os sistemas de saúde (como o SUS) lidam de forma cotidiana com uma crise sistêmica, que se manifesta de forma gradual a partir do descasamento demanda x capacidade, que induz a fragilidades no sistema na medida em que indicadores importantes, como é o caso da força de trabalho, variam abaixo da média. Dessa forma, este estudo se propõe a dimensionar o efeito do impacto da volatilidade da força de trabalho na resiliência. Para isso, foi utilizada a relação entre a força de trabalho na APS e os indicadores sensíveis à infância, como: vacinação (de poliomielite e sarampo) e óbitos infantis.
Pesquisas sobre a resiliência em sistemas de saúde vêm aumentando nos últimos anos, a partir da pandemia de Covid-19. O número de resultados de pesquisa para os termos “Saúde”, “Sistemas” e “Resiliência” em títulos de documentos na base de dados do Google Scholar aumentou aproximadamente 25% de 2019 a 2022. As pesquisas mais recentes apontam para uma perspectiva da resiliência mais voltada para a compreensão de como os sistemas de saúde estão funcionando, para que possam enfrentar, responder e se adaptar não apenas a pandemias e desastres, mas principalmente ao estresse crônico e os desafios oriundos da relação demandas/capacidade2, corroborando pesquisas que destacam a importância estável dos recursos humanos na efetividade dos serviços de saúde, reforçando a associação da presença de médicos e enfermeiros à redução de óbitos infantis6.
Deste modo, a questão da resiliência tensiona os modelos de gestão tradicionalmente usados para dimensionar e avaliar o desempenho dos sistemas de saúde, uma vez que esses modelos são, normalmente, baseados na análise da capacidade institucional, representada pela capacidade de promover o bem-estar coletivo e utilizar recursos públicos com efetividade e qualidade. Entretanto, as pesquisas sobre a resiliência de sistemas de saúde indicam que a capacidade institucional não é suficiente (embora seja necessária) para o funcionamento adequado dos sistemas de saúde em cenários de mudanças abruptas e, portanto, não é um bom preditor de como os serviços se adaptam a eventos inesperados, mantém suas FESP durante a crise, nem de como eles aprendem com essa experiência e se transformam positivamente ao se recuperar do choque. Para tanto, são necessárias métricas e métodos capazes de descrever as capacidades preventivas, adaptativas e absortivas dos sistemas de saúde, portanto, aderentes à aspectos que balizam a resiliência dos serviços. Assim, estas pesquisas e o resultado do enfrentamento a COVID 19 em sistemas bem estruturados, que supostamente seriam mais resilientes, começam a influenciar as autoridades mundiais de saúde.
Sendo assim, a Atenção Primária à Saúde (APS) tem, dentre outros, o atributo de organizar o cuidado no primeiro nível de atendimento prestado, possuindo características que permitem ao sistema de saúde adaptar-se e responder a um mundo complexo e em rápida mudança, porém a insuficiência de recursos humanos pode comprometer o acesso e à equidade do cuidado15. Neste contexto, o dimensionamento, o provimento e o planejamento da força de trabalho que atua no SUS deve dialogar com a regulação do trabalho em saúde de forma a garantir a integralidade do cuidado em saúde.
Destaca-se que o período da pandemia de Covid-19 demandou uma série de desafios enfrentados pelo sistema público de saúde devido, inclusive na Atenção Primária à Saúde (APS) e na saúde infantil. O país passou por um remanejamento orçamentário, priorizando recursos para a atenção hospitalar, deixando a APS com menos recursos16.
Como o demonstrado na série histórica (gráfico 1), a taxa de volatilidade nos óbitos infantis evitáveis nos últimos vinte anos apresentou uma redução acentuada, sobretudo no ano de 2020, indicando uma quebra de sua estrutura e um crescimento no período pós-pandêmico, subsequente. Observa-se que neste período, o governo brasileiro desvinculou a vacinação infantil como uma das condicionalidades para o recebimento do Bolsa Família (auxílio fornecido para a população em situação socioeconômica mais vulnerável) e, em que se acentuaram também as quedas nas coberturas vacinais, por consequência17. Outra questão que vale destacar é que os pontos de inflexão da série coincidem com os períodos eleitorais municipais, fato que deve ser explanado em estudos posteriores.
Fatores como os condicionantes e determinantes sociais da saúde também devem ser considerados nas análises sobre o funcionamento efetivo dos sistemas de saúde, e consequentemente, na resiliência de suas atividades e funções. Sendo necessário que o sistema tenha a capacidade de fornecer profissionais, equipes, apoio organizacional, e outros serviços necessários, assegurando uma resposta satisfatória dos sistemas de saúde diante de eventos adversos, considerando a cooperação entre os profissionais de saúde em prol de habilidades para prever eventos futuros, a partir do aprendizado com as experiências e monitoramento da situação presente. Dessa forma, como mostra este estudo, o processo de trabalho preventivo em equipe, impacta em redução da mortalidade18.
Encontrar formas de administrar o funcionamento dos sistemas de saúde, para que funcionem da melhor maneira possível, tanto em sua rotina quanto em grandes crises é o grande desafio da gestão resiliente. A estabilidade no funcionamento e uma construção alinhada ao contexto e apta à adaptação, pode levar os sistemas de saúde a uma posição de alta capacidade institucional e comportamento resiliente, o que teria como consequência a melhoria dos processos de gestão, aperfeiçoamento dos fluxos assistenciais e do cuidado prestado aos usuários.
Os registros do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) indicam que a FTS no Brasil é composta por 3.953.686 milhões de pessoas trabalhadoras em exercício no SUS, sendo liderado pela Região Sudeste, com 1.691.770 de trabalhadores. Em relação aos Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) há um predomínio nas regiões Nordeste e Sudeste, com 109.388 e 91.880, respectivamente. Nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste a categoria médicos assume a primeira posição em números de trabalhadores que atuam no SUS19. Enquanto nas regiões Norte e Nordeste predominam os enfermeiros.
O resultado do modelo fixo estimado, mostrou as evidências estatísticas de diferenças significativas na redução dos óbitos infantis relacionadas tanto com a força de trabalho da APS quanto com a vacinação, sendo os médicos os profissionais que mais contribuem para tal redução, seguido dos enfermeiros e dos ACSs. Os ACSs possuem um papel importante para a consolidação do SUS, não só por facilitar o acesso da população às ações e serviços de saúde, mas principalmente por ser o elo entre as equipes de saúde e a comunidade, fortalecendo as suas relações. No contexto de saúde integral, a inserção do profissional de enfermagem em equipes da APS contribui no vínculo, na escuta qualificada e no acolhimento20.
Nesse sentido, o coeficiente negativo (-0,49) para a variável médico sugere que a presença de cada profissional médico de família e AB na unidade de saúde reduz a probabilidade média de ocorrência dos óbitos infantis na mesma proporção. Mantendo as demais variáveis constantes, há redução de 0,61 (odds ratio=0,61) vezes a chance de ocorrência de óbitos infantis evitáveis com a presença de cada médico de família na unidade de saúde. Pasklan e colaboradores13 analisaram a relação entre a qualidade dos serviços da APS e a mortalidade infantil e TMI mostrou-se inversamente associada ao estrato da gestão em saúde e porte populacional, à referência para o parto, à taxa de nascidos vivos, à renda per capita e à taxa de desemprego, concluindo que a mortalidade infantil possui relação direta com as condições socioeconômicas da população, fato corroborado neste estudo.
Em relação às coberturas vacinais, todas também se mostraram significativas para explicar a redução dos óbitos infantis, ao nível de confiança de 90%. A vacina de sarampo tetra contribui fortemente para a redução dos óbitos infantis, na ordem de –1,44 menos probabilidade de ocorrência de um óbito infantil, a cada variação unitária de cobertura desta vacina.
Os achados deste estudo demonstram a relevância do investimento na cobertura vacinal e na força de trabalho da APS, uma vez que contribuem para a efetividade e equidade da Atenção Primária à Saúde brasileira, impactando significativamente os seus indicadores, no que se refere mais especificamente às primeira, segunda e sexta Funções Essenciais de Saúde Pública: Monitoramento e avaliação da saúde e do bem-estar, da equidade, dos determinantes sociais da saúde e do desempenho e impacto dos sistemas de saúde e Vigilância em saúde pública: controle e gerenciamento de riscos e emergências em saúde e Desenvolvimento de recursos humanos para a saúde, respectivamente.
Com relação a aplicação do modelo das capitais brasileiras, resultados do modelo para o número de óbitos infantis esperados no país, sugerem que os óbitos infantis se distribuem de forma desigual no território de forma estatisticamente significativa, assim como a distribuição dos profissionais também se configurou. Sendo assim, controlando os efeitos temporais, para cada redução unitária nas variáveis da força de trabalho e vacinação, em média, são reduzidos 2.241 óbitos infantis em Roraima (norte do Brasil) no período analisado, no Acre, a diminuição é de 2.237 no Acre. Entretanto, no sentido oposto, a cada variação unitária negativa no quantitativo da força de trabalho e a vacinação há um aumento médio de 7.967 óbitos infantis no estado de São Paulo no período analisado. Tais aspectos podem ser explicados pelos determinantes e condicionantes da saúde, principalmente no que se refere ao saneamento básico, presença de profissionais de saúde da família, renda e escolaridade parentais e raça21–24.
Sendo o Brasil um país com dimensões continentais, a gestão do trabalho na saúde necessita de atenção especial por parte de todas as instituições que buscam a correta adequação entre as necessidades da população e seus objetivos no SUS, com iniciativas que fomentem o aumento do conhecimento, da regulação do trabalho, para o provimento e formulação das políticas de educação em saúde na gestão do trabalho dos profissionais de saúde, contribuindo para o sucesso de experiências nos estados e municípios no fortalecendo do SUS.

Conclusão
Os achados deste estudo demonstram a relevância do investimento na cobertura vacinal e na força de trabalho da APS, uma vez que contribuem para a efetividade e equidade da Atenção Primária à Saúde brasileira, impactando significativamente os seus indicadores, no que se refere mais especificamente às Funções de Saúde Pública número 1, 2 e 6, mas que pode ser escalado para os demais países.
A força de trabalho promove redução dos óbitos infantis, logo, se consolida principalmente para as populações em maior vulnerabilidade social. É necessário o planejamento e correto dimensionamento da Força de trabalho na APS junto aos órgãos federais, estaduais e, principalmente, municipais, no que tange questões estratégicas como financiamento, contratação, manutenção e qualificação dos trabalhadores com a criação de instrumentos que possibilitem a tomada de decisões, o monitoramento e a avaliação da força de trabalho.
Monitorar e avaliar dados relativos as funções essenciais de saúde pública (FESP) é fundamental para que novos modelos de gestão em saúde incluam a resiliência na sua agenda e, principalmente possam operacionalizá-la de forma mais efetiva a partir das evidências científicas.
Tais achados deste estudo apontam para a possibilidade de uma avaliação mais abrangente da resiliência do SUS, a partir do nível e volatilidade dos indicadores apresentados mediante as FESP a que se atribuem, ou mesmo para a contribuição de indicadores que demonstrem o potencial para a resiliência em sistemas de saúde, realizando análises mais detalhadas para examinar a causalidade e os efeitos de intervenções específicas.
Colaboradores
Paula de Castro Nunes - foi responsável pela conceituação geral, coleta de dados, discussão dos resultados e escrita do artigo. Alessandro Jatobá - foi responsável pela conceituação geral, revisão dos resultados, discussão dos resultados e escrita do artigo. Paloma Palmieri - foi responsável pela metodologia e a análise dos resultados.
Patricia Passos Simões - foi responsável pela metodologia e coleta de dados. Omara Machado Araujo de Oliveira - foi responsável pela metodologia e coleta de dados. Paulo Victor Rodrigues de Carvalho - atuou na gestão do projeto de pesquisa, na conceituação, análise de dados, discussão dos resultados e escrita do artigo.

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Artigo apresentado em 15/06/2024
Aprovado em 26/02/2025
Versão final apresentada em 28/02/2025
Editores-chefes: Maria Cecília de Souza Minayo, Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva



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Nunes, P.C, Jatobá, A., Palmieri, P., Simões, P. P, Oliveira, O.M.A, Carvalho, P.V.R. Efeitos da volatilidade da força de trabalho, determinantes de óbitos infantis e resiliência na Atenção Primária do SUS. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2025/mar). [Citado em 29/05/2025]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/efeitos-da-volatilidade-da-forca-de-trabalho-determinantes-de-obitos-infantis-e-resiliencia-na-atencao-primaria-do-sus/19537?id=19537

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