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0153/2024 - Evidências científicas na tomada de decisão: uma reflexão para organizações de saúde
Scientific evidence in decision-making: a reflection for health organizations

Autor:

• Silvio Fernandes da SIlva - SIlva, S. F. - <fernandessilvio90@gmail.com; silvio.fsilva@hsl.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6048-6637

Coautor(es):

• Romeu Gomes - Gomes, R. - <romeugo@gmail.com> +
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3100-8091

• Maria Lúcia Teixeira Machado - Machado, M. L. T. - <mluciatmachado@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-5114-9601

• Jorge Otávio Maia Barreto - Barreto, J.O.M - <jorgeomaia@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7648-0472

• Rachel Riera - Riera, R. - <rachel.riera@hsl.org.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9522-1871



Resumo:

O objetivo foi analisar os resultados do projeto Apoio à formulação e implementação de políticas de saúde informadas por evidências (ESPIE) desenvolvido entre 2015 e 2023, no Hospital Sírio-Libanês, para subsidiar a tomada de decisão em organizações de saúde. Este estudo foi realizado por meio da triangulação entre os resultados publicados do projeto, a Teoria de Tomada de Decisão de Simon e a experiência dos autores, participantes da implementação do projeto. A análise se orientou pela seguinte questão: Quais avanços, limites e aprendizados observados na implementação do uso de evidências científicas na tomada de decisão em contextos organizacionais, no âmbito do projeto? Constatou-se que a incorporação de conhecimentos nas organizações de saúde é um processo complexo que precisa considerar dinamicidade da cadeia decisória, comportamento das autoridades no sentido de favorecê-los ou legitimá-los e barreiras arraigadas na cultura da organização e que competem com novos conhecimentos. Conclui-se que tanto mais exitosas são as estratégias, quanto mais as capacidades individuais adquiridas interagem com os contextos das organizações e com os atores da cadeia decisória, adotando mecanismos de sensibilização e engajamento na tomada de decisão.

Palavras-chave:

Políticas Informadas por Evidências; Organizações de Saúde; Tomada de Decisão; Sistema Único de Saúde

Abstract:

The objective was to analyze the results of the Support project for the formulation and implementation of evidence-informed health policies (EIHP), developed between 2015 and 2023 at the Sírio-Libanês Hospital to support decision-making in health organizations. This study was carried out by triangulating the published results of the project, Simon's Decision-Making Theory, and the experience of the authors, who participated in the implementation of the project. The analysis was guided by the following question: What advances, limits, and lessons learned were observed in the implementation of the use of scientific evidence in decision-making in organizational contexts within the scope of the project? It was found that the incorporation of knowledge in health organizations is a complex process that needs to consider the dynamism of the decision-making chain, the behavior of authorities in favoring or legitimizing them, and barriers rooted in the organization's culture that compete with new knowledge. It could be concluded that the more successful the strategies are, the more the acquired individual capabilities interact with the contexts of the organizations and with the actors in the decision-making chain, adopting mechanisms of awareness and engagement in decision-making.

Keywords:

Evidence-Informed Policies; Health Organizations; Decision-making; Unified Health System

Conteúdo:

Introdução
O uso das melhores evidências disponíveis para a tomada de decisão em saúde é fundamental para qualificar a utilização dos recursos públicos, propiciando eficiência, eficácia, efetividade, equidade e transparência na formulação, implementação e monitoramento das políticas1. As evidências científicas são consideradas como aquelas produzidas por meio de pesquisas formalmente estruturadas e com métodos rigorosos, e para que estas evidências possam apoiar na resolução de problemas de saúde pública complexos, é preciso contextualizá-las considerando fatores locais, tácitos ou coloquiais, que incluem opiniões, valores e hábitos dos tomadores de decisão e da sociedade2.
As Políticas Informadas por Evidências (PIE) resultam da interação sistemática, transparente e equilibrada de diferentes tipos de informação, que orientam os tomadores de decisão na escolha das melhores opções para abordar temas e problemas prioritários de saúde pública. As PIE adotam mecanismos para que as evidências subsidiem decisões melhor informadas2. No Brasil, as PIE têm avançado sob a liderança do Ministério da Saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente por meio da Rede de Políticas Informadas por Evidências (EVIPNet Brasil), criada em 2010 e integrada à EVIPNet Global, liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)3.
Um dos principais desafios das PIE é tornar o uso de evidências sustentável no transcorrer do processo de formulação e implementação das políticas. Considera-se que quanto mais institucionalizados estiverem os mecanismos e ferramentas de PIE, mais as evidências poderão se legitimar como um subsídio de valor para tomada de decisão4. Além da legitimação, que, no caso, diz respeito ao fato do uso de evidências ser entendido como útil, desejável e apropriado e, em consequência, passar a fazer parte dos valores e crenças da organização, é necessária a aceitação desse uso. Aceitação compreendida como a sua inserção nos comportamentos padronizados da vida cotidiana da organização, independentemente dos indivíduos que executam as ações5.
Em 2022, o National Collaborating Centre for Methods and Tools, da McMaster University publicou uma revisão rápida sobre estratégias que estão sendo usadas para implementar políticas informadas por evidências em organizações de saúde6. Foram encontradas duas grandes linhas estratégicas: uma que se estende ao conjunto dos processos decisórios, abrange aspectos mais gerais da cultura organizacional e implica em capacitação e envolvimento dos trabalhadores de todos os níveis e, enfim, da dinâmica organizacional como um todo. A outra linha de intervenção é mais focalizada, se direcionando à incorporação do uso de evidências em práticas sanitárias e programas específicos. A primeira parece ser mais desafiadora, pois requer grandes mudanças organizacionais e, mesmo quando bem sucedida, pode consumir vários anos de implementação. A segunda depende especialmente do envolvimento das equipes que se deseja atingir. Aspectos como liderança e comunicação são fundamentais para as estratégias de intervenção.
Uma das iniciativas brasileiras voltadas para o apoio ao uso de evidências científicas na tomada de decisão em saúde é o projeto Apoio à formulação e implementação de políticas de saúde informadas por evidências (ESPIE), desenvolvido no âmbito do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS) e implementado pelo Hospital Sírio-Libanês (HSL), em parceria com a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (SECTICS) do Ministério da Saúde do Brasil, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS).
Este projeto vem sendo desenvolvido desde 2015, com abrangência nacional e ações em todas as regiões geográficas do país, envolvendo centenas de participantes entre educandos, docentes e especialistas em PIE. Considerando o acúmulo de resultados do projeto em questão, somados às experiências dos atores nele envolvidos, o presente estudo teve como objetivo analisar os resultados do projeto ESPIE para subsidiar a tomada de decisão em organizações de saúde.

Desenho metodológico
O desenho metodológico consistiu em um estudo analítico do projeto ESPIE. Para esta análise, adotou-se a triangulação do marco teórico-conceitual da Teoria da Tomada de Decisão de Simon, com os resultados publicados do projeto em questão e a experiência dos autores, consubstanciada na implementação do projeto.
Como o projeto ESPIE teve como principal objetivo apoiar a formulação e implementação das políticas de saúde nas organizações participantes por meio de incorporação de evidências científicas no processo decisório, a questão que orientou a análise foi: Quais avanços, limites e aprendizados observados na implementação do uso de evidências científicas na tomada de decisão em contextos organizacionais, no âmbito do projeto?

Teoria de Tomada de Decisão de Simon
O marco teórico-conceitual utilizado neste estudo é baseado na Teoria de Tomada de Decisão em organizações administrativas, de Herbert Alexander Simon7-9. Este autor desenvolveu ampla discussão acerca dos processos decisórios em organizações e, para efeito desta análise, destacamos alguns aspectos que entendemos mais relevantes.
Simon considera que uma organização se refere “ao complexo sistema de comunicações e inter-relações existentes num grupamento humano” (p. XIV)7 e tal sistema fornece a cada membro do grupo: “informações, pressupostos, objetivos e atitudes que entram nas suas decisões, propiciando-lhes, igualmente, um conjunto de expectações estáveis e abrangentes quanto ao que os outros membros do grupo estão fazendo e de que maneira reagirão ao que ele diz e faz” (p. XIV)7.
Segundo o autor, o processo decisório é o núcleo central da administração e, dessa forma, tal processo, junto com o desenvolvimento da ação, deve integrar qualquer teoria da administração. “Em suma, uma teoria geral de administração deve incluir tanto princípios de organização que asseguram decisões corretas, como princípios que asseguram uma ação efetiva” (p. 1)7.
O processo decisório se afigura a partir do pensamento e da ação, culminando em uma seleção. Nesse processo, que conjuga julgamento e tomada de decisão, escolhem-se cursos alternativos, aceitando-se ou rejeitando-se ações específicas. Frente às demandas da realidade, a busca de soluções nem sempre é possível por meio de se interromper o processo para analisá-lo. Deste modo, faz-se necessário experimentar, flexibilizar, adaptar e atuar num contínuo processo de aprendizagem8.
Assim como os comportamentos em geral, os integrantes das organizações se comportam a partir de seleção de ações que são fisicamente possíveis de serem realizadas. Isso pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Nesse sentido, o processo de seleção tanto pode ser reflexo ou condicionado, quanto em si pode ser um produto de uma cadeia complexa de atividade7.
Uma organização pode ser concebida como um sistema de decisões. Em sua teoria, Simon distingue dois tipos de decisão: programadas ou não-programadas. Estes tipos, segundo o autor, não são realmente distintos, mas integram um continuum que vão desde o polo programado (estruturado) até o não programado (não estruturado), com decisões em tons intermediários. As decisões são programadas ao extremo para que possam ser repetitivas e rotineiras, em situações semelhantes para as quais foram criadas, dispensando que sejam novamente tratadas8. O autor desenvolve discussões que tratam das decisões programadas por meio de uso de modelos matemáticos e operações computacionais8. Estas discussões fazem com que ele seja considerado como um dos precursores dos estudos de inteligência artificial.
Segundo Simon, três fases compõem o processo de tomada de decisão. A primeira delas, denominada atividade de inteligência, consiste na observação do ambiente da organização, no sentido de identificar situações que exigem a tomada de decisão. A segunda fase, denominada atividade de design, se refere a inventar, desenvolver e analisar possíveis cursos de ação ou alternativas de solução. Por último, a atividade de escolha que diz respeito à seleção de um curso específico de ação mais apropriado, entre as várias alternativas geradas na fase anterior8.
Na conclusão de um dos seus textos, Simon considera que – ainda que haja limitações e nem sempre consiga responder às questões que precisam de respostas – o homem, em meio à complexidade que ultrapassa a sua compreensão, é capaz de processar informações para procurar alternativas, calcular consequências, resolver incertezas e, assim – por vezes, nem sempre –encontrar formas de ação que sejam suficientes em sua contemporaneidade 9.

O projeto ESPIE
No período de implementação do projeto – 2015/2023 – duas estratégias distintas foram desenvolvidas: capacitação de pessoas em gestão de políticas de saúde informadas por evidências e elaboração de dispositivos e ferramentas a serem utilizadas pelas organizações para ampliar o uso de políticas informadas por evidências.
Capacitações: foram desenvolvidas por meio de três cursos de especialização, realizados no período de 2015 a 2020. Os objetivos dos cursos foram de desenvolver capacidades cognitivas, individuais e em equipe, em PIE e apoiar os educandos para aplicarem os conhecimentos adquiridos nas organizações das quais faziam parte. Essas organizações eram quase todas públicas (mais de 90%) e em sua maioria faziam parte de sistemas de saúde municipais e estaduais de saúde. Os educandos participantes eram, em geral, profissionais da área de saúde que atuavam diretamente ou apoiavam a gestão das organizações.
Os cursos foram desenvolvidos por meio de uma abordagem construtivista, com uso de metodologias ativas. O processo de ensino-aprendizagem foi mediado pela problematização e aprendizagem baseada em problemas e foi ancorado nas teorias interacionistas de educação, metodologia científica, aprendizagem significativa, integração entre teoria e prática e dialogia. Os currículos foram orientados por competência e se estruturaram em dois eixos: simulação da prática e contexto real do trabalho.
O processo de formação foi apoiado territorialmente por docentes/facilitadores e os educandos foram capacitados para analisar e agir sobre o contexto em que atuavam para o desenvolvimento de PIE. Escolhiam problemas prioritários de saúde pública, as melhores opções para resolvê-los ou minimizá-los e, em conjunto com os demais responsáveis pela tomada de decisão, eram estimulados a promover as melhores escolhas para enfrentá-los10-12.
As três iniciativas educacionais ocorreram em 36 cidades-sede, a maioria de grande e algumas de médio porte, distribuídas em todas as regiões geográficas do Brasil, além de duas turmas fora do país, uma em Córdoba/Argentina e outra em Montevidéu/Uruguai. Foram certificados no total 1010 especialistas em gestão de políticas de saúde informadas por evidências.
A aplicação dos conhecimentos adquiridos nas organizações, das quais os educandos faziam parte, visava apoiar o uso de evidências científicas para a solução de problemas de saúde concretos dessas organizações. Esse apoio teve, assim como as demais atividades desenvolvidas no curso, a participação dos docentes/facilitadores e se dava por meio da elaboração de projetos de intervenção. Esses projetos, por vezes antecedidos por elaboração de sínteses de evidências, eram desenvolvidos em etapas que se iniciavam pela escolha de um problema considerado prioritário ou relevante, seguida por uma explicação do mesmo e, considerando a factibilidade e viabilidade decorrente de uma análise do contexto, era proposta e desenvolvida uma intervenção. Foram utilizados dois referenciais metodológicos para a elaboração das intervenções: o planejamento estratégico situacional de Carlos Matus13 e as ferramentas SUPPORT14, 15. A adoção destas estratégias metodológicas estava associada a interações e diálogos periódicos com atores relevantes das organizações dos educandos para validar, legitimar e qualificar as escolhas dos problemas e as intervenções propostas.
No ano de 2022, foi realizada uma consulta aos egressos das três edições para, entre outros aspectos, captar suas percepções sobre a incorporação das capacidades requeridas no perfil de competência e as condições de aplicabilidade das mesmas nas organizações do SUS em que estavam atuando. As percepções foram bastante otimistas no que se refere à apropriação e uso das capacidades cognitivas em PIE adquiridas nos cursos – a maioria respondeu que passou a valorizar mais e utilizar evidências em suas práticas, inclusive participando da elaboração de sínteses de evidências –, mas nem tão otimistas nas perguntas que se referiam à permeabilidade da organização em incorporar essa prática em seus processos de tomada de decisão. Isso foi interpretado como decorrente de insuficiente sensibilização e engajamento dos gestores e também dos desafios complexos inerentes à mudança da prática e cultura organizacionais16.
Dispositivos e ferramentas de PIE: No período de 2021 a 2023, em alinhamento com as diretrizes do planejamento estratégico do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde (Decit/SECTICS/MS) e com a Rede EVIPNet, o projeto ESPIE redirecionou suas estratégias, desenvolvendo ferramentas e dispositivos com potencial de sensibilizar e apoiar os gestores públicos e demais envolvidos no processo decisório para o desenvolvimento de PIE:
Guia de apoio aos Núcleos de Evidências (NEv): teve como finalidade orientar organizações para estruturar ou aperfeiçoar NEv. A função desses núcleos é a de realizar tradução do conhecimento para produzir políticas informadas por evidências de forma articulada, geralmente atendendo às necessidades dos tomadores de decisão17.
Perfil de competência do profissional em PIE no Brasil: foi elaborado com o objetivo de delinear o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que precisariam estar desenvolvidos para uma atuação qualificada em PIE18,19. A aplicação do perfil em organizações de sistemas e serviços de saúde possibilita o mapeamento das capacidades de indivíduos e equipes em PIE e contribui para explorar essas potencialidades e identificar lacunas a serem preenchidas para ampliar o uso de evidências no processo de decisão.
Revisão de escopo “Estratégias para comunicar evidências em saúde para gestores e para a população”: foi elaborada em parceria com o Núcleo de Avaliação em Tecnologia em Saúde e Núcleo de Evidências do HSL (NATS-NEv/HSL) e, buscando uma linguagem comunicativa simplificada, teve como objetivo contribuir para a comunicação de evidências, tornando-a mais efetiva para os públicos a que se destinam20,21.

Discussão
As capacitações realizadas no âmbito do projeto ESPIE tiveram como propósito desenvolver capacidades em PIE e apoiar os educandos para aplicá-las nas organizações das quais faziam parte, ou seja, incorporar novos conhecimentos nas tomadas de decisão. De acordo com Simon, como se comportam as organizações frente a novos conhecimentos?
Simon chama a atenção para a correlação positiva entre conhecimento e racionalidade administrativa. Ele considera que o conhecimento é um fator primordial para decisões mais racionais por parte das organizações, mas por outro lado identifica muitos limites para a expressão da racionalidade no processo decisório. Sobre isso, ele afirma que a teoria administrativa, em sua essência, é a “teoria da racionalidade intencional e limitada do comportamento humano” e a “principal preocupação da teoria administrativa reside nos limites entre os aspectos racionais e irracionais do comportamento social dos seres humanos” (p. XXIII)7.
O comportamento real, afirma ele, não alcança racionalidade objetiva por três aspectos: (i) a racionalidade requer conhecimento completo e antecipado das consequências resultantes de cada opção; (ii) como as consequências resultam do futuro, lança-se mão da imaginação, de conjecturas, mas elas só podem ser antecipadas de modo imperfeito; e (iii) a racionalidade pressupõe uma opção entre os possíveis resultados que advirão da decisão e, no comportamento real, apenas uma fração dessas diferentes alternativas é levada em consideração7.
Ainda sobre racionalidade, continua ele, ela requer um conhecimento completo e inalcançável das consequências de cada escolha e, no mundo real, “o ser humano possui um conhecimento fragmentado das condições que cercam sua ação, e ligeira percepção das regularidades dos fenômenos e das leis que lhe permitiriam gerar futuras consequências com base no conhecimento das circunstâncias atuais” (p. 84)7. Em decorrência, segue ele, “a racionalidade completa é limitada pela ausência de conhecimento” (p. 85)7.
Entendemos que, além do conhecimento ser habitualmente insuficiente – parcial e incompleto – sua incorporação efetiva no processo decisório da organização está, obviamente, longe de ser linear e automática. Na leitura da teoria do processo decisório de Simon, depreende-se que, entre os fatores que interferem nessa incorporação, se destacam três: a posição que o decisor ocupa na cadeia decisória da organização, o comportamento das autoridades mais empoderadas no sentido de favorecer ou legitimar o uso do conhecimento e fatores habitualmente presentes na organização que competem e dificultam a efetiva apropriação do conhecimento na dinâmica organizacional.
As decisões sobre as políticas de saúde se processam em diferentes níveis, desde aqueles mais elevados nos planos hierárquicos tradicionais, até os microespaços políticos nos quais os operadores da política e seus “consumidores diretos” interagem. Embora existam interferências mútuas entre esses níveis, eles preservam espaços de autonomia de decidir e podem reagir de formas distintas à incorporação de conhecimentos que tem potencial de interferir em suas escolhas.
As autoridades têm naturalmente maior poder de influenciar a incorporação de conhecimentos pela organização. Ainda que nem sempre os níveis organizacionais estejam permeáveis à determinação das autoridades, sem dúvida sua influência para a sensibilização sobre a importância e o incentivo ao uso de novos conhecimentos é importante. Conforme afirma Simon, “Uma função extremamente importante da autoridade consiste na obtenção de decisões com um elevado conteúdo de racionalidade e eficácia” (p. XVI)7. Para isso, é importante que tenham sensibilidade para perceber e agir quando os processos decisórios que obedecem a hábitos automatizados, não conscientes e pouco racionais, precisam ser interrompidos, qualificados e inovados à luz de conhecimentos atualizados7.
Entre os fatores que podem competir com o uso efetivo de novos conhecimentos na tomada de decisão, dois chamam a atenção e são destacados por Chester I Barnard na apresentação de um dos livros de Simon7: a influência do know how e dos padrões de comportamento arraigados na cultura organizacional. O know how diz respeito ao “já saber como fazer”. São situações em que os decisores agem, mesmo inconscientemente, como sempre tivessem respostas prontas para os problemas que surgirem. As decisões ocorrem bastante influenciadas pelo hábito, seguem o fluxo habitual em uma esfera inconsciente de saber e fazer, ou seja, o “conhecimento” já está dado, o decisor considera que já sabe o caminho a tomar.
O outro fator, apesar de similar ao primeiro, está mais relacionado à legitimação (formal ou informal) das linhas de autoridade que vigoram na organização. Criam-se padrões de comportamento que legitimam o poder de decisão de pessoas que dominam o jargão técnico e que têm muita experiência, própria dos indivíduos tarimbados de determinados setores da organização, aqueles que, por exemplo, passaram a maior parte de suas carreiras neles. Neste caso, os novos conhecimentos competem com a experiência, que confere aos “experientes” um certo poder simbólico e que lhes confere a prerrogativa de decidir sem necessariamente agregar outras perspectivas.
Com relação ao projeto ESPIE, esses três fatores foram de alguma forma levados em consideração nas estratégias metodológico-educacionais desenvolvidas. Com relação ao primeiro, entre as políticas elencadas como prioritárias para o uso de evidências, algumas nitidamente perpassavam os níveis decisórios da organização. O projeto utilizou o conceito de linhas de cuidado22 – formas de organizar o fluxo de atenção à saúde, desenhando o itinerário do usuário no sistema de saúde - para planejar algumas das intervenções. A articulação entre decisores de diferentes estações terapêuticas para promover um cuidado integrado foi considerada nos planos de intervenção, a partir do entendimento de que o cuidado perpassa os níveis organizacionais e, muitas vezes, a própria organização, pois depende de integração em rede com outros serviços e organizações.
Sobre o segundo fator – papel das autoridades no sentido de legitimar novos conhecimentos –, essa percepção também esteve presente nas estratégias de disseminação de PIE. O envolvimento dos gestores mais empoderados das organizações, por exemplo os secretários de saúde, foi considerado como um importante fator de sucesso em PIE. Nesse sentido, tanto a validação de escolhas dos problemas prioritários, quanto a definição das principais intervenções buscavam obter a opinião desses gestores, por meio de consultas informais, apresentação dos projetos de intervenção ou realização de diálogos deliberativos – estratégia para engajar atores relevantes no planejamento e implementação de políticas e serviços23.
Em relação ao terceiro fator – aspectos que competem com a apropriação de novos conhecimentos – igualmente foram colocadas em prática estratégias de mapeamento da motivação de atores relevantes para a viabilização das intervenções e de convencimento para que aderissem às medidas propostas. Atores classificados, por exemplo, como opositores ou indiferentes acerca da implementação de ações focadas em PIE foram objeto de estratégias que visavam convencimento e adesão às medidas propostas.

Fases da tomada de decisão: outro conceito abordado por Simon é o de fases da tomada de decisão24. Antes de analisar como essas fases se deram no projeto ESPIE, retomamos algumas considerações do autor para uma melhor compreensão do seu pensamento. As decisões, segundo ele, resultam de um processo complexo de reflexão, investigação e análise e é nessa lógica que ele esboça as fases de tomada de decisão. Continuando esse raciocínio, o autor observa que o ciclo de fases pode ser mais complexo do que sugere a sequência sugerida. Assim, cada fase pode vir a constituir por si mesma um processo complexo. Simon estabelece relações das fases da tomada de decisão (apresentadas a seguir) com os estágios de solução de problemas desenvolvidos por John Dewey (Qual é o problema? Quais são as alternativas? Qual alternativa é melhor?)24.
Trazendo a reflexão de fases da tomada de decisão de Simon para o projeto ESPIE, os métodos adotados incluíram as seguintes etapas:
1– Escolha do problema (correspondente à fase 1 proposta por Simon): foi realizada por grupos de cerca de 10 educandos em cada, agrupados por afinidade de suas práticas profissionais nas organizações em que atuavam. Critérios como relevância para a saúde pública e magnitude do problema no contexto da organização foram considerados importantes para a escolha. Uma especificidade das organizações descentralizadas do SUS deve ser considerada nesta fase: os fatores que determinam as escolhas dos problemas sobre os quais agir são influenciados por situações que, naqueles momentos, dão proeminência à agenda decisória. Por exemplo, um eventual destaque dado pela imprensa à dificuldade no acesso em uma unidade emergencial e à morte de um usuário enquanto aguardava atendimento gera, obviamente, uma pressão social que influi na escolha e oportunidade (no caso, necessidade) de agir. Além de fatos como esse, as agendas decisórias também dependem dos espaços de autonomia que as organizações locais têm para formular e implementar políticas. No pacto federativo do SUS, muitas políticas são formuladas centralizadamente, cabendo às organizações descentralizadas decisões inerentes principalmente à implementação. Esta fase de escolha de problemas fica limitada àqueles nos quais as organizações têm maior capacidade de intervir25.
2 – Identificação das opções possíveis para solução do problema (correspondente à fase 2 proposta por Simon, também denominada de atividade de design, que implica em mapear as alternativas possíveis para a tomada de decisão): os mesmos grupos de educandos da fase anterior, seguindo a orientação metodológica adotada, realizaram busca de informações – em geral revisões sistemáticas – sobre as melhores opções, analisraam a qualidade dessas informações, os aspectos de equidade envolvidos com as mesmas e as barreiras de implementação, assim como incorporaram análises do contexto e conhecimentos tácitos no julgamento sobre a aplicabilidade das opções14. Conforme observa Simon, esta fase pode demandar novas informações, uma vez que “os problemas, em qualquer nível, geram subproblemas, que, por sua vez, têm suas fases de informação, estruturação e escolha, e assim por diante” (p. 16)24.
3 – Escolha das melhores opções para a tomada de decisão (correspondente à fase 3 proposta por Simon): os mesmos grupos das fases anteriores, considerando os princípios éticos, a factibilidade e a viabilidade, fazem a escolha e planejam as estratégias operacionais de implementação. Os fundamentos do planejamento estratégico situacional (PES) são considerados neste processo16.
Após refletir sobre as etapas metodológicas utilizadas no projeto e as fases propostas por Simon, nossa percepção é que é importante reforçar, ainda mais, a interação estabelecida entre os educandos e outros atores responsáveis pela cadeia decisória da organização. Dar protagonismo aos decisores em todas as fases da tomada de decisão é uma condição importante para qualificar as etapas e ampliar a viabilidade na implementação das escolhas.
Por último, cabem alguns comentários sobre os dispositivos e ferramentas de PIE elaborados de 2021 a 2023. O Guia de apoio aos Núcleos de Evidências (NEv), o Perfil de competência do profissional em PIE no Brasil e a revisão de escopo “Estratégias para comunicar evidências em saúde para gestores e para a população” – apesar de terem diferentes escopos, têm uma finalidade comum considerada central por Simon para a tomada de decisão: contribuir para estratégias de estruturação do uso do conhecimento na organização ou, em outras palavras, para uma maior racionalidade no comportamento administrativo7.
O Guia NEv, se devidamente apropriado pelas organizações, contribui para que se estruturem mecanismos rotineiros de tradução e uso do conhecimento. O perfil de competência pode identificar lacunas e potencialidades nas capacidades em PIE presentes na organização, sendo este o primeiro passo para supri-las ou oportunizá-las. As estratégias para melhor comunicar evidências dizem respeito a um escopo específico – comunicação – e tratam do uso da linguagem mais apropriada para diferentes públicos.
Estas ferramentas podem ser adaptadas ao contexto e necessidades das organizações. É importante lembrar, conforme afirma Simon, que o processo decisório de uma organização envolve um grande número de decisões e é importante que os decisores desenvolvam capacidades ou tenham apoios que os orientem não apenas episodicamente, mas rotineiramente, atendendo suas necessidades por informações e novos conhecimentos. A qualificação do processo decisório depende, segundo Simon, de um sistema de referência que subsidie o pensamento dos decisores e lhes apresentem as melhores soluções para decidir ou promover um engajamento em princípios e valores que devem possibilitar a tomada de decisão7.

Considerações finais
A institucionalização do uso de evidências científicas nas organizações do SUS, ao mesmo tempo que é um desejo explícito de organizações como a OMS e o Ministério da Saúde do Brasil, por exemplo, é reconhecida como um processo complexo, que leva tempo e exige aprendizado permanente. A trajetória de aprendizado decorrente dos nove anos de implementação do projeto ESPIE contribuiu para que sua continuidade, já aprovada para ser implementada no triênio 2024-202626 avance no objetivo de institucionalização de PIE em organizações do SUS.
Como explicitamos anteriormente, até o momento o projeto ESPIE teve uma interface indireta com as organizações, que se deu principalmente por meio da participação de educandos como protagonistas principais e as organizações como campo de práticas. Para o triênio 2024-2026, o projeto foi estruturado para atuar diretamente em colaboração com as organizações, com o objetivo de desenvolver capacidades cognitivas individuais e em equipe, como os projetos anteriores, mas também capacidades institucionais em um processo de interação mais forte e articulado com os gestores e outros administradores das organizações. Estão previstas parcerias com as organizações participantes tendo como focos: sensibilização, engajamento e adoção das melhores estratégias, nos respectivos contextos, para a incorporação de evidências na tomada de decisão.
Este estudo trouxe reflexões importantes no que se refere ao desafio de institucionalização de PIE. Ao fazer analogia com uma reconhecida teoria de organizações administrativas, foi possível refletir sobre o que é, como funciona uma organização, como se processam as decisões, qual o papel das autoridades, como são recebidos os novos conhecimentos, com o que eles competem e, enfim, quais são os fatores que influenciam a tomada de decisão.
O diálogo do marco teórico-conceitual utilizado com o projeto ESPIE foi enriquecedor no sentido de identificar limites e potências e também de sistematizar aprendizados e apontar novos caminhos.

Contribuições dos autores: SF Silva e R Gomes conceberam a ideia inicial, redigiram partes e revisaram todas a versões do texto. MLT Machado, JOM Barreto e R Riera contribuíram com a concepção inicial, redigiram partes e revisaram todas as versões do texto.

Disclaimer: As discussões, interpretações e conclusões expressadas nesse artigo são inteiramente dos autores.

Fontes de fomento: Ministério da Saúde do Brasil, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (PROADI-SUS).

Referências
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SIlva, S. F., Gomes, R., Machado, M. L. T., Barreto, J.O.M, Riera, R.. Evidências científicas na tomada de decisão: uma reflexão para organizações de saúde. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/abr). [Citado em 23/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/evidencias-cientificas-na-tomada-de-decisao-uma-reflexao-para-organizacoes-de-saude/19201?id=19201&id=19201

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