0372/2025 - Interseccionalidade e decolonialidade na obra de Mara Viveros Vigoya: contribuições para a Saúde Coletiva
“Intersectionality and Decoloniality in the work of Mara Viveros Vigoya: contributions to Public Health”
Autor:
• Karynna Maria da Silva Ferreira - Ferreira, KMS - <karynnaferreira@hotmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9333-6261
Coautor(es):
• Elis Mina Seraya Borde - Borde, EMS - <borde.elis@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5560-6956
Resumo:
Não se aplicaPalavras-chave:
Não se aplicaAbstract:
Não se aplicaKeywords:
Não se aplicaConteúdo:
Em sua publicação, a autora inicia discutindo como a abordagem interseccional se difunde no contexto colombiano e como sua própria experiência a introduz na interseccionalidade. A obra apresenta, de forma abrangente, o conceito, a genealogia, a institucionalização, as principais abordagens e os debates epistemológicos e metodológicos relacionados à interseccionalidade enquanto ferramenta analítica. O capítulo que abre o livro — “Interseccionalidad. Giro decolonial y comunitario” — satisfaz tanto os leitores que buscam definições mais objetivas quanto aqueles interessados em compreender os deslocamentos epistêmicos e políticos do conceito. Com clareza e densidade, oferece um ponto de partida sólido para o mergulho nas tensões que atravessam o campo.
Esses elementos são explorados com base em exemplos práticos e nas contribuições de pesquisadoras e pesquisadores de destaque — como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Tarsila do Amaral, Carla Akotirene, Marina Ariza, Maria Lugones, entre outros — e articulados a partir de diferentes realidades latino-americanas. Trata-se, portanto, de uma contribuição fundamental para repensarmos a aplicação e a operacionalização da abordagem no atual contexto de esvaziamento teórico e acentuada heterogeneidade em sua compreensão e uso, aspecto já observado por autoras como Agénor1, Patricia Hill Collins e Sirma Bilge2.
O livro significa, portanto, uma relevante fonte de conhecimento sobre a interseccionalidade, ao atravessar pontos centrais da abordagem como, por exemplo: a necessidade de ter a justiça social como centro e de lógica não aditiva, convergindo com Rice3 e Hankisky4; críticas ao pensamento focado em um eixo único principal; discussão de quem deve ser o sujeito da interseccionalidade; e ainda a ideia de que em outras partes do mundo operam-se eixos de poder que também irão moldar a vida destas populações.
Na sequência dos capítulos, a autora aprofunda de forma significativa o estudo da perspectiva interseccional ao explorar distintas abordagens formuladas a partir de variados níveis de análise, contextos de origem e, sobretudo, do enfoque decolonial — principal contribuição desta obra. São apresentadas também as diversas metáforas mobilizadas para representar esse fenômeno complexo, além de formulações alternativas, que evidenciam tanto a dificuldade de definição conceitual da abordagem quanto a necessidade de sua constante teorização no interior de cada análise. Ao mesmo tempo, essa diversidade contribui para tornar mais inteligíveis as distintas vertentes da interseccionalidade e estimula uma reflexão crítica por parte do leitor sobre suas múltiplas possibilidades de aplicação. Nesse percurso, o livro nos oferece pistas fundamentais para pensar formas de operacionalização mais coerentes com os princípios políticos da interseccionalidade, sobretudo no enfrentamento das desigualdades estruturais que marcam os territórios latino-americanos.
A autora destaca aquilo que se configura como uma das contribuições mais relevantes tanto para a pesquisa em Saúde Coletiva quanto para o campo mais amplo dos estudos interseccionais: a interseccionalidade como ferramenta analítica e transformadora ancorada nos contextos latino-americanos. Ao enfatizar experiências e dinâmicas marcadas pelas particularidades históricas, políticas e culturais da região — como os processos de mestizaje, as migrações e mobilidades forçadas, e as múltiplas formas de violência de gênero vividas por mulheres e comunidades indígenas —, a obra nos convoca a um exercício contínuo de deslocamento epistemológico. Somos conduzidos a confrontar outras formas de ver, narrar e viver as opressões, reconhecendo como essas se entrelaçam, se reforçam e sustentam políticas de dominação inscritas nos projetos coloniais que ainda atravessam os territórios latino-americanos.
O livro evidencia, com clareza e rigor, as possibilidades que a abordagem interseccional oferece quando enraizada em perspectivas decoloniais e comunitárias: ela não apenas amplia a capacidade de análise das desigualdades, mas também orienta práticas de resistência, construção de conhecimento situado e formulação de políticas mais justas e sensíveis às realidades locais. Nesse sentido, a obra é fundamental para visibilizar as especificidades da América Latina e propor uma forma própria, crítica e situada de compreender e aplicar a interseccionalidade — não como um conceito importado, mas como uma ferramenta epistemológica forjada nas lutas e saberes das margens.
A obra aborda de forma consistente como o contexto latino-americano favoreceu a difusão e ressignificação da abordagem interseccional, destacando a maneira como as feministas da região se articularam mais diretamente com críticas ao racismo estrutural e aos efeitos persistentes da colonialidade. Mais do que uma teoria a ser referenciada no âmbito acadêmico, a interseccionalidade é apresentada aqui como uma ferramenta politicamente mobilizadora, profundamente enraizada nas realidades latino-americanas e nas práticas coletivas de resistência.
Nesse sentido, a autora enfatiza que, na América Latina, a interseccionalidade assume um caráter eminentemente prático e insurgente: é convocada para sustentar ações conjuntas, fortalecer alianças e formar coalizões entre sujeitos historicamente marginalizados. Ao recentrar seu uso político e social, a obra propõe uma “repolitização da interseccionalidade” — uma reinvenção voltada para aquilo que denomina a interseccionalidade das lutas. Essa formulação reconhece e valoriza os saberes de resistência produzidos nas margens, promovendo possibilidades reais de colaboração entre lutas diversas, em vez de fragmentá-las ou hierarquizá-las.
Dessa forma, a interseccionalidade que emerge nesta obra se diferencia radicalmente das leituras hegemônicas oriundas do Norte Global, frequentemente marcadas por um distanciamento entre teoria e prática. Aqui, ao contrário, ela se mostra inseparável dos territórios, das experiências e das urgências políticas que a constituem. Por fim, é preciso ressaltar que a contribuição de Vigoya se soma a outras produções latino-americanas comprometidas com a construção de uma interseccionalidade situada, insurgente e enraizada nos saberes populares e nas epistemologias de resistência
Ao longo de toda a obra, Mara Vigoya reafirma com contundência a importância da interseccionalidade e a necessidade de que essa abordagem seja adotada de forma crítica, situada e politicamente engajada. Para a autora, a interseccionalidade não deve ser apenas um arcabouço analítico, mas uma plataforma a partir da qual é possível elaborar programas políticos e formular demandas que desafiem as formas tradicionais de conceber a política. Como ela afirma, “la interseccionalidad puede ser una importante plataforma a partir de la cual se pueden elaborar programas políticos y plantear demandas que desafíen la forma en que hasta ahora hemos entendido la política”.
Vigoya destaca que a interseccionalidade se configura como uma resposta crítica à dominação, um espaço forjado a partir da luta e da experiência coletiva. Ao concebê-la como uma “posicionalidade transformadora”, ela propõe que a interseccionalidade oferece um novo território político e epistêmico a partir do qual é possível atribuir um sentido renovado às lutas sociais. Nesse sentido, a autora contribui para reposicionar a abordagem como ferramenta de articulação entre teoria e prática, e como eixo central na construção de projetos coletivos de transformação social no Sul Global.
A obra de Vigoya coloca de forma corajosa três questões centrais que a tornam de leitura urgente e merecedora de ampla reflexão: quem define o sujeito da interseccionalidade? A quem serve essa definição? E como evitar que a abordagem se torne uma ferramenta esvaziada de sua potência crítica? Ao encarar essas questões, o livro contribui de maneira decisiva para fortalecer os vínculos entre teoria e prática e ampliar as possibilidades de articulação entre justiça cognitiva, justiça social e saúde coletiva.
Referências Bibliográficas
1. Agénor M. Future Directions for Incorporating Intersectionality Into Quantitative Population Health Research. Am J Public Health. 2020;110:803–6.
2. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo; 2021.
3. Rice C, Harrison E, Friedman M. Doing Justice to Intersectionality in Research. Cultural Studies ? Critical Methodologies. 2019;19:409–20.
4. Hankivsky O. Women’s health, men’s health, and gender and health: Implications of intersectionality. Social Science & Medicine. 2012;74:1712–20.










