0914/2008 - MOTIVOS DE ABANDONO DO TRATAMENTO ANTI-RÁBICO HUMANO PÓS-EXPOSIÇÃO EM PORTO ALEGRE, RS, BRASIL
DROP-OUT REASONS OF POST-EXPOSURE HUMAN ANTI-RABIES TREATMENT IN PORTO ALEGRE, RS, BRAZIL
Autor:
• REJANE DIAS VELOSO - Veloso, R.D. - PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL - UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL - <dv-rejane@uol.com.br>Área Temática:
Não CategorizadoResumo:
A raiva é uma doença endêmica no Brasil, com letalidade de 100%. O número de casos têm diminuído, porém o de tratamento pós-exposição continua elevado, assim como o de abandono. O objetivo do estudo foi investigar as causas do abandono do tratamento anti-rábico humano pós-exposição em Porto Alegre, no segundo semestre de 2006. Foi utilizado o delineamento de série de casos, sendo selecionados 280 casos por amostragem aleatória sistemática entre os 962 registrados no SINAN como abandono de tratamento. Os dados foram coletados em entrevistas domiciliares, utilizando-se questionário específico. Segundo os entrevistados, 66,4% concluíram o número de vacinas prescritas, não estando esses dados registrados no SINAN. Entre aqueles que foram confirmados como abandono (94/280), 24,5% referiram não ter considerado necessário completá-lo e 13,8% não se sentiram orientados sobre como proceder. Somente, em 19,1% dos casos, houve a busca ativa dos faltosos pelos serviços de saúde. O registro no SINAN apresenta falhas. Essas ocorrem devido ao paciente iniciar o tratamento em um serviço de saúde e dar continuidade em outro, não havendo retro-alimentação do sistema com dados sobre a conclusão do mesmo.Palavras-chave:
raiva, vacinas contra raiva, perfil epidemiológico
Abstract:
In Brazil, rabies is an endemic disease with a fatality rate of 100%. The number of cases has decreased, but the number of cases for treatment after exposure and treatment dropout is still high. This study investigated the causes of anti-rabies treatment drop-out, after exposure, in Porto Alegre, from July to December 2006. A case series was designed. Two hundred and eighty drop-out cases were selected through randomized systematic sampling, out of 962 registered in SINAN. Data was collected in people´s homes through interviews, using a questionnaire. According to the interviewees, 66,4% concluded the prescribed number of vaccines. This information was not registered in SINAN. Among the subjects confirmed as drop-outs, (94/280), 24,5% reported that they thought that it was not necessary to complete the treatment, while 13,8% felt that they did not receive clear guidelines about what to do. Health Services attempted to contact drop-outs in only 19.2% of the cases. Data entered in SINAN present failures. These occur because patients start treatment at one health service and continue it at a different one. In addition, information about the conclusion of the treatment is not entered into the system.Key words:
rabies, anti-rabies vaccination, epidemiologic profile
Conteúdo:
A raiva é uma antropozoonose transmitida ao homem pela inoculação do vírus presente na saliva e secreções do animal infectado, pela mordedura, arranhadura ou lambedura da pele lesada ou mucosa, por aerossóis ou transplante de córnea.1, 2 Os mamíferos são os únicos animais susceptíveis à doença.1, 3
A raiva continua a ser um problema de saúde pública, não em função do número de casos que têm reduzido ao longo dos anos, mas devido a sua letalidade de 100%. Além disso, o impacto emocional, o sofrimento e a ansiedade das pessoas agredidas, temendo por contrair a doença,4 devem ser levados em conta.
Não existe tratamento específico para a raiva. Após o início dos sintomas, a conduta é sintomática, visando apenas diminuir o sofrimento do paciente.3, 5 A profilaxia para indivíduos potencialmente infectados pelo vírus deve ser executada rigorosamente 3, 5, sendo essa a abordagem primária para a raiva.2 Por essa razão, é considerada uma urgência médica 2, devendo o tratamento ser instituído o mais rápido possível.
No Brasil, sempre que ocorrer agressão animal, deve ser realizada a anamnese completa, obtendo todas as informações para a correta indicação do tratamento e registro dos dados na Ficha de Atendimento Anti-Rábico Humano, do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - SINAN.6 Logo após a agressão, deve ser feita a limpeza da lesão e, quando necessário, a administração da vacina contra a raiva, associada ou não ao uso de soro ou imunoglobulina humana.3
Desde 2002, é utilizada a vacina de cultivo celular.7 Há dois esquemas para tratamento com o uso dessa vacina de acordo com as condições do animal agressor e tipo de exposição (agressões leves ou graves): duas doses, sendo uma administrada no dia da agressão e outra no terceiro dia; ou cinco doses, sendo administradas no dia da agressão, 3º, 7º, 14º e 28º dia.1
O soro deve ser utilizado em casos de acidentes graves em que o animal (cão ou gato) tenha desaparecido, morrido ou se tornado raivoso; em casos de animal clinicamente suspeito da raiva no momento da agressão; ou acidentes graves de animais silvestres ou de produção.1 Sua aplicação é necessária para conferir anticorpos passivos ao indivíduo até que os anticorpos vacinais estejam presentes. Mortes por raiva têm sido atribuídas à falta do uso do soro, apesar do tratamento vacinal.8
Ao prescrever o tratamento profilático, deve-se ter presente que tanto o soro quanto a vacina podem originar complicações.4 A indicação desnecessária, além de expor o paciente a eventos adversos, constitui-se em um desperdício dos recursos públicos, refletindo na qualidade do sistema de saúde.3
Os pacientes devem receber orientações quanto à gravidade da agressão, necessidade do tratamento, continuidade do mesmo, cuidados com o ferimento, observação do animal agressor, importância da vacinação e, no caso de cães, de sua domicialização.9
O número de casos de raiva tem diminuído desde a década de 80, porém o número de tratamentos pós-exposição continua elevado10, assim como o número de abandonos de tratamento. A não conclusão do tratamento prescrito não garante a imunização, podendo comprometer a sobrevida do paciente.3
A análise dos dados referentes aos tratamentos anti-rábicos humanos possibilita a avaliação e o aprimoramento dos serviços de assistência e de vigilância epidemiológica de uma região.11 Assim, o objetivo deste estudo foi investigar os motivos referidos pelos indivíduos agredidos para o abandono do tratamento anti-rábico humano pós-exposição em Porto Alegre, RS, no segundo semestre de 2006.
MATERIAL E MÉTODOS
O delineamento utilizado foi o série de casos. No período de interesse, segundo semestre de 2006, ocorreram 2.223 atendimentos anti-rábicos humanos pós-exposição, segundo dados disponíveis no SINAN. Entre esses, 1.737 receberam indicação de vacina e 962 (55,4%) foram considerados como tendo abandonado o tratamento, uma vez que não havia registro da conclusão do mesmo na ficha de atendimento.
Para o cálculo do tamanho da amostra, utilizou-se uma freqüência esperada de 50%, erro máximo de + 5% e nível de significância de 0,05, totalizando 275 indivíduos. A amostra foi estratificada segundo as nove unidades de referência para atendimento anti-rábico, sendo os casos selecionados por meio de amostragem sistemática. Ao final do processo, haviam sido selecionados 280 casos. A fonte dos dados foi o banco do SINAN fornecido pela Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde – CGVS/SMS/POA/RS.
Os sujeitos selecionados foram buscados por meio de visita domiciliar. Durante esse processo, 65 (23,2%) indivíduos não foram localizados em função de problemas com o endereço (10 moravam em outro município e 55 eram desconhecidos dos moradores do endereço), um havia falecido (0,4%) e nove (3,2%) recusaram-se a participar. Com isso, foram substituídos 75 (26,8%) indivíduos. O critério de seleção para a substituição foi o sorteio entre o sujeito imediatamente anterior ou posterior do caso inicialmente selecionado.
Foram realizadas 280 entrevistas com o auxílio de questionário construído especialmente para esse fim. As questões fechadas eram relativas ao serviço no qual o paciente iniciou o tratamento, se o tratamento foi concluído ou não, número de doses recebidas e se o paciente foi procurado por algum profissional de saúde do serviço no qual estava realizando o tratamento em função de tê-lo interrompido.
Para a identificação do número de doses recebidas e confirmação da situação de abandono, foi solicitada a apresentação da carteira de vacina. Caso a mesma não fosse localizada, era solicitado ao entrevistado que referisse o número de doses prescritas e realizadas. A avaliação final sobre conclusão ou abandono do tratamento foi realizada compatibilizando-se o registro na carteira de vacina com o número de doses prescritas na ficha de atendimento anti-rábico do SINAN ou comparando-se o número de doses referidas como realizadas com o número de doses prescritas na ficha.
A idade e o sexo do paciente foram coletados da ficha do SINAN e confirmados na entrevista. A idade foi categorizada segundo o ciclo de vida em: crianças (< 6 anos e entre 6 e 12 anos), adolescentes (13 a 19 anos), adultos (20 a 59 anos) e idosos (> 60 anos).
Para as questões abertas, referentes ao motivo da procura pelo atendimento; motivo da troca de serviço, caso tivesse ocorrido; importância da vacinação e motivo da não conclusão do tratamento, procedeu-se a análise de conteúdo temática. 12
Com vistas à análise da adequação da indicação do tratamento, foram utilizadas como referência as Normas Técnicas para Tratamento Profilático Anti-Rábico Humano.1 Segundo essas, para caninos e felinos, é considerado o estado de saúde do animal no momento da agressão, a possibilidade de observação do mesmo, as características do ferimento e situação epidemiológica do município onde ocorreu a agressão. Em casos de contato com quirópteros ou agressão por animais de produção, a vacina deve ser sempre indicada.1
Cada caso foi, inicialmente, avaliado por um veterinário da equipe de pesquisa. Nas situações de discordância entre a prescrição do profissional de saúde e o preconizado pelas Normas Técnicas, um técnico da CGVS, atuou como o segundo avaliador. Além disso, um terceiro avaliador, especialista em raiva, revisou o caso, sendo considerado como o padrão ouro. Os tratamentos foram classificados em adequadamente e inadequadamente indicados.
Por fim, os dados quantitativos foram analisados utilizando-se a estatística descritiva e as associações de interesse foram testadas com o auxílio do teste do qui-quadrado de associação e nível de significância de 0,05.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil (processo número 351H – 2006), tendo a CGVS/SMS/POA consentido no repasse dos dados e os entrevistados assinado o termo de consentimento.
RESULTADOS
Entre os 280 indivíduos considerados como tendo abandonado o tratamento vacinal, 52,1% eram do sexo masculino. A faixa etária que concentrou a maioria dos casos de interrupção de tratamento foi a dos adultos (50,8%), seguida das crianças entre 6 e 12 anos (Tabela 1).
A distribuição dos casos de abandono, segundo sexo e faixa etária, foi comparada com o perfil de atendimentos anti-rábicos em Porto Alegre, no mesmo período, não tendo apresentado diferenças estatisticamente significativas.
Em relação aos motivos da procura pelo atendimento, 45,0% referiram ser para tratar o ferimento, 30,7% para receber vacina anti-rábica e 14,0% em função da gravidade da doença. Além desses, 4,3% o fizeram por razões não relacionadas à raiva, como para vacinação anti-tetânica; tratamento de problemas de saúde pré-existentes (diabetes, hipertensão, baixa imunidade) ou situações relacionadas a acidentes de trabalho.
Entre os 280 casos estudados, 57 deles (20,4%) recorreram ao serviço do Pronto Socorro Municipal para o tratamento do ferimento. Neste local, não é preenchida a ficha de atendimento anti-rábico e nem realizada a vacinação. Em função disso, o paciente é encaminhado para uma das nove unidades referência da cidade, após a realização do tratamento do ferimento.
Do total de entrevistados, 93 (33,2%) continuaram o esquema vacinal em um serviço diferente daquele onde iniciaram o tratamento. Entre esses, o motivo da troca mais relatado foi a proximidade da residência em 56 casos; 19,3% devido a maior disponibilidade de horários de atendimento e 8,6% foram encaminhados pelo serviço que realizou o primeiro atendimento (Tabela 1).
Em relação à apresentação da carteira de vacina, apenas 28,2% (79/280) dos entrevistados apresentaram-na no momento da entrevista. Entre esses, verificou-se que, comprovadamente, 74,7% (59) haviam concluído o tratamento e 25,3% (20) interromperam-no. Entre os 201 casos que não apresentaram carteira, 127 (63,2%) informaram haver concluído o tratamento, tendo citado, corretamente, o número de doses prescritas pelo serviço que realizou o primeiro atendimento. A partir dessas informações, verificou-se que, dos 280 entrevistados, 66,4% (186) concluíram o tratamento.
Quanto ao número de doses indicadas, para 2/3 dos entrevistados foram prescritas duas doses. Desses, 69,8% concluíram o tratamento. Entre os que receberam a indicação de cinco doses, apenas 59,3% as realizaram (Tabela 2). Apesar da maior prevalência de interrupção entre os indivíduos com cinco doses indicadas, essa diferença não foi estatisticamente significativa (x2 = 3,03; p = 0,08).
Foi testada, também, a associação entre sexo e abandono do esquema vacinal. O sexo feminino apresentou 31,3% (42/134) de abandono, enquanto que o masculino 35,6% (52/146), não sendo evidenciada diferença estatisticamente significativa (x2 = 0,57; p = 0,45). O mesmo ocorreu em relação à faixa etária. Os indivíduos com menos de 13 anos apresentaram 33,7% (29/57) de abandono, os adolescentes 51,9% (14/29) e os adultos 30,5% (51/167) (x2 = 4,79; p = 0,09).
Quanto aos motivos do abandono, 24,5% indivíduos relataram não terem considerado necessário completar o tratamento e 13,8% não se sentiram adequadamente orientados sobre como dar continuidade ao mesmo. Além desses, 10,6% referiram a falta de tempo para realizarem as vacinas ou a recomendação do profissional da saúde sobre a não necessidade de realizar a segunda dose se o animal estivesse saudável. As outras razões foram apontadas com uma menor freqüência. Somente em 19,1% dos casos, houve a busca ativa dos faltosos pelos serviços de saúde (Tabela 3).
Quando perguntados sobre seu conhecimento sobre a importância da vacina, 70,7% dos entrevistados referiram conhecer, indicando a prevenção da raiva como sua principal ação, seguida da prevenção de doenças em geral e da morte (Tabela 4).
Por fim, a avaliação da qualidade da indicação da vacina mostrou que, em 92,5% (259/280) dos casos, essa foi indicada adequadamente e 7,5% (21/280) não necessitariam da vacina. Não se evidenciou associação estatisticamente significativa entre a qualidade da indicação e o abandono do esquema vacinal (x2 = 0,87; p = 0,35).
DISCUSSÃO
Uma das principais contribuições do presente estudo refere-se a seu ineditismo e, principalmente, atualidade. Na revisão de literatura realizada, não foram encontrados estudos nacionais ou internacionais investigando o perfil de indivíduos que abandonaram o tratamento profilático com vacinas anti-rábicas. Foi localizado, apenas, o estudo de Ribeiro Netto e Machado13, no final da década de 60, enfocando as razões do abandono. Com isso, a comparação dos achados do presente estudo ficou prejudicada, tendo sido realizada apenas em relação aos motivos da interrupção do tratamento.
Evidenciou-se alto percentual (23,6%) de casos que necessitaram de substituição em função de endereços não corretos. Isso é, na visita realizada ao endereço registrado no SINAN, a casa não foi localizada ou os moradores da mesma desconheciam a pessoa procurada. É possível que isso ocorra em função de que os serviços de saúde da capital são buscados por moradores de outros municípios e esses, com medo de não serem atendidos, informam endereços incorretos pertencentes a Porto Alegre. Por outro lado, o percentual de recusas (3,2%) foi bastante reduzido, não comprometendo a representatividade da amostra.
Nesta pesquisa, evidenciou-se predomínio do sexo masculino e do grupo etário dos adultos, semelhante ao perfil de todos os atendimentos anti-rábicos realizados no mesmo período em Porto Alegre e aos resultados encontrados por outros autores.14, 15
Quase a metade dos indivíduos apontou como motivo da procura pelo atendimento, o tratamento do ferimento. Isso pode indicar o desconhecimento sobre a gravidade da doença e também uma tendência de busca dos serviços para o tratamento de lesões mais graves, que necessitam de maiores cuidados. Menos de 1/3 referiram ser para receber a vacina contra a raiva, o que seria uma motivação adequada, em função do risco da exposição. Alguns indivíduos referiram que a razão da busca era a vacinação anti-tetânica, realizada, quando necessário, em casos de mordeduras animais.16 Embora o tratamento do ferimento e a vacinação anti-tetânica sejam procedimentos importantes, o principal motivo para a busca de atendimento por agressão animal deve ser a avaliação da situação para a indicação ou não da vacina e soro.
Em relação aos pacientes com problemas de saúde pré-existentes (diabetes, hipertensão, baixa imunidade), ainda que o principal motivo da procura de atendimento deva ser a prevenção da raiva, é necessário verificar se ocorreu o agravamento desses, procedimento correto para a prevenção de possíveis complicações e a prescrição de cuidados especiais.
Os acidentes de trabalho também foram motivos considerados como adequados para a procura de atendimento. Nos casos em que a agressão animal ocorreu durante o trabalho, as empresas exigiram que o funcionário buscasse o serviço de saúde mostrando preocupação com sua saúde e adequação à legislação trabalhista.
Idealmente, o paciente deveria iniciar e concluir a vacinação em um mesmo serviço, possibilitando assim seu melhor acompanhamento e evitando problemas de registro no SINAN. No entanto, por diferentes razões, ocorre a troca de serviço. A mais freqüentemente relatada foi a distância, determinando busca por um serviço mais próximo à residência ou local de trabalho, o que facilita a conclusão do tratamento. Alguns entrevistados informaram terem trocado de serviço em busca de maior disponibilidade de horário para atendimento, na qual ele seja oferecido diariamente, 24 horas por dia, inclusive sábados, domingos e feriados, de acordo com o preconizado pelas Normas Técnicas de Tratamento Profilático Anti-Rábico Humano.1 Essa maior disponibilidade contribui para a continuidade do tratamento, sendo oferecida apenas em duas unidades referência do município (uma para atendimento de crianças até 12 anos e a outra para os maiores de 13 anos). O encaminhamento pelo serviço que realizou o primeiro atendimento também constitui-se em razão para a troca de serviço. Outras vezes, os pacientes atendidos necessitam de soro, sendo encaminhados às duas unidades referência que realizam esse procedimento. A centralização da disponibilidade do soro pode trazer algumas dificuldades para sua aplicação, como o retardo no início de sua administração ou a desistência de sua busca pela dificuldade de locomoção.
Dois pacientes referiram ter trocado de serviço por falta de vacina, situação essa que não deveria acontecer, pelo risco de descontinuidade ao tratamento. Nenhum usuário informou descontentamento com o atendimento como motivo da troca de serviço.
Após as entrevistas, evidenciou-se que, dos 280 casos registrados no SINAN como abandono de tratamento, somente 94 haviam interrompido, de fato, a vacinação. A maioria dos indivíduos considerados como não tendo concluído o esquema vacinal indicado, na realidade, havia trocado de serviço para a realização da vacina. O serviço que deu continuidade não informou, ao que iniciou o tratamento e preencheu a ficha de atendimento anti-rábico do SINAN, sobre a conclusão do mesmo, assim como também não informou ao setor que coordena a vigilância da raiva humana na Secretaria Municipal de Saúde. Com isso, o sistema ficou desatualizado, sendo os casos interpretados, erroneamente, como abandono de tratamento.
Os resultados desta pesquisa nos levam a pensar que a taxa de abandono de tratamento, no segundo semestre de 2006, foi inferior aos 55,4% registrados no SINAN. Considerando-se que, entre os registrados como abandono, somente 33,6% o eram de fato, pode-se aplicar essa mesma proporção nos 962, reduzindo-se esse número para 323. Com isso, estima-se que a proporção de interrupção no total de atendimentos, no período estudado, seja 14,5%. É importante ressaltar que essa é apenas uma estimativa, devendo essa situação ser melhor investigada em estudos posteriores.
Em Mato Grosso do Sul17, as Fichas de Atendimento Anti-Rábico foram informatizadas, resolvendo este problema. O serviço de saúde, ao receber o paciente, abre a ficha de atendimento, realizando o primeiro registro, sendo os dados disponibilizados às outras unidades por meio de uma rede interligada. Esse registro pode ser acessado em qualquer unidade referência, possibilitando a inclusão de novos dados sobre o caso. Além disso, também é disponibilizada a ficha vacinal na qual serão registradas as vacinas aplicadas.
A maioria dos entrevistados não dispunha da carteira de vacinação no momento da entrevista. No entanto, mesmo não tendo apresentado a carteira, os indivíduos que afirmaram haver concluído o tratamento relataram corretamente o número de doses prescritas, enquanto que os que afirmaram terem abandonado o tratamento, também confirmaram corretamente o número de doses que deveriam ter realizado.
O percentual de abandono foi maior entre os que não tinham carteira do que entre os que tinham. Isso pode ser um indicador da baixa importância dada ao tratamento. Porém, essa diferença não foi estatisticamente significativa. Talvez isso se deva ao número de indivíduos avaliados, insuficiente para o estudo da associação, uma vez que a amostra não foi calculada para esse fim. Apesar disso, esse resultado pode indicar uma tendência.
O alto percentual de indivíduos sem carteira de vacina reforça a necessidade dos profissionais de saúde orientarem seus usuários sobre a importância do cuidado com esse documento.
O sistema informatizado de Mato Grosso do Sul17 também auxilia a solucionar o problema do extravio das carteiras de vacinação, permitindo um melhor controle dessa situação.
Houve maior percentual de interrupção nos tratamentos com cinco doses indicadas. Esses são os casos mais graves e, ao mesmo tempo, apresentam maior risco de abandono por serem os de mais longa duração. Exigem do paciente maior disponibilidade de tempo, na medida em que necessita comparecer mais vezes ao serviço de saúde. Dependendo do caso, também podem trazer dificuldades econômicas, em função de necessidade de transporte e maior chance de esquecimento da data aprazada.
O principal motivo da não conclusão do tratamento foi que os indivíduos não consideraram necessário completá-lo. Isso é, consideraram sua indicação desnecessária. O paciente não deve abandonar ou interromper o tratamento anti-rábico por conta própria, correndo o risco de contrair a doença pela falta do número necessário de doses para sua imunização.9 O esquema vacinal indicado deve ser rigorosamente seguido3, sendo a interrupção do tratamento de responsabilidade exclusiva dos profissionais de saúde.9
Ribeiro Netto e Machado13 encontraram, como motivos do abandono, despesas de transporte, perdas de horas de trabalho e, no caso das crianças, a necessidade do acompanhamento de um responsável, além da falta de orientação dos profissionais da saúde sobre a importância do tratamento completo, semelhante ao encontrado no presente estudo.
Em relação ao item “outros” dos motivos do abandono, estão incluídos três diferentes motivos, cada um deles com um caso. Em um desses, o paciente referiu que interrompeu o tratamento por ter encontrado a carteira de vacinação do cão, porém, o histórico vacinal do animal não se constitui em fator suficiente para a dispensa do tratamento1, pois um animal vacinado pode não estar imunizado, apesar de ter recebido a vacina. Outra paciente encontrava-se grávida, tendo ficado com receio de se vacinar. Entretanto, gravidez, doenças intercorrentes e outros tratamentos não representam contra-indicação para a vacinação.1 Essa situação demonstra que a paciente não foi suficientemente orientada pelo serviço de saúde. O terceiro paciente não desejava realizar o tratamento, o tendo iniciado quando foi ao serviço de saúde procurar orientação sobre um procedimento cirúrgico e o médico constatou a presença de uma lesão por agressão animal, indicando a vacina. Nessa e outras situações, é importante que o serviço de saúde informe sobre a gravidade da exposição6 para que o paciente se responsabilize por seu tratamento.
Em um caso, houve a liberação do tratamento pelo Centro de Controle de Zoonoses do município, procedimento de acordo com as normas técnicas do tratamento anti-rábico, após a observação do animal por 10 dias ou realização de exame laboratorial. A observação do animal deve ser supervisionada por médico veterinário ou serviço municipal de vigilância da raiva em visita domiciliar ou no canil público.3 No entanto, ainda que o procedimento estivesse correto, verifica-se a falta de integração entre o serviço médico e médico veterinário, na medida em que o banco de dados do SINAN não foi retro-alimentado.
Quanto às dificuldades no atendimento, foram citados motivos como: crianças desacompanhadas dos pais, falta de vacina no serviço, serviço fechado ou o paciente não haver levado sua carteira de vacinação. Todos esses motivos impossibilitaram a realização da vacina, contribuindo, no entendimento dos entrevistados, para o abandono do tratamento.
Somente em 19,1% dos casos considerados pelo SINAN como abandono, houve busca ativa pelo serviço de saúde, apesar desse ser responsável pela busca de faltosos na data aprazada para a aplicação das doses prescritas.6 Essa situação indica a necessidade da sensibilização contínua da equipe de saúde sobre seu papel na busca ativa dos faltosos. Entretanto, sabe-se das dificuldades operacionais dos serviços para este tipo de atuação, tanto pela falta de profissionais como de meio de transporte.
O alto percentual de indivíduos que referiram saber da importância da vacinação demonstra um bom nível de conhecimento por parte desses. Apesar disso, ações para divulgar informações precisam ser implementadas para atingir a parcela desinformada. Nesse sentido, foi criado o Dia Mundial da Raiva, em 8 de setembro, com o objetivo de melhorar a conscientização sobre essa doença.18 Neste dia, em Porto Alegre, foram realizadas várias atividades educativas para informar sobre as formas de transmissão, tratamento e prevenção da doença.
Em relação à qualidade do tratamento prescrito, verificou-se alto percentual de indicação adequada de vacinas (92,5%), segundo as Normas Técnicas do Ministério da Saúde.1 Como não foram encontrados outros artigos investigando essa situação entre casos de abandono, comparou-se os achados deste estudo com os de Rigo e Honer16, em Mato Grosso do Sul, e o de Moran et al.19, nos Estados Unidos, que investigaram a adequação da profilaxia anti-rábica entre o total de casos atendidos.
No primeiro estudo, 41,9% dos indivíduos atendidos em profilaxia anti-rábica tiveram seu tratamento indicado adequadamente.16 A situação identificada por Moran et al. foi mais favorável, sendo que 60% dos casos atendidos tiveram a indicação do tratamento considerada como adequada. Comparando com esses resultados, verificou-se um percentual extremamente positivo de indicação correta de vacinação na população estudada. A ausência de associação entre a qualidade da indicação e o real abandono do tratamento parece sugerir que essa não possa ser considerada como um motivo para a interrupção do mesmo em Porto Alegre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O alto percentual de abandono de tratamento identificado, a partir do SINAN, ocorreu devido a falhas na retro-alimentação do sistema. Em função disso, é necessário que os municípios viabilizem estratégias que permitam essa retro-alimentação, quer informatizando o registro dos atendimentos ou criando um fluxo em papel, quando do encerramento do esquema vacinal. Por outro lado, é importante ressaltar que, apesar dos problemas com o sistema terem representado 66,4% da taxa de abandono inicialmente detectada, a maioria dos casos confirmados como abandono estava relacionada à falta de entendimento dos pacientes quanto à importância do tratamento profilático. Nesse sentido, entende-se que duas estratégias poderão ser utilizadas para seu enfrentamento: a capacitação da equipe de saúde e a educação em saúde da comunidade.
A capacitação é necessária para a maior conscientização da equipe de saúde sobre a infecção humana, possibilitando a indicação adequada e oportuna da profilaxia, evitando que a prevenção da doença seja negligenciada.19 Para tanto, é fundamental que os profissionais se sintam seguros para avaliar todos os aspectos envolvidos em cada caso: as características do ferimento, o estado de saúde do animal agressor, a possibilidade de observação para cães e gatos, a situação epidemiológica do local de origem do animal para a adequada prescrição do tratamento3, enfatizando a necessidade da conclusão do esquema vacinal prescrito. Além disso, é também responsabilidade da equipe de saúde a busca ativa dos faltosos. No entanto, é necessário existir recursos humanos e materiais para que isso aconteça.
As ações de educação em saúde devem ser desenvolvidas visando à responsabilização dos usuários por sua própria saúde. Essas se baseiam no estímulo à posse responsável de animais; castração e vacinação dos animais domésticos; na informação da população para o reconhecimento da gravidade da exposição às agressões animais, necessidade de atendimento imediato e medidas auxiliares que devem ser seguidas pelas pessoas expostas ou agredidas; e na identificação dos sintomas de um animal suspeito. Além disso, é importante divulgar os serviços de referência existentes; desmistificar o tratamento anti-rábico humano e estimular a responsabilidade do paciente no cumprimento do esquema prescrito com vistas a reduzir o abandono e o risco da ocorrência da doença.
A situação encontrada no presente estudo aponta para a necessidade de outros estudos sobre o abandono do tratamento anti-rábico humano, pois esse é um tema pouco investigado, apesar de sua importância para a Saúde Coletiva.
COLABORADORES
RD Veloso foi responsável pela concepção do estudo, coleta de dados e redação do artigo. DRGC Aerts participou da concepção do estudo, supervisão da coleta de dados e redação do artigo. LO Fetzer auxiliou na concepção do estudo e participou da redação final do artigo. CB dos Anjos realizou a revisão final do artigo. JC Sangiovanni participou da avaliação da qualidade do atendimento anti-rábico humano e revisão final do artigo.
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