0314/2023 - MULHERES LACTANTES E A PERCEPÇÃO DO VALOR ÚTIL PARA O ALEITAMENTO MATERNO DENTRO DO ESPAÇO PRISIONAL
LACTATING WOMEN AND THE PERCEPTION OF USEFUL VALUE FOR BREASTFEEDING AT THE PRISON SPACE
Autor:
• Marcia Vieira dos Santos - dos Santos, M.V - <marcias@id.uff.br>ORCID: http://orcid.org/0000-0002-1488-7314
Coautor(es):
• Valdecyr Herdy Alves - Alves, V.H - <herdy_alves@id.uff.br>ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8671-5063
• Audrey Vidal Pereira - Pereira, A.V - <avpereira@id.uff.br> +
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6570-9016
• Bianca Dargam Gomes Vieira - Vieira, B.D.G - <dargam_bianca@id.uff.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0734-3685
• Diego Pereira Rodrigues - Rodrigues, D.P - <diego.pereira.rodrigues@gmail.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8383-7663
• Tatiana Socorro dos Santos Calandrini - Calandrini, T.S. dos S - <calandrinitatiana@gmail.com>
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2807-2682
• Rebecca dos Santos Alcicci - Alcicci, R.S - <psirebeccaalcici@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0008-0452-8888
• Raquel Ribeiro de Azevedo Costa do Carmo - do Carmo, R.R.A.C - <raquel_ribeiro@id.uff.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9150-177X
Resumo:
RESUMOObjetivo: Desvelar o valor útil acerca da amamentação, para lactantes no ambiente prisional, a partir da dimensão axiológica de Max Scheler. Método: Pesquisa qualitativa do tipo fenomenológica. Desenvolvida na unidade prisional no Rio de Janeiro, onde foram entrevistadas sete lactantes. A técnica de coleta de dados foi a entrevista fenomenológica e para análise e tratamento dos dados utilizou-se a análise de conteúdo de Laurence Bardin. Resultados: O valor desvelado à luz de Max Scheler foi o valor útil, o qual foi detectado a partir da carência das lactantes no momento vivido no ato de amamentar dentro do espaço prisional, sendo identificadas duas categorias do valor útil: Apoio da unidade prisional como valor útil à amamentação e Rede de apoio como valor útil para amamentação. Conclusão: O espaço prisional materno-infantil é um valor útil à amamentação, porém se faz necessário uma transformação desse espaço em um ambiente legítimo, que deverá valorar a amamentação por meio do apoio da família, amigos, profissionais de saúde e com a implementação de novos protocolos e políticas públicas específicas para a prática de amamentar dentro do sistema prisional, as quais devem ser baseadas em evidências científicas e nos princípios do Sistema Único de Saúde de forma integral, universal e com equidade.
Palavras-chave:
Saúde da mulher; Amamentação; Valores; Prisão.Abstract:
Objective: To unveil the useful value about breastfeed for lactating women in prison, based on Max Scheler\'s axiological perspective. Method: Qualitative research of phenomenological type. Developed at the prison unit in Rio de Janeiro, seven lactating women were interviewed. The data collection technique was the phenomenological interview, and Laurence Bardin\'s content analysis was used for data analysis and treatment. Results: The value unveiled in the light of Max Scheler was the useful value, which was detectedthe lack experienced by lactating women during breastfeeding within the prison. Two categories were identified: Supportthe prison unit as useful value to breastfeeding and Support network as useful value for breastfeeding. Conclusion: The maternal-child prison space is a useful value for breastfeeding, but it is necessary to transform this space into a legitimate environment, which should value breastfeeding through the support of family, friends, health professionals and with the implementation of new protocols and specific public policies for the practice of breastfeeding within the prison system, which must be based on scientific evidence and on the principles of the Unified Health System in an integral, universal and equitable way.Keywords:
Women\'s health; Breastfeeding; Values; Prison.Conteúdo:
O Global Breastfeeding Scorecard sugere que todos os países invistam na prática de amamentar, a fim de contribuir para a saúde da população, para isso, são necessárias ações que contemplem a promoção da amamentação, bem como o apoio a esta, além de legislações que protejam a amamentação.¹
Destarte, gestação, puerpério e amamentação, quando se trata de sistema penal, também são assuntos relevantes para a saúde materno-infantil, visto que a população feminina brasileira vem aumentando em um cenário de desigualdade e faz parte dos grupos excluídos da sociedade. Muitas das mulheres encarceradas viviam em vulnerabilidade social antes da prisão e, geralmente, cometeram crimes sem violência, quase sempre interligadas ao tráfico de drogas2, o que também ocorre em outros países como: Canadá, Estados Unidos da América, Malawi.3,4,5
Apesar do aumento mundialmente significativo do número de mulheres gestantes no sistema prisional, muitas das necessidades desse público são negligenciadas, o que pode desencadear impactos negativos na saúde do binômio mãe e filho. Sendo assim, trata-se de um assunto de interesse da saúde pública.6
Segundo os Dados Estatísticos do Sistema Penitenciário, no período de janeiro a junho de 2022, existiam no sistema prisional brasileiro 164 gestantes privadas de liberdade; 93 lactantes; 791 crianças dentro das prisões brasileiras, entre as faixas etárias: de 0 a 6 meses, 11,25% das crianças; de 6 meses a 1 ano, 5,82%; de 1 a 2 anos, 7,71%; de 2 a 3 anos, 10,37% e acima de 3 anos, 64,85% das crianças.7
Assim sendo, a prática de amamentar torna-se uma necessidade real dentro das prisões, uma vez que gestantes e lactantes vivenciam maior risco de adoecimento no cárcere, local que afeta a qualidade de vida das mulheres por ser insalubre, estressante e desencadear doenças físicas e mentais em qualquer indivíduo.2 Portanto, esse público fica mais vulnerável, pois, no período gravídico-puerperal, tem necessidade de maior suporte dos serviços de saúde e de apoio psíquico e social, o que torna tênue esse período na vida da mulher, visto que, dentro das prisões, o direito de exercer a maternidade é prejudicado, assim como seus filhos são impossibilitados de viver a infância integralmente, sendo esse um problema de saúde.8,9
No Brasil, a maioria das gestantes privadas de liberdade encontra-se grávida no momento da prisão10; nos EUA, de 3% a 4% das mulheres estão grávidas no sistema carcerário11; na Inglaterra e País de Gales, quase 7% das mulheres presas são gestantes, sendo que esses países realizam o teste de gravidez no momento da admissão, contudo, nem todas as prisões dos EUA possuem essa prática. 12
Ao se realizar a captação precoce de gestantes, assegura-se um pré-natal de qualidade, entretanto, nas prisões brasileiras, existe déficit de assistência no período gravídico-puerperal, podendo ocorrer complicações materno-fetais devido à precária implantação da política de atenção à saúde da mulher no contexto prisional.13
Portanto, a complexidade da temática saúde materno-infantil aumenta no ambiente carcerário quando existem crianças envolvidas e muitas delas ainda precisam ser amamentadas. 14 Dessa forma, o ato de amamentar é um fenômeno nas prisões femininas, pois a amamentação está vinculada à vida reprodutiva das mulheres e sofre várias influências, conforme a situação em que elas vivem, principalmente quando essas mulheres vivem no ambiente prisional.2-15
Logo, é necessário compreender que a amamentação não abrange somente o fator biológico e racional, mas também a experiência do sentir de cada mulher. Portanto, a lactante é uma pessoa portadora de valores instituídos, entendendo que a amamentação está situada em um universo de valores transmitidos e reproduzidos, culturalmente, em que também poderão ser agregados novos valores, conforme o vivido de cada lactante.16
Os valores, para Scheler, manifestam-se nas experiências vividas, logo as coisas que cercam as pessoas possuem um determinado valor e fazem com que o indivíduo faça uma escolha e nunca seja indiferente a essa coisa.16 Quando a coisa passa a ter valor, fica evidenciado que, naquele momento, existe uma carência ou vontade, surgindo, então, a experiência fenomenológica, que a priori ocorre pela intuição emocional do vivido.
Nesse contexto, os valores representam aspirações e necessidades que o indivíduo busca atender e, quando não satisfeitas, surgirão novos desejos que serão perseguidos até esgotar a realização do valor almejado. Ao esgotar o valor, o mesmo é inserido na cultura da época vivida.17
Nessa perspectiva, para pesquisar os valores úteis da amamentação expressos pelas lactantes privadas de liberdade, esta pesquisa se baseou na Teoria de Valores proposta pelo filósofo Max Scheler, que possibilitará ampliar os processos de cuidados no campo da saúde reprodutiva das mulheres privadas de liberdade, com foco na saúde do binômio mãe e filho.
OBJETIVO
Desvelar a percepção do valor útil acerca da amamentação, para lactantes, no ambiente prisional, a partir da dimensão axiológica de Max Scheler.
MÉTODO
Tipo da pesquisa
Trata-se de uma pesquisa social, exploratória, descritiva, com abordagem qualitativa, do tipo fenomenológico, ancorada na fenomenologia de Max Scheler. Este filósofo estuda a ética humana a partir das dimensões ontológicas, visando o lugar do homem no universo, seu interesse foca o sentido da vida e seus valores. 17
Os valores, para Scheler, manifestam-se na experiência vivida, assim as coisas que cercam o mundo das pessoas possuem um determinado valor e fazem com que o indivíduo faça uma escolha, nunca uma impassibilidade acerca das coisas do mundo. Quando as coisas passam a ter valor, isso demonstra que, naquele momento, existiu o preenchimento de uma carência ou vontade, assim a consciência intui o valor que levará ao desejável.16 Esses valores serão percorridos até esgotar a realização, após isso, o mesmo é inserido na cultura da época vivida.17
Nessa concepção, Scheler desenvolveu uma fenomenologia pura, intuitiva e emocional, baseada na ética de valores.18 Na axiologia de Scheler, quanto mais elevados são os valores, mais duradouros se tornam, uma vez que o preferir do homem faz com que seja dado prioridade aos valores. 19. Dessa forma, os valores estão relacionados entre si de uma forma hierárquica, eles nunca estão desvinculados do mundo da vida, e percebidos pela intuição emocional que surge da experiência fenomenológica.20
O objetivo principal da fenomenologia de Max Scheler foi resgatar o valor da pessoa, pois o ser humano é o valor da fonte, sendo o amor o valor central do indivíduo.21 Os valores são hierarquizados em categorias em ordem crescente, quanto mais elevados são os valores, mais duradouros se tornam: a) valores sensíveis: são os valores mais baixos, estão ligados à sensibilidade humana; b) valores vitais: são considerados valores medianos, sob duas perspectivas, a primeira está ligada ao valor da vida e a segunda, ao caráter emotivo humano; c) valores espirituais: incluem os valores estéticos/morais, éticos e intelectuais e; d) valores religiosos, que envolvem o valor da santidade, o nível mais elevado.22
Para Scheler, o valor útil é um valor mediano e sua dimensão visa ao valor vital. A saúde é um valor vital, que, para ser atingido, é necessário valorar cuidados úteis, assim “um valor de utilidade qualquer é um valor para uma essência vital” (Scheler, 2012, p. 158).23
Nesta pesquisa, foram adotados os critérios apresentados no Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (Coreq), que visa à qualidade e à transparência do relato da pesquisa qualitativa em saúde.
Cenário da Pesquisa
Esta pesquisa foi desenvolvida na unidade prisional materno-infantil onde ficam as lactantes privadas de liberdade com seus filhos, instituição vinculada à Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro (Seap-RJ). Para realizá-la, foi necessária a autorização da Escola de Gestão Penitenciária da Seap-RJ. A liberação ocorreu em março de 2020, porém a visitação nas unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro foi suspensa devido à pandemia de covid-19.
Somente em novembro de 2020, com muita restrição, a Escola de Gestão Penitenciária e a Direção da instituição prisional autorizaram a entrada de alguns pesquisadores no cenário e informaram que, naquele período, a Seap-RJ só estava autorizando a entrada nas unidades prisionais de pesquisadores que eram funcionários, situação em que se incluía a pesquisadora desta investigação. Nessa época, a maioria das lactantes recebeu o benefício da prisão domiciliar ou liberdade provisória. Só ficaram na unidade prisional as lactantes e gestantes que já eram condenadas e/ou aguardavam parecer do Judiciário para a referida liberação.
Por esses motivos, as entrevistas ocorreram no período de novembro de 2020 a maio de 2021. Durante a realização das entrevistas, havia uma, no máximo, duas lactentes no estabelecimento prisional por mês. Assim, participaram do estudo sete mulheres, o que representa 100% das lactantes que amamentavam na unidade prisional, durante a execução da pesquisa de campo.
O encerramento da coleta de dados se deu por suficiência de significados, quando a análise, desenvolvida concomitantemente, indicou que os significados obtidos respondiam ao objetivo da pesquisa, ou seja, os dados começaram a apresentar redundância; logo, não era mais necessária a inclusão de novos participantes. Então, o quantitativo de participantes não foi predeterminado e totalizou sete mulheres lactantes.
O recrutamento foi realizado por conveniência, com convite para participação no estudo e aplicação dos critérios de elegibilidade da amostra, a saber: lactantes que estavam amamentando no presídio do Rio de Janeiro; lactantes que tinham autorização da Direção para participar da pesquisa; lactantes que estavam em condições físicas e psíquicas de participar da pesquisa. As mulheres que atenderam a esses critérios foram deslocadas para a realização da coleta de dados, com o intuito de estabelecer uma relação de empatia e acolhimento para a entrevista. Os critérios de exclusão foram: motivos judiciais que impediam a lactante de participar da entrevista; transferência da lactante, no período da entrevista, para outra unidade prisional e obtenção de liberdade; além de mulheres que, embora estivessem com seus filhos na prisão, não estavam amamentando.
Para assegurar a privacidade e o sigilo quanto aos dados coletados, as participantes foram identificadas pela letra M (inicial da palavra “Mulher”), seguida de um algarismo arábico (M1, M2, …, M7), conforme a ordem em que se deram as entrevistas.
Aspectos éticos e legais
A pesquisa, como preconiza a Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal Fluminense (UFF), conforme Protocolo n. 3.019.397 e recebeu autorização da Secretaria de Estado e Administração Penitenciária por meio do SEI-10015024.
Técnica de coleta de dados
Para entender um fenômeno, é necessário vivenciá-lo; logo, o pesquisador busca a descrição realizada pelo sujeito, compreendendo seu interior e desvelando seus significados.16 A entrevista fenomenológica capta a subjetividade das participantes para a compreensão do fenômeno e a condução da entrevista é mediada por questões empáticas, existindo dois momentos na entrevista fenomenológica que devem ser observados: no primeiro, ocorre o ôntico, que se inicia com a organização da pesquisa e vai até a descrição de fatos (subjetiva); no segundo, que se denomina fase ontológica, volta-se para a compreensão do desconhecido, quando se realiza a interpretação do fenômeno, sendo revelados os sentidos. Assim, o pesquisador obtém uma compreensão do sujeito da pesquisa, isto é, compreende a perspectiva do outro. 24
Para a realização da entrevista fenomenológica, não existe um número específico de participantes, pois as entrevistas devem ocorrer paralelamente às análises e, assim que se conseguir compreender o fenômeno investigado, elas podem ser encerradas.24 Neste estudo, a entrevista fenomenológica utilizou apenas a seguinte questão norteadora: “Fale sobre sua vivência como mulher que amamenta no espaço prisional”.
Os encontros duravam em média quase 2 horas, face a face, pesquisadora, lactante e, no colo desta, seu bebê. A entrevista teve início com uma apresentação da pesquisadora e com o aceite da lactante para participação na pesquisa, esse aceite se deu por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Sempre havia empatia entre a pesquisadora e a participante, decorrente da práxis da pesquisadora no ambiente prisional e com a saúde materno-infantil.
Foram utilizados na entrevista diário de campo, papel e caneta, pois, nas unidades prisionais do estado do Rio de Janeiro, não é permitido gravar as entrevistas. No final da entrevista, a pesquisadora dava um feedback para a participante e agradecia a sua participação e a de seu bebê. As entrevistas foram encerradas ao desvelar o valor útil na percepção das lactantes privadas de liberdade, à luz de Max Scheler.
Análise e tratamento dos dados
Para realizar a análise e a discussão dos resultados da pesquisa, foram utilizados os conceitos de análise de conteúdo de Laurence Bardin, iniciando como uma pré-análise, que é a fase em que se faz a organização sistemática das ideias. Em seguida, realizou-se a exploração do material e, por último, o tratamento do resultado.25
Nesta pesquisa, todas as etapas foram realizadas com exaustividade, homogeneidade, exclusividade, e os dados encontrados foram agrupados por convergência de conteúdo com base na Teoria de Max Scheler, tendo como núcleo temático “Valor Útil da Amamentação”.
Para analisar as unidades de registro e as codificações das mensagens, foi utilizado o Software Qualitative Data Analysis, Atlas.ti, versão 9, ferramenta que ajuda o pesquisador na análise de dados da pesquisa qualitativa. A primeira etapa realizada foi o processamento das respostas de cada participante no Software, em seguida, as palavras/unidades de registro foram classificadas por sua frequência, sendo avaliadas pelos pesquisadores conforme o objetivo analítico deste estudo.
Logo após, as unidades de registro foram codificadas em unidades temáticas, conforme significados e agrupadas por códigos, dando, assim, a possibilidade de os autores construírem duas categorias, a saber: primeira categoria: apoio da unidade prisional como valor útil à amamentação; segunda categoria: rede de apoio como valor útil para a amamentação.
RESULTADOS
Neste estudo, o valor desvelado foi o valor útil da amamentação, sendo um valor essencial à vida humana, apreendido pela experiência emocional das mulheres que amamentam e não somente por experiências racionais.16
Assim, o valor útil emerge a partir das carências e necessidades das lactantes no momento vivido no ato de amamentar no espaço prisional, sendo identificado e apresentado nas categorias, a seguir:
Primeira categoria: Apoio da unidade prisional como valor útil à amamentação
O espaço prisional materno-infantil é utilizado como um espaço útil para a saúde da mãe privada de liberdade e de seu bebê por oferecer apoio à amamentação no contexto prisional, o que foi demonstrado a seguir pelas participantes:
“Aqui, a criança é mais saudável, você tem mais tempo para criança; na rua, tem para onde correr, vai logo para mamadeira. Aqui é melhor para criança. Antes eu não ligava para amamentar, ninguém nunca parou para me explicar, estou com a mente mais no lugar, tenho muita vontade de amamentar”. M5
“Aqui tenho vontade de amamentar, nem na maternidade tive este estímulo. No hospital, só falaram para amamentar que é bom para criança, senão será dado leite artificial”. M3
Verificou-se que a unidade prisional estudada oferece apoio à saúde das mulheres e das crianças por possuir uma estrutura física diferenciada das outras prisões femininas, além de contar com profissionais e rede de apoio para o atendimento às mulheres e crianças que ficam nesse espaço. Nas falas das participantes, isso fica explícito:
“O lugar é bem estruturado, para outras mães, é o melhor lugar, muitas são viciadas em drogas, não tinham comida. Aqui têm assistência médica, serviço social. Sem essa estrutura, muitas crianças não estariam vivas, a mortalidade seria maior”. M4
“O pré-natal da prisão é bom, tem bom recurso, realizei USG, testes rápidos para sífilis, HIV, hepatite, realizei exame de urina e de sangue. O tratamento é diferenciado”. M1
A prisão é um ambiente desconhecido, que desperta medo e inseguranças nas puérperas, contudo, apesar das dificuldades encontradas nesse ambiente, as mulheres demonstraram que precisam se adaptar, buscando a proteção da permanência de seu bebê com ela. A unidade prisional oferta apoio institucionalizado e amamentar faz parte do cotidiano:
“Amamento toda hora, ela mama muito, já está com 6kg e pouco, antes ficava com medo, na rotina do confere o bebê começa a dormir, agora estou me acostumando”. M1
“Minha vida mudou completamente, tinha medo de ter outro filho, se eu tivesse este filho lá fora, já estaria em depressão. Depois que estou aqui dentro, perdi o medo da rejeição, aqui conheci bastante gente, bastante história, vi que ter outro filho e amamentar aqui não é tão difícil assim”. M5
O ambiente prisional em que estavam as lactantes com seus filhos desenvolve ações que protegem e apoiam o aleitamento materno em seu espaço, quando retira as possíveis barreiras existentes para ocorrer uma prática segura de amamentar na unidade. Tal fato pode ser constatado nas falas das participantes:
“Atualmente tudo difere, as guardas são maravilhosas, as mulheres não precisam passar o que passei, sofri violência na minha primeira gestação. Todas aqui estamos muito vulneráveis, a não ser quando se vai para rua”. M4
“Onde estamos tem recurso humanizado, mas é cadeia. Não é um bicho de sete cabeças, podemos fazer tudo sozinha, pior seria se não tivéssemos isto”. M6
Segunda categoria: Rede de apoio como valor útil para amamentação
As mulheres privadas de liberdade da unidade prisional estudada demonstram que necessitam do valor de utilidade, do apoio familiar, quando estão no cárcere, como mostram as seguintes falas:
“Não tem nenhum conforto, a família deveria ficar perto, o apoio da família é tudo” M1.
“Necessitamos da proteção familiar, a Justiça poderia controlar a gente na rua, a melhor coisa é estar perto da família. Estou pagando meu castigo, onde uma epidemia não pode ter visita, é complicado, a família não nos acompanha” M4.
Ao relatar o distanciamento dos familiares, as participantes da pesquisa referiram que sentem falta do apoio familiar, em especial, da sua própria mãe para acompanhá-las no momento da amamentação, como expressam os relatos a seguir:
“Quero minha mãe perto de mim, preciso dela para me ajudar, ela nunca me abandona”. M5
“Minha mãe falava para amamentar mesmo que estivesse com meus peitos machucados, ela faz muita falta… Amamentar é bom, é maneiro, mas preciso de ajuda, tenho medo de afogar e sufocar, eu precisei aprender tudo sozinha”. M3
O apoio dos familiares é muito importante para essas mulheres, posto que algumas relataram, em sua nova realidade no sistema prisional, o desejo de deixar o bebê com a família, no período da prisão, contando com o valor de utilidade dos familiares para ficarem com seus filhos.
“Só vou amamentar até os três meses, prefiro que leve para casa, minha cunhada pode cuidar. Ano que vem, estarei com eles (família) para passar as datas comemorativas”. M4
“Na audiência, se eu for sentenciada, eu vou me desligar do meu bebê, procurarei a assistente social para saber como faz para entregar o meu bebê para minha família, para minha mãe e meu marido”. M2
De fato, o apoio familiar às entrevistadas desta pesquisa fica dificultado, uma vez que os familiares só podem entrar na unidade prisional no horário de visitas e essa situação se agravou durante a pandemia, já que as visitas foram suspensas por um período de quase um ano. Dessa forma, as lactantes deste estudo, que viveram a pandemia no cárcere, buscaram apoio nas outras mulheres e/ou nos profissionais da unidade prisional, para amamentarem e se sentirem seguras. Isso é demonstrado nos discursos a seguir:
“Sinto falta da minha mãe, ela estaria me ajudando, mas temos o apoio das meninas e da médica orientando”. M2
“Uma mulher ajuda a outra, todas têm filhos lá fora, quero aprender tudo, amamentar faz bem, não deve negar o peito nunca”. M7
O apoio familiar é extremamente necessário na prática de amamentar, que é influenciada por hábitos e pela cultura vivenciados no contexto onde o indivíduo vive. Assim, a família e os amigos são importantes porque transmitem seus conhecimentos que contribuem para amamentação. Essa cultura da amamentação é ressaltada pelas lactantes que participaram da pesquisa.
“A família orienta a amamentar, todos falam que protege. Eu gosto, todos amamentaram em minha família”. M1.
“Minha família fala que faz bem, sei que faz bem, mas não sou obrigada a amamentar, eles me incentivam muito”. M3
“Toda minha família amamenta até os 9 meses. Quando ligo para minha família, eles perguntam: ‘Está dando o peito para criança?’” Eles adoram amamentar”. M7
DISCUSSÃO
A utilidade, como valor para o homem, vai ao encontro do preenchimento das carências vividas no cotidiano da vida26; o valor vital da amamentação perpassa a aquisição do apoio útil para se atingir a plenitude da ação de amamentar, produzindo o bem-estar da mulher e do bebê. Dessa forma, ao analisar os resultados do estudo, desvelou-se o valor útil para o sucesso da amamentação, a partir das ações de apoio aos processos de amamentar no espaço prisional.12
As ações de apoio, como valor útil para amamentação, contribuem para que a lactante enfrente os problemas do cotidiano em suas necessidades e especificidades e possa realizar a ação de amamentar como algo prazeroso.27 Assim, o apoio ofertado às mulheres no que tange à amamentação na unidade prisional estudada é relevante para as participantes e percebe-se que, se algumas não estivessem naquele espaço, talvez já tivessem introduzido alimentação complementar para a criança ou até mesmo já teria ocorrido o desmame.
O apoio da instituição prisional é fundamental para a adesão ao aleitamento materno, pois, assim, as mulheres conseguem amamentar por mais tempo, ficam menos estressadas ao amamentarem seus bebês e ampliam os vínculos com seus filhos durante o período do encarceramento.28 Nesse cenário, as participantes do estudo relataram que, no espaço materno-infantil, elas têm acesso ao serviço de pré-natal e expressaram que, em certa medida, esse atendimento é melhor na prisão do que fora. Contudo, considerando que, na rede pública de saúde brasileira, há dificuldade de acesso aos serviços de saúde relacionados ao atendimento a gestantes e lactantes,29 esse fato pode ter influenciado a resposta dessas mulheres. Além disso, o resultado do pré-natal no contexto prisional brasileiro apresenta baixos indicadores referentes à saúde materno e neonatal.30
Outro tema relevante em relação à amamentação é que o ambiente prisional não é adequado para permanência de crianças, contudo a separação do bebê de sua mãe pode ser traumatizante. Sendo assim, um desafio encontrado nos sistemas prisionais de diversos países é a existência do público infantil nesse espaço.4,28 Apesar desse conflito de manter ou não a criança com sua mãe, uma pesquisa relatou que, com relação às mulheres presas que amamentaram seus filhos na prisão, foi detectado um aumento do vínculo mãe-bebê e houve uma menor reincidência criminal dessas mulheres, além de os filhos destas, ao atingirem a idade pré-escolar, possuírem menos problemas psicológicos.4
Uma solução para que não houvesse criança sendo amamentada no sistema prisional seria que as mulheres recebessem medidas cautelares para amamentarem seus filhos em seus domicílios. 2,31 Cabe lembrar que, mesmo que o ambiente prisional em foco possua uma estrutura diferenciada das outras prisões para abrigarem lactentes com seus filhos, esse local ainda é parte do sistema carcerário e produz sofrimento na mulher, na família e nos profissionais, sendo, portanto, inadequado para satisfazer as necessidades da mulher e da criança, devido às negligências realizadas pelo Estado, para atender esse público em suas singularidades.2
Logo, para melhorar a assistência para o binômio mãe e filho, as instituições prisionais tentam apoiar a amamentação, fato observado nesse estudo quando as participantes relataram mudanças na estrutura física e no atendimento recebido pelos profissionais. Porém, ainda existem grandes lacunas a serem preenchidas, sendo necessário ampliar o incentivo ao aleitamento materno no espaço prisional conforme determinam as políticas de incentivo à amamentação, com ações de promoção dessa prática e de proteção para essas mulheres, que são as protagonistas da amamentação.3
Além disso, o ambiente estudado é um local que desperta o medo do desconhecido, porque nesse período, as lactantes se encontram emocionalmente descompensadas, por estarem em um ambiente prisional, separadas dos familiares, e pelo medo de se separarem de seus filhos.4 Assim, as participantes do presente estudo demonstram que sentem medo do cotidiano, da rotina da prisão, o que se dá porque vivem temerosas quanto ao que pode acontecer com elas e seus filhos. No entanto, apesar de esse desconforto existir, a amamentação na prisão pode servir como um fator de proteção para a saúde mental dessas mulheres no momento em que elas estão presas.3
As entrevistadas expressaram que a rede de apoio é essencial para o período vivido, logo essas mulheres avaliam e valoram a importância da família, demonstram suas carências e necessidades e que precisam da família para apoiá-las dentro da prisão. Dessa maneira, na percepção das participantes da pesquisa, a rede de apoio para amamentação é um valor útil. Para Max Scheler, o valor útil é um valor bom e agradável aos sentidos.23
No entanto, esse apoio familiar não existe na unidade prisional estudada, uma vez que, nesse local, os familiares só realizam visita nos dias e horários estipulados pela instituição, mas não têm autorização de acompanhar a lactante em sua rotina da prática de amamentar. Como já explicitado, a ausência dos familiares se agravou mais no período da pandemia, devido à suspensão das visitas. A falta de apoio dos familiares no período gravídico-puerperal não só acontece nas prisões brasileiras, mas também naquelas localizadas em países desenvolvidos como Estados Unidos4, Canadá3, Reino Unido28, o que também foi relatado em estudos do continente africano, em Malawi e Moçambique.5,32
Dessa forma, a gestão de espaços prisionais dos diversos países precisa entender que o suporte familiar é fundamental no período gestacional, no parto e no período da amamentação. Esse suporte apoiará a mulher em suas singularidades, além de levar segurança para quem está sendo cuidado, considerado, portanto, um fator de extrema importância para a continuidade do aleitamento materno.33
Entre os familiares mais citados como apoio pelas participantes da pesquisa estão as mães e avós maternas da criança, sendo o suporte de que as lactantes privadas de liberdade sentem mais falta na hora de amamentar. Sendo assim, o apoio da mãe (avó) é considerado um valor útil, isso porque beneficia e prolonga o ato de amamentar no cárcere. Algumas participantes demonstraram confiança e apoio da família até quando falam da separação dos seus filhos. Nesse momento, esse apoio é considerado um valor bom, pois completará a necessidade da mulher e de seu filho.
Ademais, as lactantes demonstraram, neste estudo, que a tradição familiar de amamentar é um fator que interfere na decisão da mulher. Assim, a amamentação é uma prática que possui valores transmitidos e reproduzidos culturalmente, podendo agregar novos valores, conforme o vivido de cada lactante. A decisão de amamentar ou não está imbricada diretamente a valores e crenças que interferem positiva ou negativamente na prática do aleitamento materno.16
Para Scheler, a cultura envolve costumes, características e produções próprios de um povo, logo a cultura agrega valores23 para os participantes de uma comunidade. Nesse contexto, a amamentação é considerada um processo histórico, que possui tradições e normas, interligadas a crenças, culturas e valores que passam da família para o indivíduo, logo o conhecimento familiar é fundamental para ações de apoio, promoção e incentivo ao aleitamento materno.34,35
Portanto, para o fortalecimento da amamentação em qualquer espaço em que a lactante esteja, deve ser autorizada a permanência de um familiar para acompanhá-la no período gravídico-puerperal, sendo esse um direito já garantido no Brasil. Porém, neste estudo, observa-se que as participantes não desfrutam desse direito garantido pela Política Nacional de Promoção, Proteção e Apoio ao Aleitamento Materno, que considera a amamentação um bem coletivo e que seus beneficiários não podem sofrer nenhum tipo de discriminação. Sendo assim, mulheres e crianças desfavorecidas devem ser atendidas em suas necessidades específicas, visando garantir o princípio da equidade.35
Outro valor útil apresentado pelas participantes foram as companheiras privadas de liberdade que também amamentavam no espaço prisional, principalmente durante o período da pandemia de covid-19. Lembrando, que nesse período, as visitas estavam suspensas. Dessa forma, o apoio das outras mulheres era muito relevante para a prática de amamentar, pois muitas lactantes, no momento da amamentação, ao observarem outros grupos de mães amamentando, fortaleciam-se, sendo esse um fator positivo para aumentar a adesão a essa prática e sua continuidade.33
As mães que amamentam na instituição prisional materno-infantil se apoiam mutuamente ao amamentarem no sistema prisional, vivenciando situações muito semelhantes. Contudo, faz-se necessário avaliar constantemente esse apoio das “companheiras” para identificar se existe alguma informação que leve ao desmame precoce, uma vez que as opiniões incorretas sobre amamentação podem influenciar negativamente nessa prática.35
Outro valor subjetivo que preenche a carência da mulher, sendo um valor útil na percepção das lactantes privadas de liberdade, é o apoio que os profissionais de saúde da prisão materno-infantil oferecem a esse público, ao dar segurança para essas mulheres ao amamentarem seus bebês. Tal fato é importante para a continuidade da amamentação nesse ambiente.28,36
Entretanto, com base nos relatos das participantes, observa-se que as orientações oferecidas às lactantes privadas de liberdade pelos profissionais de saúde são individualizadas e pontuais. Sendo assim, faz-se necessário que os profissionais de saúde estimulem a amamentação na instituição prisional programadamente, com ações em educação em saúde individuais e coletivas que promovam o incentivo ao aleitamento materno. As instituições em questão devem assegurar que a mulher receba ações de apoio no espaço prisional, onde deverá existir uma equipe transdisciplinar composta de profissionais de saúde preparados e atualizados, cientificamente, quanto à temática para poder suprir as necessidades de lactantes privadas de liberdade, bebês e familiares destes, além de ampliar o conhecimento em toda a instituição penal.35,36
A rede de apoio composta de família, amigos, companheiras privadas de liberdade e profissionais de saúde é importante porque a prática de amamentar está conectada a crenças, valores e mitos e, com essa rede de apoio, a mulher se sente mais empoderada para tomada de decisões positivas em relação à amamentação.35,36
Destaca-se que este estudo está ancorado na axiologia de valores de Max Scheler e traz algumas reflexões e inferências para dar sentido axiológico às carências como necessidades das mulheres que amamentam no espaço prisional. Tais reflexões podem contribuir para redirecionar a prática assistencial na área do aleitamento materno, produzindo cuidado útil.
LIMITAÇÕES DO ESTUDO
Como limitação deste estudo, pode-se citar o fato de haver sido realizado durante a pandemia de covid-19. Nesse período, as pesquisas no campo foram suspensas e, após liberação, a pesquisadora tinha que estar devidamente paramentada (gorro, capote, máscara, face shield). Outras limitações encontradas se prendem à proibição de gravação das entrevistas e a certa preocupação com que os pesquisadores da saúde são tratados pelos profissionais da unidade prisional.
CONCLUSÃO
Logo, ao desvelar as necessidades do valor útil para lactantes, no ambiente prisional, a partir da dimensão axiológica de Max Scheler, este estudo propõe que sejam implementados protocolos e políticas públicas específicas para a prática de amamentar no sistema prisional, as quais devem ser baseadas em evidências científicas e nos princípios do Sistema Único de Saúde de forma integral, universal e com equidade para o binômio mãe e bebê.
Assim, cabe ao Estado ofertar condições que atendam às demandas e às necessidades específicas das gestantes e puérperas privadas de liberdade, principalmente com ações que fomentem a amamentação dentro desse ambiente. Entende-se que, ao ofertar ações de apoio, promoção e proteção ao aleitamento materno, as instituições prisionais não dão privilégios ao binômio mãe e filho no cárcere, mas sim legitimam o direito dos cidadãos.
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