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0109/2024 - O que uma UBS pode oferecer às pessoas LGBTI+?
What a Basic Health Unit can offer to LGBTI+ people?

Autor:

• Richard Miskolci - Miskolci, R. - <richard.miskolci@unifesp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6405-5591

Coautor(es):

• Fernando Sanches de Oliveira - Oliveira, F. S. - <fernando.sanches@unifesp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6232-9387

• Flavia do Bonsucesso Teixeira - Teixeira, F. B. - <flavia.teixeira@ufu.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5605-636X

• Keila Deslandes - Deslandes, K. - <keiladeslandes@icloud.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3904-214X

• Pedro Paulo Gomes Pereira - Pereira, P. P. G. - <pedro.paulo@unifesp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0298-2138)



Resumo:

A partir da análise de entrevistas feitas com profissionais de saúde que atuam na atenção básica na cidade de São Paulo, este artigo busca identificar: 1.Como descrevem pessoas LGBTI+ e suas demandas de saúde; 2. Como avaliam sua formação para lidar com esse segmento; 3. Quais os principais obstáculos para atendê-lo e 4. Como descrevem o atendimento provido. Por meio de uma análise foucaultiana do discurso e fontes da sociologia da medicina reconheceu-se a preponderância do olhar anatomopatológico no reconhecimento do segmento LGBTI+, a avaliação negativa da formação para lidar com essa população, assim como a persistência de obstáculos ao atendimento dessas pessoas que ainda é avaliado como deficiente. Conclui-se que a hegemonia do modelo biomédico e do imperativo do aprendizado prático criam obstáculos ao provimento de atendimento integral à população LGBTI+.

Palavras-chave:

saúde LGBTI+; profissionais de saúde; modelo biomédico; olhar anatomopatológico; atenção básica

Abstract:

Based on interviews with health professionals that work in primary healthcare in the city of São Paulo (Brazil), this paper identifies: 1. How the professionals describe LGBTI+ people and their health demands; 2. How they evaluate their education to deal with this segment; 3. Which are the main obstacles to provide services to them and 4. How they describe the healthcare provided to LGBTI+ people. Through Foucauldian discourse analysis and sources of sociology of medicine the research identified the preponderance of the anatomopathological gaze in the recognition of the LGBTI+ segment, a negative evaluation of previous education to deal with this population, the persistence of obstacles to provide healthcare to this segment, and the perception that service provided for these people is still deficient. The conclusion is that the hegemony of the biomedical model and the imperative of practical training create obstacles to provide comprehensive healthcare to the LGBTI+ population.

Keywords:

LGBTI+ health; health professionals; biomedical model; anatomopathological gaze; primary healthcare

Conteúdo:

Desde o início deste século, em diferentes partes do Brasil, pesquisas de caráter qualitativo buscaram compreender como são atendidos os usuários Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Pessoas Trans, Intersexo e outras (LGBTI+) no sistema de saúde público1,2,3,4,5. Na esteira desses estudos, neste artigo, buscamos interrogar os discursos de profissionais de saúde da cidade de São Paulo sobre o acesso dessa população à atenção básica. O que o diferencia dos anteriores é seu escopo, dado que buscou estudar o tema na maior cidade do país, a recepção a todo o segmento LGBTI+ (vários das investigações anteriores focavam em um ou outro componente dessa população) e, também, por ter interpelado diferentes profissionais que atuam na atenção básica.
As questões que envolvem a saúde da população LGBTI+ são múltiplas e, ainda que tenham originado fortuna crítica desde ao menos a epidemia de HIV/AIDS no final do século passado, há pouco mais de uma década tiveram reconhecidas sua diversidade interna e os desafios da integralidade de sua saúde6, como atesta a aprovação da PNSILGBT (Política Nacional de Saúde Integral LGBT), a qual por si só não garante sua implementação, como bem explicam Ferreira e Nascimento7 ao enfatizarem que uma política pública só se materializa e é executada quando encontra condições propícias na pactuação dos poderes envolvidos assim como na oferta de recursos que a viabilizem.
As demandas de saúde da população LGBTI+ agregam-se às de qualquer outro segmento que envolve pessoas com histórico de discriminação8, maior exposição à violência9,10 e acesso menor e desigual a políticas públicas11, inclusive as de saúde12,13. Como pretendemos expor mais adiante, suas necessidades ampliam o espectro conhecido no sistema de saúde demandando integralidade para que possam ser atendidas.
O que uma UBS tem a oferecer para a saúde da população LGBTI+? A resposta a esta questão envolverá primeiro descrevermos como a pesquisa foi desenvolvida e as entrevistas analisadas para, em seguida, apresentarmos os principais achados e discuti-los em detalhes. Os discursos dos profissionais de saúde indicam uma incorporação tardia, parcial e ainda incipiente desse segmento na atenção básica paulistana. A partir de fontes como a análise foucaultiana da clínica e da sociologia da medicina buscaremos expor como os discursos de profissionais de saúde revelam o poder e a continuidade da visão e da prática clínicas na manutenção de uma perspectiva anatomopatológica em relação ao segmento LGBTI+.

Metodologia

O estudo é qualitativo e desenvolvido na linha das Ciências Sociais e Humanas em Saúde. O foco da pesquisa na atenção básica se deu por seu caráter central como entrada no sistema. A rede do Sistema Único de Saúde (SUS) possui três níveis de atenção à saúde, Primária, Secundária e Terciária. As Unidades Básicas de Saúde (UBS) integram a rede de cuidados da atenção básica, oferecendo estratégias e serviços para prevenção e promoção à saúde para a comunidade. Nestas unidades, é possível realizar consultas e exames de rotina, contando com equipes multidisciplinares e especializadas em saúde da família. O objetivo é garantir atenção integral à saúde para todos no seu território de abrangência. Quando necessário, a UBS encaminha os usuários para outros níveis de atenção.
A pesquisa foi aprovada pelos comitês de ética em pesquisa da UNIFESP e da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (Processo 92186618.8.3001.0086). A principal forma de coleta de dados foram as entrevistas em profundidade. Inicialmente, o responsável pela pesquisa entrevistou um funcionário de cada uma das sedes das seis regionais de saúde paulistanas. Todos designados pela regional e que lidavam com temas mais ou menos relacionados à população LGBTI+, ainda que não fossem considerados especialistas. Em uma segunda etapa, seis UBSs foram sorteadas, uma em cada regional, na qual seriam entrevistados quatro profissionais diferentes: médicos, enfermeiros, técnicos ou auxiliares e gerentes. Nessa segunda etapa, a gerência de cada unidade escolheu os funcionários a serem entrevistados independentemente da familiaridade ou domínio do tema. Buscou-se, assim, evitar um bias, de maneira a conhecer os discursos de profissionais comuns que, no seu cotidiano de trabalho, poderiam ter se deparado com demandas de saúde do segmento LGBTI+.
O responsável pela pesquisa foi às UBSs no horário combinado com a gerência de cada uma e entrevistou os profissionais também designados por ela. A escolha dos médicos, enfermeiros e técnicos/auxiliares de enfermagem teve como critérios que não fossem especialistas em questões LGBTI+ e tivessem disposição de responder à entrevista, ao que se somaram as necessidades do cotidiano de cada unidade no que se refere ao dia e pessoas disponíveis naquele horário. Quase todas as entrevistas foram feitas na sala do/a gerente ou, quando ocupada, em alguma outra disponível no momento.
Das 30 entrevistas planejadas, apenas 29 foram realizadas e uma delas – com técnico/auxiliar – teve seu arquivo de som corrompido, razão pela qual analisarmos aqui 28 entrevistas. Em termos de atuação profissional, 6 especialistas (de formação variada, predominando medicina) nas sedes das regionais e, nas UBSs, 6 gerentes (de graduação variada, de Administração de Empresas passando por Serviço Social e até Educação Física), 7 enfermeiros, 6 médicos e 3 técnicas de enfermagem.
As entrevistas transcorreram com claro interesse dos participantes em expor seus conhecimentos e reflexões sobre o tema de investigação. Com o consentimento deles/as, as entrevistas – que duraram, em média, de meia a uma hora – foram gravadas e transcritas para análise. As entrevistas, com roteiro semiestruturado, tinham duas partes: a primeira buscava levantar informações sociodemográficas, incluindo idade, gênero, educação, experiência profissional, religião, estado civil, raça, propriedade de bens e orientação sexual/identificação de gênero, e a segunda questões sobre saúde LGBTI+ como o acesso do segmento à atenção básica, a formação prévia ou continuada para lidar com as singularidades dessa população, o estado do sistema para seu atendimento segundo a perspectiva dos entrevistados, o que consideravam que devia ser aprimorado. As perguntas eram tomadas como ponto de partida e os entrevistados foram deixados à vontade para responder e se aprofundar em temas que consideravam mais importantes. Todos os nomes de participantes foram trocados para evitar sua identificação.
A análise do material para este artigo foi empreendida a partir de um recorte de seu conteúdo focado em quatro eixos de análise:

1 Como os/as profissionais descrevem os sujeitos LGBTI+ e suas demandas de saúde;
2 Como descrevem sua formação prévia e continuada para lidar com a saúde LGBTI+;
3 Principais obstáculos apontados para atender às demandas de saúde do segmento LGBTI+;
4 Como os profissionais de saúde descrevem o atendimento dessa população na atenção básica;

As entrevistas, anonimizadas e transcritas, foram lidas para identificar os trechos em que os profissionais abordavam os quatro eixos escolhidos como objeto de análise. Muitas vezes, eles/as o faziam fora da ordem do roteiro semiestruturado de perguntas, em meio a reflexões que desenvolviam durante o diálogo com o pesquisador. Assim, foi necessário um trabalho de leitura focalizada visando à sua coleta para uma análise de inspiração foucaultiana. Uma análise foucaultiana do discurso demanda trabalhar com as falas dos entrevistados como mais do que textos. Os discursos são práticas que criam os objetos aos quais se referem14, portanto, as entrevistas não apenas descrevem, mas também participam de uma rede intricada de práticas que materializam uma realidade, no caso, as condições de acesso da população LGBTI+ à atenção básica.
A pesquisa buscou valorizar a perspectiva dos diferentes profissionais de saúde que trabalham na atenção básica, considerando que suas visões sobre saúde LGBTI+ não são mera opinião. Profissionais de saúde que trabalham na entrada no SUS falam com conhecimento e experiência, portanto, seus discursos podem colaborar para desenvolver o conhecimento sobre seu campo de atuação. O material coletado foi analisado em diálogo com a sociologia da medicina e em uma perspectiva da análise foucaultiana do discurso pela ênfase do pensador francês nos discursos como fonte para compreender relações de poder onde elas, muitas vezes, são menos visíveis. A seguir, apresentamos os principais achados da pesquisa nos quatro eixos selecionados.

Resultados e análise

A grande maioria dos profissionais entrevistados era de mulheres (86,21%), autodeclaradas brancas (68,97%), cristãs (62,07%), casadas (62,7%) ou separadas (20,69%) e mães, sendo que a metade delas tinha ao menos um filho. Todos os entrevistados tinham mais de 30 anos, sendo a mais velha de 72 anos e a idade média de cerca de 45 anos. A maioria tinha casa própria (86%). De forma geral, é possível afirmar que as entrevistadas foram mulheres brancas, adultas e de meia-idade, de classe média e com nível educacional alto em relação à média nacional, já que, dos quatro tipos profissionais interpelados, três têm nível superior (gerentes, médicos e enfermeiros) e apenas técnicas e auxiliares de enfermagem têm nível secundário. Também vale mencionar que 72% se graduaram depois de 2000 (41% em enfermagem e 30% em medicina) e 75% trabalham apenas na UBS em que foram entrevistados/as, logo, são profissionais predominante formados já neste século e em dedicação exclusiva à atenção básica.
Voltemo-nos aos quatro eixos de análise das entrevistas.

1 Como os/as profissionais descrevem os sujeitos LGBTI+ e suas demandas de saúde

Ao descreverem como reconhecem os pacientes LGBTI+ e suas demandas de saúde, os profissionais foram unânimes em afirmar que os consideram iguais a todos os outros. Outras pesquisas trouxeram achados com respostas similares e chamam a atenção para a necessidade de que a equidade não seja ofuscada pelo discurso da igualdade, que parece atuar produzindo o apagamento da diferença15,16. Assim como já observado em pesquisas feitas em outras cidades brasileiras, predomina uma disposição a afirmar o respeito e a aceitação das pessoas. Trata-se de algo importante, mas que mantém intocado o desafio de conhecer as especificidades e prover cuidado.
Antes de seguir, esclarecemos que buscamos usar os termos sujeitos e pessoas para enfatizar a agência e diversidade na população LGBTI+. O termo usuário é usado quando nos referimos a eles no sistema. Usamos paciente quando é a fala do profissional que aparece. O objetivo é deixar claro onde cada um se posiciona – autores e profissionais – no lugar do cuidado.
Os entrevistados descreveram as demandas de saúde como as apresentadas pelo segmento trans, como hormonioterapia e, em muito menor número, as demandas por testes de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) que também se associam a homens gays. A despeito de afirmarem tratar pacientes LGBTI+ como todos os outros, sem distinção, não houve menções a outras demandas ou procedimentos neles que corroborassem essa afirmação. Muitas vezes, esse segmento era apresentado como ausente devido ao preconceito em suas regiões de moradia, o que os impeliria a buscar atendimento em outro bairro ou no centro de São Paulo, considerado referência para essa população. Como observou Iara, médica de 62 anos, branca, formada em uma faculdade particular em 1983, casada e mãe de um filho: “Às vezes eles vão para outras unidades ao invés de vir para cá. Ou então, algumas vezes, eles nem comentam, nem falam, não vêm por esse lado”.
Salta aos olhos como, em geral, quase todas as respostas às perguntas sobre saúde LGBTI+ a associavam apenas às pessoas trans e travestis. Se o pesquisador não tivesse pedido informações sobre lésbicas, gays, pessoas intersexo e bissexuais, eles tenderiam a ter apenas uma ou outra menção no conjunto das entrevistas. A invisibilidade lésbica, mas também de gays, bissexuais e pessoas intersexo nas falas dos profissionais faz pensar tanto quanto a hipervisibilidade trans/travesti em suas respostas. Uma das principais razões para que isso ocorra se encontra na própria história da área de saúde, em que o olhar anatomopatológico17 foi central na criação de um regime de visibilidade que molda a inclusão ou exclusão de segmentos sociais na medicina científica, na clínica e, como prova esta pesquisa, também nos sistemas de saúde.
Segundo as entrevistas, as pessoas trans e travestis são reconhecidas visualmente pelos profissionais enquanto lésbicas, gays, bissexuais e pessoas intersexo não. O olhar treinado para identificar expressões de gênero supostamente incomuns se encontra com o formado na área de saúde para identificação da patologia de maneira que esse segmento da população LGBTI+ se apresentou, nas entrevistas, como o principal referente dos profissionais. O reconhecimento das demandas trans também se deve ao movimento político em favor desse segmento, o qual é mencionado por uma profissional especializada que atua em uma das sedes de regional. Elaine, 42 anos, branca, sem religião, psicóloga, casada e mãe de um filho identifica que isso tenha ocorrido por volta de meados da década de 2010:
Em 2015, a gente tinha algumas políticas dos direitos humanos bastante amplas, que começava a olhar, por exemplo, para as travestis e para as mulheres trans e travestis e para os homens transexuais, que recebiam uma bolsa através de um programa chamado “Transcidadania” [...] Dentro desse projeto [...] também tinha uma demanda específica para a saúde, que era se aproximar dessa população e ofertar a hormonioterapia, que era uma demanda antiga das meninas e que a gente não tinha no município de São Paulo.
O reconhecimento do segmento trans pelos serviços talvez tenha sido o que primeiro trouxe uma oferta de cuidados afim entre a demanda de um segmento do movimento social LGBTI+ e o sistema de saúde, devido à histórica tendência da área de saúde de focar no que compreende como tratável. No limite, tratável é o que pode ser compreendido como patologia, o que (no caso em tela) se apresenta em uma anatomia ou gênero identificável visualmente e encontra resposta do sistema de saúde em serviços como hormonioterapia e cirurgias. Não por acaso, foi frequente a menção à existência desses serviços e, fora os testes para ISTs, nada mais era evocado no que se refere às demandas de saúde específicas de outros componentes da população LGBTI+.
No que diz respeito ao acesso dessa população aos serviços, foi frequente a menção (favorável) ao direito de uso do nome social pelas pessoas trans e travestis. Nome social é o nome autoatribuído por alguém e que costuma ser do gênero com o qual a pessoa se identifica, não o atribuído ao nascer. Houve relatos de dificuldades de implementar esse direito tanto no trato cotidiano com usuários quanto no uso do nome social no sistema computadorizado, o que causava “inconsistências” que atrapalhavam a realização de exames e outros procedimentos. No ano de encerramento da coleta de dados para a pesquisa, 2020, criou-se um protocolo para o uso do nome social, o que talvez tenha resolvido esses problemas.
Na perspectiva de especialistas da área de gênero e sexualidade, o fato de que a incorporação do nome social e a criação de um protocolo tenha demorado tanto faz refletir sobre a lentidão do sistema de saúde na implementação da PNSILGBT. A literatura produzida analisando os mais de dez anos da publicação da Política possui como elemento comum o reconhecimento da morosidade de sua implementação, bem como a focalização dos desafios na questão do nome social e na denúncia da precariedade dos serviços de saúde18,19.

2 Como descrevem sua formação prévia e continuada para lidar com a saúde LGBTI+

No que tange à formação, os profissionais apresentaram críticas quase unânimes à ausência de conteúdos sobre gênero e sexualidade em sua graduação ou curso técnico. Entre as sete enfermeiras entrevistadas, apenas uma afirmou ter tido algum conteúdo relacionado, na disciplina de bioética, enquanto outra, formada em uma faculdade privada, vaticinou: “nenhuma”. Cláudia, 34 anos, branca, espírita, casada e sem filhos, formada em uma reconhecida universidade pública paulista, afirmou: “Muito raro... pelo que eu me lembre foram poucas abordagens em relação a isso”.
O quadro não foi diferente entre os médicos, inclusive de diferentes gerações. Maria, de 60 anos, branca, católica, formada em uma universidade privada em 1985, afirma: “Na faculdade não teve nenhuma orientação com relação a isso. Eu avalio que isso deveria ser abordado dentro das universidades, para que os colegas que saíssem já tivessem um olhar menos preconceituoso”. João, 43 anos, branco, espírita, formado em universidade pública no início desse século, pai de dois filhos e que se autoidentificou como homossexual, corrobora a falta de conteúdos sobre gênero e sexualidade: “A minha faculdade não me deu essa formação. A minha vida me deu essa formação”.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de graduação da área de saúde no Brasil são estabelecidas pelo Ministério da Educação (MEC). Essas DCNs visam garantir a formação de profissionais qualificados e aptos a atender às necessidades da população, considerando as demandas do SUS e as mudanças no perfil epidemiológico da população brasileira20. Ainda segundo essas diretrizes, cada curso de graduação tem suas próprias especificidades, como as competências e habilidades esperadas dos profissionais formados. Desse modo, a decisão de incluir disciplinas, práticas ou atividades curriculares que abrangem a formação para atendimento à população LGBTI+ fica a critério de cada curso de graduação e faculdade, podendo ou não, assim, serem oferecidas.
A constatação da ausência das temáticas necessárias para a formação de profissionais aptos à inclusão da população LGBTI+ no sistema de saúde veio associada à sugestão, principalmente por parte de gerentes, de que o fossem por meio de estratégias de sensibilização enquanto os profissionais que atuam com a população sugeririam que a formação fosse prática.
Ester, 37 anos, branca, católica, formada em enfermagem em uma universidade pública em 2004, casada e mãe de um filho, afirma:
Eu acho que na graduação tinha que ter a sensibilização para essas demandas, até para você ser sensível, porque hoje você tem várias áreas de atuação. Você só vai para onde você conhece. Se você não tem a experiência de vivenciar algo, de conhecer algo, você nem sabe que aquilo existe, então eu acho que na graduação já tem que ter a sensibilização, o contato, e depois se aprofundar em uma especialização.
Por sua vez, temos Natalia, técnica de enfermagem, natural de São Paulo/SP, 58 anos, branca, espírita, formada por uma escola pública em 2012, divorciada, com 2 filhos, possui casa própria, que diz sobre o aprender na prática:
No Serviço de Atendimento Especializado em IST e HIV/AIDS, a gente tinha contato direto com eles... Era bem legal, porque eles são bem abertos para a gente perguntar. Se a gente tinha alguma dúvida sobre sexualidade, eles falavam “pode perguntar”. Então eu aprendi bastante coisa com eles.
Outros profissionais mencionaram que os temas de saúde LGBTI+ deveriam fazer parte da formação prática, o que evoca achados de clássicos da sociologia da medicina. Nos livros Boys in White (1961), de Howard Becker et al.21, e Profession of Medicine (1970), de Eliot Freidson22, os autores identificaram – a partir do contexto norte-americano – como a formação médica impõe uma valorização da prática em detrimento do que é classificado como “teórico”. Trata-se de um traço cultural da formação médica – e quiçá também de outras áreas de saúde – que hierarquiza as formas de aprendizado em favor da clínica, relegando os conteúdos teóricos ao sem interesse ou acessório na formação. Na melhor das hipóteses, o que não é considerado prático pode ser especialidade da medicina científica, uma área considerada como hermética e/ou inalcançável.

3 Principais obstáculos apontados para atender as demandas de saúde do segmento LGBTI+

Além da mencionada falta de formação adequada para o atendimento dessa população, os entrevistados enumeraram outros obstáculos, entre os quais se destaca a percepção generalizada de um contexto permeado por preconceitos e possível discriminação na região em que moram as pessoas e que se estende à própria unidade de saúde a que podem se dirigir em busca de atendimento.
O já citado médico João descreve a chegada de uma pessoa LGBTI+ na UBS:
A grande dificuldade é que a chegada desse usuário gera murmúrio dentro da unidade, envolvendo agente comunitário, agente administrativo, auxiliar de enfermagem. Quando chega um prontuário ou avisam que um paciente é trans ou qualquer LGBT, aí já vem todo o estereótipo desse paciente... A primeira pessoa com quem ele entra em contato é a que preenche a ficha, que tem formação de nível médio.
A descrição sustenta que a entrada na UBS começa a partir do contato com profissionais de nível médio e que não tiveram formação ou treinamento adequados para lidar com esse perfil de usuário do sistema de saúde. O entorno desafiador da vizinhança e de possíveis rostos conhecidos na unidade de saúde se soma a essa trajetória até chegar à consulta com o médico.
A formação incipiente costuma ser contrabalanceada por iniciativas de orientação por parte da gerência. Vários foram os casos relatados por gerentes, em diferentes regiões da São Paulo, de buscarem auxiliar técnicos/as de enfermagem e outros funcionários na compreensão de questões básicas como o nome social. Wendy, gerente de UBS de 45 anos, parda, católica, formada em enfermagem em 1999, casada e com dois filhos, relatou:
Uma vez eu peguei uma funcionária em um outro serviço que estava lá, “posso falar com você?”, “Estou com uma pessoa lá, é um homem e está dizendo que o nome dele é Patrícia”. Eu sentei ela e falei: “o que você falou para ele?”, “pedi para ele esperar só um minutinho”. Ela fez certinho. Eu falei, “o nome é Patrícia, lá tem um campo no SIGA, no sistema, que tem ‘nome social’, você vai colocar isso mesmo, não faça cara de espanto, é assim, é um direito”. Aí acabou.
Mesmo aqueles que tinham mais informação sentiam falta de protocolos e mais formação. Bianca, uma enfermeira de 31 anos, formada em uma universidade particular em 2010, branca, espírita, casada e sem filhos observou:
Até essa questão de falar do gênero, como se o vocabulário nosso fosse um pouco empobrecido, mas a gente pergunta “como eu te chamo?”, “como que eu faço?”. Algumas abordagens específicas eu não tenho conhecimento de protocolo. [...] Às vezes, surge uma dúvida. As siglas, para mim, ainda são um pouco confusas, são extensas. Talvez, a abordagem também. Tem que ter um pouco mais de cuidado.
Há reconhecimento de que pessoas LGBTI+ costumam ter trajetórias marcadas pela discriminação e o intuito de evitar reproduzir isso na UBS, mas as intenções de acolhimento esbarravam na formação incipiente desses profissionais assim como na ausência de protocolos. Além disso, nenhum entrevistado se questionou se aquilo que o sistema de saúde tinha a oferecer era o suficiente para as especificidades da população LGBTI+. Em parte, porque tendiam a resumi-la ao segmento trans e suas demandas, como a de hormonização, ou – quando muito – às de exames de ISTs, em relação aos quais mencionavam os homens gays. Mas também porque foram formados e trabalham em um contexto moldado pelo modelo biomédico, centrado na patologia, em que a integralidade do atendimento se mantém não apenas distante, mas até mesmo difícil de se vislumbrar.

4 Como os profissionais de saúde descrevem o atendimento dessa população na atenção básica

A grande maioria desenvolveu considerações de que o atendimento não é adequado e precisa ser aprimorado. Além do restrito número de serviços elencados como disponíveis à população LGBTI+, os entrevistados voltaram a insistir no preconceito como principal barreira ao acesso à atenção básica.
Alguns gerentes, médicos e enfermeiros afirmaram que funcionários mais velhos e religiosos seriam um dos entraves ao acolhimento. Nessa linha, Cláudia, 34 anos, branca, espírita, casada, sem filhos, formada em enfermagem em uma universidade pública em 2011, considera que os/as funcionários/as que primeiro têm contato com a pessoa têm menor nível educacional e, ao menos na unidade em que trabalha, eram também mais velhos/as, religiosos/as:
Então a pessoa não consegue mudar isso, porque a religião a faz pensar dessa forma e as pessoas mais velhas também. A gente vê que as pessoas mais novas têm uma propensão a lidar de uma forma diferente. As pessoas mais velhas, envolvendo a religião junto, a gente vê que é um pouco mais complicado [...]. Na recepção, aqui na nossa UBS, são as pessoas mais velhas. É a porta de entrada, para onde eles vão ser abordados. De nível de formação técnica. Mas o primeiro contato de toda UBS sempre é a recepção.
Das três técnicas de enfermagem entrevistadas, duas eram evangélicas e jovens em relação ao conjunto de entrevistados. Elas revelaram ter menor preparo para lidar com pacientes LGBTI+ do que as outras categorias profissionais da área de saúde. Olga, 33 anos, parda, evangélica, casada e sem filhos, declarou não ter ideia do que poderia ser melhorado no atendimento enquanto Paula, 38 anos, branca, evangélica, solteira, considera que a recepção deveria ser melhorada. Sua reflexão permite reconhecer a falta de treinamento de sua categoria para exercer seu trabalho: “Uma orientação, porque a gente não sabe como lidar. Não por preconceito, mas pela falta de informação”.
Natália, técnica de 58 anos, branca, espírita, mãe de dois filhos, tinha experiência em uma unidade de atendimento especializado e afirmava lidar sem problemas com o segmento LGBTI+. Reconhecia que não teve formação específica para lidar com ele, mas considerava que o componente de ética no seu curso foi de grande valia para a sua atuação cotidiana. Natália também avalia que o atendimento da população LGBTI+ ainda não é adequado e conta ter tido dificuldades que conseguiu resolver com a ajuda de uma enfermeira, como a dúvida sobre onde aplicar medicação em usuárias com silicone em diversas partes do corpo.
Ainda que não tenham sido entrevistadas pessoas que trabalham como agentes de saúde, segurança, porteiro e recepcionista, é possível concluir sobre a falta de informação e de preparo. Como afirma Paula, técnicas de nível médio têm menor acesso à informação. Assim, ao contrário de avaliações como as de alguns de nossos informantes que atribuem os limites ao atendimento a pessoas mais velhas e religiosas, é mais acurado reconhecer que possíveis falhas no acolhimento sejam causadas por formação insuficiente e/ou falta de treinamento adequado.
Dos que atuam em UBSs, os gerentes foram os que mais se estenderam na descrição e avaliação dos serviços oferecidos à população LGBTI+. De forma geral, reconhecem deficiências e pontos a melhorar. Entre os médicos, repetiram-se propostas de melhoria na formação, mas também apareceram outras. Karla, médica de 34 anos, formada no exterior, negra, católica, homossexual em união estável e com um filho, sublinhou a necessidade de uma pré-avaliação para que os funcionários tivessem mais informações sobre o histórico de vida e saúde dos pacientes. Sua sugestão faz pensar sobre a ausência das questões sexuais e de gênero nas anamneses médicas, o que empobrece o atendimento e mantém o pressuposto de que todos são heterossexuais (ou que mesmo não sendo, tal dado não seria relevante).
Entre os especialistas nas sedes das regionais, esse tópico era mais familiar e eles/as tinham maior conhecimento do sistema, o que transparece na fala de Camila:
Eu acho que falta desde o acolhimento, faltam protocolos de assistência dessa população. Eu vi que a coleta de Papanicolau nas mulheres homossexuais é menor do que nas mulheres hétero. A gente também não tem dados estatísticos para estudar essa população. Eu acho que a gente tem que caminhar ainda muito com educação, com melhora de prontuário, com protocolo de assistência e com estatística dessa população para a gente entender quais são os principais problemas de saúde que estão acontecendo, onde a gente pode melhorar.
Uma das enfermeiras, Amanda, 50 anos, formada em uma faculdade particular em 1991, branca, católica, casada e com dois filhos, se recorda do desafio da integralidade: “Eu acho que teria que ter vários grupos onde as pessoas pudessem ser atendidas no sentido de tudo... Eu acho que melhoraria a integralidade”. Algo nesse sentido foi o que a pesquisa encontrou em apenas uma das 24 UBSs visitadas in loco durante a pesquisa. Nessa unidade, criou-se um grupo para melhorar o acolhimento de pacientes LGBTI+. Daniela, enfermeira de 33 anos, formada em uma faculdade particular em 2017, parda, espírita, divorciada e sem filhos, é uma das participantes desse grupo na UBS e considera que esta iniciativa poderia se estender a todo sistema.

Notas finais

O que uma UBS pode oferecer a usuários LGBTI+? Uma resposta à questão pode começar pelo dado de que os profissionais que participam de sua gestão e atuam nas UBS não reconhecem a diversidade interna a esse segmento. Especialistas das sedes das regionais de saúde, gerentes de UBSs, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem tenderam a resumir essa população ao segmento de pessoas trans e travestis e os serviços oferecidos como apenas os voltados às pessoas trans e testes para ISTs.
O não reconhecimento dessa diversidade interna se agrava quando adotamos uma perspectiva interseccional porque por mais que a sigla LGBTI+ traga um anacronismo, também nos recorda que a vivência de cada pessoa, sua orientação sexual e identificação de gênero geram processos distintos nos serviços de saúde. Quando reconhecemos outros marcadores da diferença (como raça/cor/etnia, idade, escolaridade) nessas pessoas, o que poderia ser oferecido a elas em uma UBS é ainda mais distante do que poderia ser almejado: o de não generalizar as diferenças entre os grupos que compõe essa população, antes criar pontos de cuidado evitando invisibilidades interseccionais.
A despeito do exposto, é importante ouvir as sugestões feitas pelos profissionais para aprimorar a entrada e o atendimento desse segmento populacional, dentre as quais merecem destaque: 1. propostas de melhoria da formação dos profissionais e criação de protocolos para sua atuação junto a usuários LGBTI+ nas UBSs; 2. aprimoramento dos prontuários, inclusive com a criação de um histórico de saúde e/ou anamnese que contemplasse as especificidades de gênero e sexualidade dos usuários; 3. criação e divulgação de dados sobre essa população, suas necessidades e demandas, o que permitiria a expansão da oferta de serviços; 4. melhor e mais adequado acolhimento; 5. criação de grupos de diálogo interdisciplinares sobre essa população, que também desenvolvessem estratégias de atração dela para a unidade de saúde.
A recorrente demanda de melhora formativa dos profissionais, com a inserção de conteúdos de gênero e sexualidade nos currículos, veio acompanhada da priorização de conteúdos com aplicabilidade imediata. Trata-se de dado importante e que sublinha a valorização da prática na formação em saúde, mas que traz consigo um ponto cego, já que os conteúdos sobre gênero e sexualidade se desenvolveram historicamente na esfera das ciências humanas e sociais, envolvendo aprendizados que não são práticos. Gênero e orientação sexual demandam ler e discutir artigos e livros de áreas como antropologia, sociologia, psicologia, para se familiarizar com esse campo de estudos.
A despeito do desafio, incorporar esses conteúdos nas disciplinas mais próximas às ciências sociais e humanas em saúde seria um empreendimento enriquecedor para a formação dos profissionais de saúde. Como fazê-lo é tema para outra pesquisa, mas nesta – focada nos discursos dos profissionais de saúde –, o que é possível ressaltar é a persistência das bases epistemológicas da formação em saúde e sua inquestionabilidade mesmo em suas críticas à própria formação e aos limites de sua atuação profissional.
Em outras palavras, ao contrário do que podem fazer pensar os discursos dos profissionais, não é apenas a falta de conteúdo sobre pessoas LGBTI+ nos cursos de formação, aperfeiçoamento ou afins a responsável pelos limites impostos à incorporação desse segmento populacional ao sistema de saúde. As principais responsáveis são bases formativas e epistêmicas biomédicas, centradas no olhar anatomopatológico e na priorização da aplicabilidade de todo conhecimento, o que restringe o que seria válido para a promoção da saúde. Manter inquestionadas essas bases que formaram e moldam a atividade profissional na área de saúde pode inviabilizar não apenas a plena implementação da PNSILGBT, mas o próprio ideal da integralidade que é parte constitutiva do SUS.

Referências

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Miskolci, R., Oliveira, F. S., Teixeira, F. B., Deslandes, K., Pereira, P. P. G.. O que uma UBS pode oferecer às pessoas LGBTI+?. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/abr). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/o-que-uma-ubs-pode-oferecer-as-pessoas-lgbti/19157?id=19157&id=19157

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