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Artigos

0234/2024 - SOFRIMENTO MORAL VIVENCIADO POR TRABALHADORES DA SAÚDE EM CENTROS DE TRIAGEM DA COVID-19, BLUMENAU-SC, 2021
MORAL DISTRESS EXPERIENCED BY HEALTHCARE WORKERS IN COVID-19 TRIAGE CENTERS, BLUMENAU-SC, 2021

Autor:

• Jaqueline Marcos dos Santos - Santos, J. M. - <msjaque@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6599-8102

Coautor(es):

• Marta Verdi - Verdi, M. - <verdiufsc@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7090-9541



Resumo:

A pandemia da Covid-19 evidenciou novos problemas éticos desencadeadores de sofrimento moral no cotidiano de trabalho em saúde que merecem ser tratados para além de um grave problema de saúde pública. Objetivo: Compreender a vivência do sofrimento moral dos trabalhadores da saúde no exercício de seu trabalho de enfrentamento da pandemia da Covid-19 em Centros de Triagem da Microrregião de Blumenau, Santa Catarina, Brasil. Metodologia: Trata-se de um estudo qualitativo realizado com 31 trabalhadores da saúde por meio de entrevistas virtuais durante a pandemia. Foi realizada a análise de conteúdo com o auxílio do software Atlas-ti. Resultados: Com base no referencial de Wilkinson, a análise revelou que o sofrimento moral destes trabalhadores se constituiu pelas dimensões da experiência e do efeito. Na experiência, as principais ameaças à integridade moral foram o assédio moral e o impedimento moral, além de outros motivos geradores de sofrimento moral. Como efeito deste processo ocorreu a vivência de sentimentos que trouxeram consequências físicas e psicológicas da angústia moral e estratégias de enfrentamento pouco efetivas. Conclusão: O estudo possibilitou compreender o processo de vivência do sofrimento moral, apontando a deliberação moral como estratégia de enfrentamento.

Palavras-chave:

ética; problemas éticos; sofrimento moral; trabalhador da saúde; Covid-19.

Abstract:

The Covid-19 pandemic has highlighted new ethical problems that trigger moral distress in daily healthcare work that deserve to be addressed in addition to being a serious public health problem. Objective: To understand the experience of moral distress by healthcare workers when carrying out their work to combat the Covid-19 pandemic in Triage Centers in the Microregion of Blumenau, Santa Catarina, Brazil. Methodology: This is a qualitative study carried out with 31 healthcare workers through virtual interviews during the pandemic. Content analysis was carried out with the help of Atlas-ti software. Results: Based on Wilkinson's framework, the analysis revealed that the moral distress of these workers was constituted by the dimensions of the experience and effect. In experience, the main threats to moral integrity were moral harassment and moral impediment, in addition to other reasons that lead to moral distress. As an effect of this process, feelings were experienced that brought physical and psychological consequences of moral anguish and ineffective coping strategies. Conclusion: The study made it possible to understand the process of experiencing moral distress, indicating to moral deliberation as a coping strategy.

Keywords:

ethics; ethical problems; moral distress; healthcare worker; Covid-19.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO

O sofrimento moral (SM) provém de emoções negativas decorrentes de situações moralmente indesejáveis vivenciadas pelos trabalhadores da saúde (TS) (1). Estas situações envolvem conflitos de valores que exigem posicionamentos éticos na tentativa de superar o problema. Ao ocorrer impedimentos que comprometem a deliberação moral, sentimentos de impotência e angústia tornam este fenômeno em um tipo particular de sofrimento (2). O que diferencia o SM de outras formas de sofrimento é o componente ético-moral mobilizador de enfrentamentos frente à percepção de incerteza moral (3,4). Esta percepção pode ser acompanhada de desconforto moral seguida de manifestações físicas, psíquicas e comportamentais caso o curso da ação mais prudente seja impedido de concretizar-se (3).
A Covid-19 revelou novos problemas que afetaram a saúde mental dos TS, tais como alto risco de infecção, isolamento, ansiedade e medo (5). Estas questões trouxeram elementos significativos que agravaram os fatores desencadeadores de SM (6). O cotidiano de trabalho com elevado número de pacientes, jornadas mais longas e sem descanso, provocou exaustão física e esgotamento mental, prejudicando a atenção com as ações de proteção individual (7). Também, os TS precisaram tomar decisões difíceis frente às condições inadequadas e a falta de critérios justos para a alocação de recursos escassos (8). Como agravante, o governo federal descontinuou as ações do Ministério da Saúde, dificultando a operacionalização de ações estratégicas de controle da epidemia (9). No que tange à implementação de políticas voltadas à força de trabalho em saúde no enfrentamento da Covid-19, estudo apontou para regulamentações isoladas, superficiais, repetitivas e insuficientes na coordenação de ações e proteção dos TS (10).
Estudos investigaram o nível de angústia moral (11–14), os fatores preditores (6,11,14,15) e os impactos do SM na qualidade de vida (16) e saúde mental (14,17) dos TS da linha de frente da Covid-19. Os escores de SM foram maiores que em estudos anteriores (13), com maior frequência de angústia em mulheres (15) e associadas a altos níveis de sofrimento psicológico e burnout (17). São fatores preditores o despreparo dos TS (13,17,18), a falta de comunicação eficiente (13,16,17) e os problemas de infraestrutura e logística relativo à escassez de pessoal, equipamentos de proteção individual (EPI), medicamentos, instrumentos e testes diagnósticos (6,13–15,17,18). As falhas no suporte organizacional do trabalho (13–16) conduziram os TS para incertezas morais geradoras de angústia. Quanto menor era a percepção de clima ético organizacional nos serviços de saúde, maior foi o número de relatos de SM (11).
Há limitação de estudos que aprofundem a vivência do SM na diversidade de cenários dos serviços de saúde brasileiros durante a pandemia, pois a maioria foi realizado em países de alta renda, com foco na área hospitalar e no início do surto (11,12,15–18). Um estudo brasileiro (6) analisou os preditores de SM em notícias de circulação nacional e internacional publicadas on-line, mas são inexistentes até o momento estudos que tenham abordado o tema na Atenção Primária à Saúde (APS).
O protagonismo da APS, por meio dos Centros de Atendimento para Enfrentamento à Covid-19, conhecidos como Centros de Triagem (CT), justifica a necessidade de investigar o SM nesse contexto (19). Na APS, o SM é desencadeado por fatores relacionados ao dia a dia de trabalho (20) chamados de questões “cotidianas”, vivenciadas por milhares de pessoas e sistematicamente invisibilizadas ou negligenciadas (21).

OBJETIVO

Compreender a vivência do SM dos TS no exercício de seu trabalho de enfrentamento da pandemia da Covid-19 em CT da Microrregião de Blumenau, Santa Catarina, Brasil.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Trata-se de uma pesquisa de campo, de caráter exploratório e abordagem qualitativa desenvolvida junto aos TS dos CT da Covid-19 do município de Blumenau-SC, sendo um CT instalado num parque e cinco fast-tracks anexos aos Ambulatórios Gerais.
Foram recrutados 34 participantes de um total de 100 TS dos CT escolhidos. No processo de entrevistas, três participantes descontinuaram, dois por não atenderem aos critérios de elegibilidade e um solicitou a retirada do consentimento. A amostra por conveniência foi constituída por 31 TS, dentre os quais 01 assistente administrativo, 01 dentista, 12 enfermeiros, 01 farmacêutico, 09 médicos, 01 psicólogo e 06 técnicos de enfermagem.
Como critérios de inclusão da pesquisa foram considerados: atuação mínima de quatro meses nos CT; fazer atendimento direto aos usuários; e disponibilidade para participar do estudo. Não foram utilizados critérios de exclusão.
Foram realizadas entrevistas individuais via videochamadas, utilizando roteiro semiestruturado baseado na Escala Brasileira de Distresse Moral em Enfermeiros (22). Questões sobre o cotidiano de trabalho, conflitos de valores, impedimento moral e a percepção de angústia, desconforto ou sofrimento relacionado a estas situações foram abordadas, além de uma questão final aberta. As entrevistas ocorreram entre março e maio de 2021, com duração média de 45 minutos, envolvendo somente pesquisadora e participante e gravadas em meio digital.
O processo analítico ancorou-se nos procedimentos da análise de conteúdo de Bardin (23) com o auxílio do software ATLAS.ti 9. As fases de análise organizaram-se conforme os três polos cronológicos: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados obtidos e interpretação.
Na pré-análise, foi realizada a organização, transcrição das entrevistas, leitura flutuante do material e inserção no software ATLAS.ti 9. Para preservar a identidade dos participantes, foram usados códigos compostos com a primeira letra da profissão, seguida de número ordinal referente à ordem da entrevista, a sigla CT seguida de número ordinal correspondente ao local de atuação e a letra M ou F conforme o gênero informado seguida de número ordinal relativo à ordem da entrevista (exemplo E7CT3F14).
Na fase de exploração do material se iniciou o processo de codificação que resultou em cinco subcategorias, as quais foram agrupadas em duas categorias analíticas. O referencial de Wilkinson (4) fundamentou a emergência analítica das duas categorias: as fases da experiência e do efeito do SM.
Os cuidados éticos na pesquisa foram incorporados com o objetivo de assegurar a prevenção de qualquer dano aos participantes. O projeto do estudo foi aprovado pela Escola Técnica de Saúde de Blumenau (ETSUS) e pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC com parecer 4.593.704.

RESULTADOS

Participaram do estudo 31 TS, sendo 24 mulheres e sete homens, com idades entre 25 e 58 anos. O período de atuação nos CT variou de quatro a 13 meses, apresentando uma média de 11 meses, com carga horária que variava de 20 a 50 horas semanais. Com relação ao vínculo empregatício, 23 TS possuíam contrato de trabalho temporário e cinco indicaram ter mais de um vínculo empregatício, atuando em outros estabelecimentos de saúde. Dentre os participantes, seis possuíam ensino médio, 11, graduação e 14, pós-graduação.
No processo analítico, identificaram-se os problemas éticos desencadeadores de SM e analisou-se a vivência deste fenômeno pelos participantes do estudo, que com base no referencial de Wilkinson (4) constituíram as categorias analíticas da experiência do SM e dos seus efeitos, sintetizadas no Quadro 1.

Experiência do Sofrimento Moral

A experiência do SM compreende o processo de desencadeamento do SM que ocorreu a partir de vivências que ameaçaram a integridade moral e problemas éticos que se configuraram em motivos geradores dele. Dentre as ameaças à integridade moral expressas por 17 participantes destacaram-se o compromisso moral com o cuidado, o assédio moral e o impedimento moral.
Os participantes relataram ter o compromisso moral com o cuidado apesar do medo e da apreensão que a assistência aos casos de Covid-19 imprimia. Tal compromisso relaciona-se com a responsabilidade dos deveres profissionais.

Eu acho que essa pressão vem da minha parte, muito mais. Uma pressão muito mais moral, de realmente ter que fazer alguma coisa. (E12CT2M6)

Tem essa apreensão de trabalhar ali? Tem. Mas a gente sabe a responsabilidade do profissional. Se eu fui chamada para trabalhar como enfermeira, no nosso código de ética quando me formei fiz um juramento que iria cuidar da saúde. (E1CT5F1)

Situações percebidas como assédio moral foram mencionadas nas relações entre gestores e TS, nas relações entre os TS e por parte dos usuários nas relações com os TS. Nas relações subordinadas foi mencionado o desrespeito. Entre os TS, ocorreram agressões verbais, xingamentos, ameaças, bullying e a descredibilidade do médico recém-formado. Já os abusos cometidos pelos usuários foram por meio de palavras, gestos e comportamentos, chegando a agressões físicas em casos que exigiram dos médicos condutas prescritoras.

Teve uma situação que ela [superior imediato] me acusou na frente do paciente [...] só ali eu já poderia ter feito uma auditoria contra ela, mas era bem no começo e eu morria de medo [...] eu sofria muito bullying. (M5CT4F22)

Essa situação foi bem chata porque essa profissional me acusava de coisas que eu não fazia [...]. Mas isso já fazia muito tempo e eu não era de levar problemas para coordenação, simplesmente ignorava. Mas teve um momento que eu já não aguentei mais porque ela estava me desrespeitando na frente dos usuários e estava ficando bem agressivo moralmente. (E3CT5F9)

[...] são pacientes que, por a gente não fazer aquilo que gostariam, eles desrespeitam, às vezes até com ofensa moral, palavras de baixo calão e até mesmo agressão física [...] já teve inclusive que chamar a polícia [por causa] de usuários que agridem. (O1CT4F6)

Os participantes relataram SM diante da incompletude da deliberação moral ao não realizar o curso da ação eleita devido a impedimentos morais.

Se a gente não consegue fazer o nosso trabalho como deve ser feito, dar assistência para o paciente, pelo menos o mínimo que ele precisa, a gente não fica bem! Porque a gente se coloca no lugar, a gente tem empatia com aquele paciente. [...] Então quando é frustrada a nossa tentativa de fazer o melhor, a gente acaba não ficando bem também. (E10CT1F18)

O meu impedimento era o medo, medo de ser demitida. Sou contratada, estou na experiência, se eu reclamar demais vão me pôr para fora. (M5CT4F22).

As situações de impedimento moral possuíam diferentes questões que os uniam. Elas ocorreram nas relações entre TS e com a instituição. No âmbito das relações interprofissionais ocorreu desrespeito e ameaças entre os TS quando questionada a conduta profissional.

O médico muitas vezes não aceita a conduta da enfermagem. A gente pode colocar a situação para eles, mas no final quem faz o desfecho são eles. Então a gente pode estar vendo uma situação e quando chegar dentro do consultório o médico não tem a mesma visão, ele muda e acaba liberando o paciente. (E6CT2F13)

Eu e minha colega questionamos [a conduta de um médico] e fomos ameaçadas de processo, ameaçadas de acabar com a nossa carreira. (E7CT3F14)

Nas relações com a própria instituição, o TS sofreu impedimento moral por causa de falhas no fluxo de atendimento e entre os serviços da rede.

Às vezes a gente vê que é um paciente que precisa de uma transferência com uma ambulância avançada do SAMU e não consegue. A gente perde muito tempo tentando convencer o colega de que aquele paciente precisa ser transferido [...] eu me sinto implorando por uma coisa que deveria ser meio óbvia. (M3CT2F10)

A prescrição de medicações sem eficácia para Covid-19 autorizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e realizada por alguns médicos, contrapôs valores e desencadeou problemas éticos.

Eu já tive até uma ouvidoria porque um pai de paciente queria que eu prescrevesse o kit pré-tratamento. Eu gastei tanto tempo tentando orientar o que eu sei, o que eu estudei, para tentar convencer ele [...]. E então eu tive que responder um texto enorme, colocar artigo científico, falando porque que eu não prescrevi uma medicação que não tem comprovação científica para Covid. E a gente fica impotente. (M7CT2M3)

A gente tem acesso ao prontuário do paciente pelo sistema da cidade e acaba vendo a prescrição realizada pelo colega. Coisas que eu não concordo, não prescrevo. [...] quando eu preciso orientar o paciente, oriento da forma com que eu acredito, com o que eu estudo, com as evidências [...]. Mas eu sempre deixo claro que o paciente tem autonomia dele. E se ele precisar procurar outro médico para fazer o que ele quer e precisa, pode procurar. Eu tenho também a minha autonomia como médica e vou respeitar os meus valores dos meus princípios éticos. (M1CT5F4)

A narrativa da participante (M1CT5F4) é ilustrativa ao ser questionada como a conduta prescritiva de medicações sem eficácia lhe afetava.

Não afeta objetivamente falando, mas afeta. Como é que eu vou explicar? É moralmente mesmo, é porque a gente entra em conflito e isso me incomoda. (M1CT5F4)

Também gerou conflito ético a assinatura de laudos de testes da Covid-19 realizadas pelo médico sem presenciá-los.

Tem algumas coisas sobre o fluxo que me incomoda que também é um desvio ético, e esse sim, eu sou impedido de fazer [...]. A coleta é feita pelo técnico de enfermagem. Quem precisa laudar esse exame sou eu, médico, sendo que não fui eu que realizei e eu me coloco como o responsável técnico por um exame que eu nem mesmo vi. (M9CTM5)

Situações de alocação de recursos relativos à prestação do cuidado, embora não tenham sido frequentes, causaram impedimento moral. Os profissionais precisaram escolher o paciente de maior risco para ofertar o cuidado preconizado, deixando sem assistência de terapêuticas e transferências hospitalares pacientes que estavam no limiar em decorrência da superlotação e insuficiência de recursos.

Já teve paciente que eu queria mandar para o hospital, mas eu não mandei porque eles não iriam aceitar. Não era um paciente que estava grave, mas que ele poderia ficar e isso ia demandar exames, uma avaliação mais aprofundada. E eu já fiz isso com uns três pacientes, pelo menos. (M4CT2F16)

Como motivos geradores de SM, as situações mais frequentes foram as que configuram ameaças à integridade moral, dentre elas o assédio moral e o impedimento moral. Em seguida, os problemas encontrados nas relações, na organização dos processos de trabalho e na falta de condições básicas para a realização das atividades laborais. Além disso, o estresse causado por problemas no cotidiano de trabalho foi indicado por 16 participantes como fator motivador de SM.

A médica reguladora do SAMU desligou o telefone na cara do médico. Eu liguei de novo, eu ameacei e falei: olha, a gente sabe que essa ligação de vocês é gravada, a partir do momento que eu passei o plantão do paciente para vocês a responsabilidade da vida do paciente é de vocês [...]. Mas para você ter uma ideia de quão difícil essa comunicação. (E7CT3F14)

Aconteciam situações que potencializavam a possibilidade de contaminação. Nebulização, por exemplo, não era para ser feito na Unidade de Saúde, mas tinha médico que queria nebulizar. Daí dava um auê porque o médico que é autoridade máxima em saúde dizia que tinha que nebulizar e a enfermagem dizia que não podia nebulizar porque tinha esse regramento. (E12CT2M6)

A desvalorização foi mencionada pelos profissionais da enfermagem, principalmente pela baixa remuneração, razão pela qual alguns profissionais se dedicaram a outros vínculos de trabalho, sofrendo com a sobrecarga e alto índice de afastamento por doenças.

A sobrecarga é referente ao nosso salário que é muito pouco. [...] só que pelo fato de eu pensar, ah eu preciso fazer, tenho que ganhar mais, eu acabo vindo [fazer horas extras]. Então essa sobrecarga é mais individual por aceitar fazer. (T5CT5F23)

O absenteísmo é altíssimo entre as técnicas, temos muita gente afastada. Toda semana têm dois, três técnicos afastados. Está relacionado a essa condição, porque todo mundo tem dois vínculos. (E12CT2M6)


Efeito do Sofrimento Moral

A segunda categoria apresenta os efeitos do SM e está relacionada à percepção dos participantes sobre a vivência dos sentimentos gerados, as consequências e as estratégias de enfrentamento do SM.
Foram relatados, com maior frequência pelas mulheres, a vivência de sentimentos de desconforto, angústia, ansiedade, tristeza e medo.

É angústia, com certeza eu acho que a angústia, ansiedade, nossa! E o estresse também, aumentou muito [...]. Tinha dias que você chegava para trabalhar e respirava: [Respiro] “Ah! de novo! Mais um dia com aquela fila imensa!”. (E9CT2F17)

Os primeiros que ali começaram a ter óbito e a perder pessoas da classe foram os profissionais da área da saúde. Então não tivemos nem tempo de ter esse luto, da gente poder sofrer por um colega de trabalho. Teve um momento que a gente pediu para fazer 5 minutos, a gente queria fazer uma oração pela perda de uma colega de trabalho e a população ficou revoltada. (E6CT2F13)

O medo foi o sentimento que mais emergiu, relatado por 17 participantes, devido à falta de informação que se tinha no início da pandemia quanto à prevenção, terapêuticas e contágio.

No começo da pandemia a gente ficou atendendo e não teve muita orientação de como que realmente deveria atuar com relação: ah se atendia emergência, se atendia os pacientes normalmente, com relação aos EPIs, se a gente teria um amparo legal caso se contaminasse, quanto a algum membro da família. (O1CT4F6)

Assim, o medo de contaminação atingiu a maioria dos participantes, especialmente, de contaminar seus familiares.

Eu ainda tenho esse medo de estar trazendo algo para dentro de casa ou para família. No início eu me isolei, me afastei de todo mundo. Quando chegava dentro de casa eu não chegava próximo do meu filho, do meu marido, só depois que eu tomasse banho e ainda cuidava muito. (E6CT2F13)

Lá no começo logo que eu entrei pra Covid, eu morava com os meus pais, aqui nesse mesmo prédio. Eu fiquei tão desesperada, com medo, que eu acabei alugando; estou morando em um apartamento de um quarto no mesmo prédio por causa deles. (M5CT4F22)

O risco de adoecimento e morte pela Covid-19 desencadeou angústias e medo do agravamento da situação de saúde dos usuários que procuravam os serviços.

Já pensei até em começar a tomar medicação ou alguma coisa assim para estar diminuindo isso, porque a ansiedade é grande. Ansiedade pelo medo que a gente passa, risco de contaminação, medo de perder alguém lá dentro, não conseguir ajudar alguém. (E6CT2F13)

A alta demanda de usuários e a gravidade dos casos abalaram os TS diante da falta de condições de trabalho para a assistência preconizada, gerando sentimento de impotência e angústia.

É desesperador! É muito triste! É uma situação que a gente não imagina estar vivendo e nunca imaginou. Eu passei seis anos estudando, me formei no olho do furacão. E então agora quando você para e fala: o carimbo é meu e sou eu que tenho que fazer, e eu não tenho condição para fazer isso porque não dou conta, é muita gente para atender e meus colegas também não dão conta, a gente está exausto. E eu numa situação dessa, de não ter um oxigênio. (M1CT5F4)

O medo também foi evidenciado diante da agressividade e ameaças de usuários.

Se o paciente quer aquela hidroxicloroquina, ele não precisa passar em mim, a hidroxicloroquina está disponível na farmácia do SUS. [...] Se ele traz uma receita do médico particular dele, não precisa passar pelo médico do SUS. [...], mas eles não entendem isso. Seu médico falou que poderia pegar aqui na farmácia, mas a receita o senhor pega com ele. O senhor tem total direito à segunda opinião, assim como eu tenho total direito de não prescrever. [...] Então nesses casos eu fiquei com medo já do paciente partir para agressão física! (M3CT2F10)

As consequências do SM foram expressas com maior frequência pelos médicos e enfermeiros. Os homens apresentaram maior incidência de manifestações físicas e emocionais, porém mais brandas, como crises de ansiedade, tensão, irritabilidade e crises gastrointestinais.

Eu acho que é uma irritação, não com as outras pessoas, acho que é uma irritação da mente mesmo. A cabeça está irritada. Eu estou cansado, o tempo todo cansado. (M7CT2M3)

Obviamente que eu tive manifestação clínica disso, eu tive ansiedade e tive que tratar. Eu tive epigastralgia e tive que tratar. (E12CT2M6)

Nas mulheres, as manifestações recorrentes foram de síndromes psicológicas, como burnout, depressão e pânico. Estas síndromes englobaram sensações e emoções, destacando as ocorrências de crises de ansiedade com episódios de choro, aperto no peito, taquicardia, falta de ar, insônia e irritabilidade.

Faz uns dois meses que eu fui diagnosticada com depressão. Tive que procurar um psiquiatra porque estava num pico de estresse muito, muito grande. Eu estava na triagem, mas se o paciente chegava eu já não conseguia mais nem ouvir. (T5CT5F23)

Muita, muita lágrima derramada, muito aperto no peito, tive dois episódios de pânico em atendimento que eu precisei me retirar, terminar de atender o paciente e sair porque tive crise de pânico. [...]. (M3CT2F10)

As trabalhadoras indicaram maior número de casos de afastamento do trabalho por motivo de doença e pensamentos de abandono da profissão em razão do adoecimento físico e mental.

Eu sempre fui uma pessoa muito centrada, mas eu desestabilizei em agosto [...] e então fiz o afastamento de 15 ou 20 dias. Mas estou tomando medicação até hoje por causa dos medos [...]. (E8CT4F15)

Várias vezes já pensei (em abandonar a profissão) até hoje em dia ainda penso em amadurecer essa ideia. (E3CT5F9)

Para lidar com a carga de emoções e sofrimentos, os participantes viabilizaram estratégias como a abstração dos problemas e a busca por apoio nas práticas religiosas, de atividades físicas e lazer.

Eu não vejo mais TV, se está passando alguma coisa eu desligo. Durante o trabalho, quando estou exausta eu saio, tomo um café, vou tomar uma água e ao banheiro. (M1CT5F4)

Por ser cristão também tem essa condição de ter esse apoio espiritual, então eu sempre estou envolvido com as nossas atividades aqui da igreja. (E12CT2M6)

Eu procuro ler quando estou em casa, escutar música. Meu pai mora no interior, então eu procuro ir para lá pra relaxar. (E8CT4F15)

O uso de medicações ansiolíticas e antidepressivas foi realizado exclusivamente pelas participantes mulheres, sendo as profissionais médicas as que mais procuram as terapias psicológicas.

Eu tomo medicação e agora até estou sem, mas estava tomando medicação meio que direto para poder dormir porque estava perdendo o sono e antidepressivo. (E3CT5F9)

Pessoalmente eu faço terapia, eu vou à academia, danço, tento meditar. São coisas pessoais que a gente tenta para tentar não enlouquecer tanto. (M1CT5F4)

DISCUSSÃO

No processo de experiência do SM, o compromisso moral com o cuidado, também vivenciado por TS em outros estudos (14,15,18), atuou como uma pressão moral imposta por si mesmo, responsável por ativar a sensibilidade moral e perceber situações em que permeiam os conflitos éticos. Porém, em contato com os diversos impedimentos morais, o compromisso moral acentuou o sentimento de impotência, comprometendo a integridade moral dos TS.
Considerando que a integridade moral de um indivíduo é construída por meio de valores integrados à personalidade moral durante toda sua vida, eventos que ameaçam o exercício de um olhar crítico capaz de analisar, aceitar ou rejeitar situações com base em sua moral podem desencadear o SM (24).
O assédio moral foi um tipo de ameaça geradora de SM relatada pelos participantes. Quando persistente, submete o TS a circunstâncias humilhantes, vexatórias e constrangedoras e intencionam causar dano emocional e psíquico, afetando os valores pessoais em relação ao trabalho e a imagem profissional (25). Embora nem todos os relatos tenham apresentado situações contínuas provocadas pelo mesmo agente motivador, estudo realizado com enfermeiros (26) demonstrou que independente das características dos TS e da frequência com que o assédio moral ocorre, a exposição a este tipo de violência impacta negativamente na saúde mental e bem-estar dos mesmos. Em síntese, não é sempre que o SM decorre do assédio moral, contudo ambos podem desencadear sofrimento psíquico e moral que se manifestam por meio da dor ou angústia.
O impedimento moral, nas situações em que a conduta da enfermagem foi desconsiderada pelo médico, é resultante do trabalho fragmentado, uniprofissional e ancorado na hegemonia do saber médico. Estas situações distanciam o TS da execução de suas atribuições legais, gerando a percepção de desvalorização em seu papel profissional ao assumir posturas consideradas por ele moralmente inadequadas (27).
Ainda, o impedimento moral causado pelo negacionismo científico e a propagação de Fake News pelo Ex-Presidente Bolsonaro (28) prejudicou o processo de educação em saúde e motivou conflitos entre usuários e médicos. Tais situações geravam conflitos éticos, principalmente porque o CFM sustentava a prescrição de medicamentos sem comprovação científica. Essa foi uma das estratégias institucionais de propagação da Covid-19, com o objetivo de priorizar a proteção do capital por meio da política econômica, e que resultou em milhares de mortes evitáveis (29). A falta de coordenação do Ministério da Saúde dificultou os repasses financeiros para estados e municípios, prejudicando a aquisição de aparelhos e insumos e o enfrentamento da pandemia pelo SUS (9).
Logo, a alocação de recursos se configurou em um problema ético, vivenciado principalmente nas Unidades de Tratamento Intensivo (UTI) de muitos hospitais, o que levantou questionamentos éticos relacionados às normas regulamentadoras sobre tomadas de decisão frente à necessidade de alocar recursos (30). Este julgamento deveria estar implicado à instituição, e assim, proteger a integridade moral desses TS (31).
Os contratos temporários da maioria dos participantes revelaram a precarização do trabalho, resultante de inseguranças como baixos salários, sobrecarga, desgaste psicológico, maior risco de contaminação e afastamento por doenças. O vínculo empregatício frágil silenciou alguns TS com medo de perderem o emprego ou sofrerem represália. Este silenciamento, tratado como censura, é estabelecido por meio de relações de poder (32), que neste caso, foi exercido pelo sistema neoliberal enquanto manobra política do medo, visando controlar os impulsos psicológicos de autodefesa e levando os indivíduos a se adaptarem e cooperarem (33). Os mecanismos de defesa criados para mascarar a origem do sofrimento podem acarretar consequências para saúde enquanto a dor permanecer desconhecida. Por este princípio, o sofrimento mental surge como reação a dominação a qual o corpo está sujeito, perda da história individual e desequilíbrios psicológicos (34).
As ameaças à integridade moral estão relacionadas às situações que feriram valores, como nos casos de assédio moral e impedimento moral, sobretudo, diante do compromisso moral com o cuidado e tomadas de decisões difíceis.
Além destas ameaças, a experiência do SM evidenciou motivos geradores, revelando problemas éticos inerentes à organização dos processos de trabalho, corroborando com estudos anteriores (15,18). Todavia, o suporte organizacional para resolução dos problemas e amparo para lidar com situações estressoras foi associado a menor SM (13). Percebe-se que a gestão dos CT não considerou no planejamento das ações o desgaste psicológico dos TS diante da exposição e sobrecarga de trabalho. É evidente a implicação ética, posto que estes fatores contradizem os limites morais, comprometendo a saúde e a vida. É fundamental enfatizar a importância de recursos que preservem a saúde mental dos TS, com atividades de psicoeducação sobre as problemáticas (35).
Dentre os efeitos do SM, o sentimento de medo se manifestou como impedimento para a completude da deliberação moral, o que pode anular o desenvolvimento de competências morais e de reflexividade para a deliberação (3). Esta conjuntura laboral desencadeou sentimentos de desconforto, ansiedade e tristeza, exigindo do TS capacidade de resiliência.
O domínio moral da resiliência está associado às dimensões biológicas, psicológicas, cognitivas, espirituais e relacionais do ser humano, sendo a resiliência moral definida como a capacidade de manter ou restaurar a integridade diante de problemas morais, resguardando-se do próprio sofrimento (36). Quando o nível de resiliência é baixo frente situações estressoras, o impacto desta experiência pode gerar importantes consequências à saúde mental.
As microviolências, caracterizadas por atos sutis de violência repetitiva e pública no cotidiano de trabalho, impactam negativamente na organização e divisão do trabalho, resultando na deterioração do clima laboral (37). Compreende atos de incivilidades como agressões verbais, xingamentos, abuso de poder, entre outros (38), o que indica a possibilidade dos TS terem sofrido microviolências. A banalização da injustiça social é considerada uma forma de violência imposta aos sujeitos nas relações de trabalho. O tratamento banal do adoecimento de quem sofre por problemas decorrentes das relações de trabalho, ameaça à saúde do trabalhador (39). Assim, os TS que sofreram moralmente vivenciaram dupla opressão: por um lado, a própria ameaça à integridade moral, e por outro lado, a banalização do SM, visto que não houve iniciativas por parte da gestão para minimizar os problemas.
As trabalhadoras apresentaram maior número de diagnósticos de síndromes psicológicas comparadas aos homens, consistente com achados na literatura (15). A tendência masculina de não expressar os sentimentos para não demonstrar fraqueza ou solicitar ajuda pode resultar em sintomas físicos e agressividade, protegendo ou mascarando os quadros depressivos e de ansiedade. A alta prevalência de problemas relativos à saúde mental, com diagnósticos frequentes de depressão e ansiedade indica a medicalização da saúde mental da mulher e o reflexo de subdiagnósticos e subprescrições entre os homens (40).
A falta de estratégias de enfrentamento pode agravar os sentimentos de angústia, impotência, opressão e vitimização, enquanto comportamentos de enfrentamento conseguem preservar a integridade moral (4). Foram identificadas estratégias de enfrentamento que levaram ao conforto, afastamento do problema e à fuga momentânea. Contudo, nenhum dos relatos indicou a tentativa de rediscutir os processos de trabalho em busca de soluções.
É fundamental que a gestão dos processos de trabalho em saúde considere as especificidades e subjetividades desse labor, considerando os modos de produção de cuidado legitimados no cotidiano de práticas para a resolução de conflitos éticos presentes em um ambiente de trabalho precarizado (41). Como possibilidades de reconhecimento e enfrentamento do SM, é indicado o desenvolvimento de políticas organizacionais que invistam nos valores individuais e em processos de deliberação e reflexão moral no trabalho e na formação em saúde (24).

Limitações do estudo

Considerando a realização do estudo durante a pandemia da Covid-19, limitações podem estar presentes relativas ao distanciamento social que foi necessário para a coleta de dados. A interlocução entre os participantes e a pesquisadora pode ter sido limitada no que tange o caráter emotivo, afetivo e empático devido o distanciamento físico, observando o grau de sensibilidade que o tema apresenta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados indicaram a vivência de SM pelos TS no cotidiano de trabalho dos CT da Covid-19, compreendendo as vivências a partir das dimensões da experiência e efeito do SM. No âmbito da experiência do SM as ameaças à integridade moral foram relacionadas ao compromisso moral com o cuidado, o assédio moral e as situações de impedimento moral. Os motivos geradores de SM revelaram os conflitos éticos que ameaçaram a integridade moral destes trabalhadores. Como efeito deste processo, a vivência de sentimentos gerou consequências físicas e psicológicas e estratégias de enfrentamento pouco efetivas. Neste sentido, o presente estudo avançou na compreensão dos elementos constituintes da vivência do SM, apontando proposições de enfrentamento por meio da deliberação e reflexão moral.
Como ação institucional em defesa do SUS e da saúde dos TS, é imprescindível rediscutir os processos de trabalho e as causas das relações conflituosas geradoras de problemas éticos. Para isso, a dimensão ética do trabalho em saúde precisa ser central desde a formação profissional e capilarizada pelos processos de capacitação no âmbito dos serviços. Sugere-se a realização de novos estudos que investiguem as competências éticas necessárias para o enfrentamento do SM de trabalhadores no cotidiano de práticas em saúde.

Colaboradores

As autoras participaram no planejamento e delineamento da pesquisa, na análise e interpretação dos dados, na redação e revisão crítica do artigo, bem como aprovaram a versão final.

Financiamento

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Como

Citar

Santos, J. M., Verdi, M.. SOFRIMENTO MORAL VIVENCIADO POR TRABALHADORES DA SAÚDE EM CENTROS DE TRIAGEM DA COVID-19, BLUMENAU-SC, 2021. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/jun). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/sofrimento-moral-vivenciado-por-trabalhadores-da-saude-em-centros-de-triagem-da-covid19-blumenausc-2021/19282?id=19282&id=19282

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