0355/2024 - Suicídio, estupro e família: percursos da necropolítica na vida de jovens LGBTQIA+
Suicide, rape and family: tracking necropolitics in the life of LGBTQIA+ youth
Autor:
• Mario Felipe de Lima Carvalho - Carvalho, M.F.L - <mariofelipec@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5714-8418
Coautor(es):
• Anna Paula Uziel - Uziel, A.P - <uzielap@gmail.com>ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7807-3910
Resumo:
Este artigo analisa a violência familiar contra pessoas LGBTQIA+ como uma desigualdade social em saúde mental e especialmente como fator de predisposição ao comportamento suicida. Os dados apresentados partem de uma pesquisa intervenção realizada entre 2020 e 2023 que buscou explorar os afetos e sofrimentos de pessoas LGBTQIA+ através de grupos terapêuticos. Assim, destacamos três casos clínicos que exemplificam a relação entre suicídio, estupro e instituições familiares. Considerando a complexidades destes casos propomos o conceito de estupro de certificação para descrever situações nas quais a pessoa se coloca em uma relação sexual não desejada a fim de certificar sua orientação sexual e cuja iniciativa se dá a partir de sugestões recorrentes de familiares. Por fim, destacamos a instituição familiar como mecanismo de morte de pessoas LGBTQIA+ que opera uma microfísica do necropoder.Palavras-chave:
Suicídio; Estupro; Família; Minorias Sexuais e de Gênero; Saúde Mental.Abstract:
This article analyzes family violence against LGBTQIA+ people as a social inequality in mental health and especially as a predisposing factor to suicidal behavior. The data presented comesintervention research carried out between 2020 and 2023 that sought to explore the affections and sufferings of LGBTQIA+ people through therapeutic groups. Thus, we highlight three clinical cases that exemplify the relationship between suicide, rape and family institutions. Considering the complexities of these cases, we propose the concept of certification rape to describe situations in which a person enters a sexual relationship they did not desire in order to certify their sexual orientation and whose initiative is based on recurring suggestionsfamily members. Finally, we highlight the family institution as a mechanism for the death of LGBTQIA+ people that operates a microphysics of necropower.Keywords:
Suicide; Rape; Family; Sexual and Gender Minorities; Mental Health.Conteúdo:
No primeiro encontro do nosso grupo terapêutico para pessoas LGBTQIA+, um homem gay cisgênero de 37 anos fala das dificuldades em voltar a morar com os pais em virtude de problemas financeiros. Em seu relato, defende a necessidade de negociações e de compreensão do reconhecimento parcial de sua homossexualidade pelos pais. A impossibilidade de receber o namorado na casa dos pais seria a principal marca dessa parcialidade. Quando questionado pelo grupo sobre a restrição imposta de forma silenciosa, ele responde: “mas mãe, você só tem uma”. A palavra gira e praticamente todas as pessoas presentes tinham algo a relatar sobre as dificuldades na convivência com a família de origem. Desde posições mais brandas, no estilo “don’t ask, don’t tell”, até rompimentos mais profundos e expulsão de casa. O último relato feito por uma jovem trans marcou aquele encontro. Discordando da ênfase dada à compreensão das limitações parentais e enfatizando a relação entre a família e suas constantes crises de ansiedade, ela fala sobre seu pai: “sei quando ele entra em casa pelo barulho do sapato, e já começo a tremer”.
Sedgwick1, ao discorrer sobre as diferenças entre saídas do armário relacionadas a sexualidades dissidentes e a questões étnico-raciais, afirma uma distinção radical na ausência ou presença de um povo ou família para a qual o sujeito estigmatizado pode se reportar na busca por apoio. Assim, uma pessoa judia teria na sua família um lugar de proteção contra o antissemitismo, enquanto uma pessoa LGBTQIA+ não só não encontraria esse porto seguro na família como por vezes se depararia com um ambiente mais inóspito que a rua.
Não é possível pensar em questões de família, gênero, sexualidade e raça sem pensar classe social. Nesse ponto, cabe uma distinção na forma como diferentes famílias podem lidar com aquilo que elas consideram um “desvio”. Retomando as considerações de Boltanski2, em função do maior capital cultural das classes mais altas, elas possuem uma maior competência médica que resulta numa maior necessidade médica. Ou seja, haveria uma tendencia nas classes médias e altas por buscar profissionais de saúde, principalmente na medicina e na psicologia, para solução de problemas sexuais e de gênero. Assim, em função do capital cultural das diferentes classes sociais, a dissidência da norma cis-heterossexual pode ser descrita pelo próprio indivíduo ou por sua família como um “transtorno sexual” ou “safadeza”3.
Ser medicamente rotulado pode trazer o privilégio da desresponsabilização por sua condição, algo que diferencia o “desviante mental” do “desviante moral”. Devemos lembrar que os imorais e pervertidos são sempre julgados socialmente como responsáveis por sua condição, logo, merecedores de toda sorte de desgraças e violências que os acometa. Por outro lado, o doente é passível de compaixão e, ao mesmo tempo que não é responsável por seu desvio, tem como obrigação se engajar na tentativa de melhora e colaborar com a ação do médico ou do psicólogo.
Já se passaram mais de três décadas da retirada do diagnóstico de “homossexualismo” da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) pela OMS; e que, em maio de 2019, a 72ª Assembleia Mundial da Saúde decidiu pela retirada do diagnóstico de “transexualismo” enquanto transtorno mental, incluindo a categoria “incongruência de gênero” no capítulo “condições relacionadas à saúde sexual” na 11ª edição da CID. Essa movimentação visa despatologizar a transexualidade ao mesmo tempo em que reconhece que ela é uma condição relacionada à saúde, demandando cuidados específicos, que para serem garantidos, tanto nas redes públicas quanto privadas de saúde, precisam constar na CID (assim como acontece com a gravidez, por exemplo). Desta forma, profissionais da medicina estão impedidos de tratar tais situações como uma patologia. Já no que tange à prática de psicólogas/os, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) já possuía duas resoluções impedindo o tratamento tanto da homossexualidade quanto da transexualidade como condições patológicas (01/1999 e 01/2018, respectivamente). Sabemos que há uma distância entre o estabelecimento de uma normativa para o trabalho em saúde e a mudança das práticas profissionais no cotidiano dos serviços de saúde.
Apesar dos esforços de diferentes atores sociais, ainda persiste a oferta de terapias de reversão de orientação sexual e identidade de gênero. Tais práticas violentas, antiéticas e anticientíficas seguem sendo oferecidas em alguns consultórios particulares de psicologia e em diversas comunidades terapêuticas voltadas para o tratamento de dependentes químicos. O que há em comum nesses espaços é a contaminação do trabalho em saúde por pressupostos místico-religiosos, mais notadamente de igrejas evangélicas neopentecostais. Em larga medida, o encaminhamento de jovens LGBTQIA+ para tais serviços se dá por pressão ou imposição de suas famílias, que comungam da mesma perspectiva religiosa.
Metodologia
Os dados e reflexões apresentados neste artigo derivam de pesquisa de pós-doutorado realizada no Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IP-UERJ) e com financiamento da FAPERJ. Ressaltamos que a pesquisa foi submetida a todos os processos exigidos pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UERJ, sendo aprovada pelo mesmo, e que todas as pessoas que participaram assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Trata-se de uma pesquisa intervenção de caráter exploratório e qualitativo. Assim, ao mesmo tempo em que buscamos compreender a produção de subjetividades de pessoas LGBTQIA+ no cenário brasileiro contemporâneo, também buscamos formas de intervenção não alienantes para elaboração de tais sofrimentos. Para tanto, criamos o Projeto Vozes e Cores que oferece atenção à saúde mental de pessoas LGBTQIA+ através de grupos terapêuticos. Foram conduzidos dois grupos, entre 2020 e 2023, com horários distintos que contaram com a participação em média de 10 a 15 pessoas por encontro. Dentro da proposta de experimentação de formas de intervenção, não colocamos nenhum critério de exclusão do projeto com base em número de faltas. Logo as pessoas poderiam vir quando quisessem sem qualquer prejuízo. Sem nenhum roteiro prévio de questões a serem apresentadas nos grupos, as conversas se deram a partir do que emergiu no processo grupal. Os grupos funcionaram com encontros semanais de uma hora e meia de duração. Durante os anos de 2020 e 2021, os encontros foram realizados online na plataforma do Zoom em virtude da pandemia de Covid-19. Já no ano de 2022 foram retomados os encontros presenciais no Serviço de Psicologia Aplicada do IP-UERJ.
O registro dos encontros foi feito através de relatórios do pesquisador e do grupo de estagiários que compunham o Projeto Vozes e Cores. Estes relatórios consistem em relatos de memória dos fatos e assuntos conversados ao longo de cada encontro. Não houve nenhum tipo de gravação ou filmagem dos encontros. Assim, os dados analisados nesse artigo são aqueles presentes em tais relatórios, resguardando o anonimato dos participantes. A ausência de gravação ou filmagem visa garantir maior fluidez no processo grupal e minimizar inibições nos participantes que seriam potencializadas com a presença de gravadores ou câmeras de filmagem. É válido ressaltar que esta prática, assim como a análise dos dados a partir dos relatórios dos encontros, é recorrente em pesquisas com interface clínica no campo da saúde mental, especialmente na psicologia. Os relatórios em seu conjunto formam um diário de campo. Seguimos aqui um método de pesquisa intervenção a partir da análise institucional com inspiração na obra de René Lourau4,5. Nesse sentido, a apreensão de processos de subjetivação não é possível na forma de um retrato ou gravação supostamente estática e fidedigna, mas trata-se de um processo reflexivo no qual todas as pessoas estão implicadas, especialmente o pesquisador.
De uma maneira geral, a participação nos encontros foi predominantemente de pessoas jovens (65% entre 18 e 29 anos), escolarizadas (40% cursando ensino superior) e morando com a família (40,8% em imóvel próprio e 15,4% em imóvel alugado). Não havia nenhuma questão relacionada a renda familiar no questionário de inscrição, porém a maior presença de pessoas de camadas médias e populares pode ser inferida pelas condições de moradia e pelos relatos nos encontros. Em termos de raça/cor: 47,7% branca; 23,8% preta; 23,5% parda; 2,7% indígena; e 2,3% amarela. Sobre identidade de gênero: 40,8% homem cis; 35,4% mulher cis; 8,1% homem trans; 6,2% não-binário; 3,8% mulher trans; 1,2% travesti; e 4,5% outras. Sobre orientação sexual: 37,7% gay; 23,1% bissexual; 22,3% lésbica; 6,9% heterossexual; 4,6% pansexual; e 5,4% outras. Esses dados por si só já dão pistas da relevância dos conflitos familiares como tema nos encontros.
Família e dissidências sexuais e de gênero
As pesquisas sobre família no campo de estudos sobre as dissidências sexuais e de gênero têm uma preocupação predominante com famílias constituídas a partir de pessoas ou casais LGBTQIA+. São trabalhos que frequentemente recorrem a categorias como famílias homoafetivas, famílias trans, homoparentalidades e transparentalidades. Há ainda diferentes estudos que marcam a recorrência do abandono de jovens e adolescentes, principalmente travestis e pessoas trans, por suas famílias de origem passando pela produção de um certo tipo de melancolia face à perda ou abandono de um modo de vida heterossexual e/ou cisgênero. Sobre tal melancolia, Eribon6 afirma que:
A “melancolia” procederia do luto impossível de ser cumprido ou terminado daquilo que a homossexualidade faz os homossexuais perderem, a saber os modos de vida heterossexuais, a um só tempo, recusados e rejeitados (ou que se é forçado a rejeitar porque se é rejeitado por eles), mas cujo modelo de integração social continua a obcecar o inconsciente e as aspirações de muitos gays e lésbicas. [...] Aqui, a vida dos gays – e das lésbicas – com certeza é obcecada pelos modos de vida e de relações com os outros dos quais eles quiseram ou tiveram de se afastar ou de se privar em razão da homossexualidade. Essa “melancolia” está ligada a perda dos laços familiares (com os pais, os irmãos, o círculo familiar), mas também ao sonho (às vezes inconfesso) de uma vida de família para eles mesmos. (p.53)
A relevância da família na constituição do sujeito também aparece na teoria do reconhecimento de Honneth7. O filósofo propõe uma diferenciação entre três esferas do reconhecimento: amor, lei e estima social. Recorrendo à psicanálise, Honneth7 descreve como primeira forma de reconhecimento intersubjetivo o “amor”. Desenvolvido nas primeiras relações com as figuras de referências (mãe, pai etc.), a função principal deste padrão de reconhecimento seria o processo de individuação e produção de autoconfiança. Embora o “amor” represente
uma simbiose quebrada pela individuação recíproca [e] o que nele encontra reconhecimento junto ao respectivo outro é manifestadamente apenas uma independência individual; [...] só [tal] ligação [...] cria a medida de autoconfiança individual, que é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública. (p.178)
Apesar de este processo ser fundamentalmente psicológico e desenvolvido nas relações primárias, Honneth6 destaca que a construção da “infância” como objeto específico de atenção e a emergência do casamento romântico burguês (conectando amor e matrimônio) constituem dois processos relacionados ao “[...] crescimento gradual de uma preocupação geral com um tipo específico de relação social, que, em contraste com outras formas de interação, é distinguível por princípios de afeto e cuidado”8 (p. 139, tradução livre).
Em relação aos diversos formatos de família possíveis, longe de afirmar pressupostos conservadores referendados por muitos exercícios da psicologia e da psicanálise, trata-se de marcar uma esfera igualmente política das relações sociais, na qual a ausência de reconhecimento traz prejuízos à formação do sujeito. Nas experiências de pessoas trans, não são raros os relatos de afastamento do núcleo familiar e perda de amizades após o início da transição. Ter esses processos de não reconhecimento em mente possibilita uma análise mais profunda dos sentimentos de desrespeito e injustiça que podem ser potencializadores de tentativas de suicídio ou outras violências auto perpetradas.
Essa mirada política sobre a família já está presente nas elaborações de Foucault9 acerca da sobreposição do dispositivo da sexualidade sobre o dispositivo da aliança. Até o século XVIII, o sistema de matrimônio estabelecia, para além das relações de parentesco, localizações para os sujeitos no sistema político e econômico, seja no monopólio da nobreza sobre a política, seja no destino estabelecido pelas guildas e oficinas familiares sobre o destino laboral de seus integrantes. O poder político e econômico da família entra em declínio com as revoluções liberais e foi aos poucos sobreposto pelo dispositivo da sexualidade. Este, por sua vez, opera por técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder, agindo sobre os corpos e os prazeres em processos de controle sobre a vida dentro daquilo que nomeou de biopolítica.
Por outro caminho Donzelot10 mostra o processo de substituição do poder familiar na esfera pública, principalmente na política e na economia, pelo poder sobre a esfera privada na mesma medida em que esta foi inventada na modernidade. Nesse processo compensatório das relações de poder, noções como privacidade e intimidade são inventadas ao mesmo tempo que colocadas sob tutela da família, ou melhor, do assim chamado chefe de família. Nesse sentido, Donzelot10 propõe que a família seria um mecanismo de governo. Refletindo sobre a micropolítica desse processo, Guattari e Rolnik11 ressaltam que tal compensação implicou na privatização dos afetos e do desejo na família. Esse processo aparece como um pressuposto teórico na teoria do reconhecimento de Honneth7,8. Tomar a família como um pressuposto na constituição afetiva e desejante do sujeito tem consequências notáveis quando essa mesma família não cumpre a esperada função de acolhimento e “amor incondicional” propagada por discursos e rituais que romantizam a instituição familiar. Esta é a realidade de grande parte das pessoas LGBTQIA+ que foram atendidas em nossos grupos terapêuticos. O sofrimento então gerado pelo não cumprimento das expectativas de reconhecimento mais primárias pode ser potencializado nas perspectivas teórico-clínicas que insistem no reducionismo do desejo à triangulação edipiana, não possibilitando linhas de fuga desse próprio emaranhado.
No contexto de privatização dos afetos e do desejo na família nos propomos a discutir alguns processos nos quais a família se conforma sutilmente na promoção de situações de estupro e suicídio como mecanismo necropolítico na vida de pessoas LGBTQIA+.
Violência familiar
Boa parte da pesquisa ocorreu durante o período de isolamento social como medida de contenção à pandemia de Covid-19. Muita publicidade foi produzida ressaltando os pontos positivos de se ficar em casa e em família como forma de potencializar o isolamento insatisfatório no país. Ao mesmo tempo, vimos os índices de violência doméstica aumentarem drasticamente. E isso não foi exclusivo das mulheres. Jovens e adolescentes LGBTQIA+ também ficaram confinados com pais e parentes violentos.
A pandemia de Covid-19 reiterou ao mundo que muitas vezes a casa não é um lugar seguro. Talvez seja possível afirmar que boa parte daquilo que se considera uma boa convivência familiar depende da intermitência do contato e da socialização, tendo em vista os conflitos e violências que foram acentuadas no convívio exclusivo e intenso durante parte da pandemia de Covid-19. É sob a chancela do poder familiar de disciplinamento e educação dos filhos, que toda sorte de violências acontece, especialmente contra pessoas LGBTQIA+. Das primeiras injúrias performativas que ensinam à criança que há algo de “errado” no seu jeito de ser ou se portar; passando pela violência física como prática disciplinadora; pela violência sexual no chamado estupro corretivo, principalmente de garotas lésbicas e/ou masculinizadas; pela violência patrimonial que cerceia as liberdades de jovens e adolescentes ou os trata de forma desigual de suas irmãs e irmãos cisgêneros e/ou heterossexuais; chegando ao abandono na forma de expulsão do lar.
Já havíamos mencionado que na teoria do reconhecimento de Honneth7, o autor estabelece como primeira esfera do reconhecimento as relações familiares que com base no “amor” seriam capazes de estabelecer o sentimento de “autoconfiança” nos sujeitos. Pois bem, quando tais relações são baseadas em pensamentos e ideologias preconceituosos contra sexualidades e expressões de gênero dissidentes por parte das figuras de referência, o ódio será a emoção que marcará relações de não reconhecimento. A depender da intensidade dos atos, assim como das formas como a pessoa será capaz de responder a tais atos, o estabelecimento do sentimento de “autoconfiança” estará comprometido, resultando na internalização dos discursos discriminatórios e no estabelecimento de relações preconceituosas consigo mesmo. A isso chamamos de homofobia e transfobia internalizada. A internalização de sistemas de dominação e subordinação resultam em desigualdades em saúde mental. Geram sentimentos de menos valia, baixa autoestima, situações de automutilação, chegando em casos extremos, mas infelizmente não raros, ao comportamento suicida.12
São grandes os obstáculos no enfrentamento à violência familiar. É recorrente o processo de negação da própria violência. A resistência a se perceber como vítima da própria família é engendrada justamente no processo de privatização dos afetos e do desejo por esta. Entre o poder familiar, instituído pela cultura e pela justiça, e o amor da família, performatizado por rituais recorrentes e consagrado como fundamento da constituição do sujeito por diversas teorias psicológicas, a violência encontra guarida. O medo da pobreza e do abandono como consequência de uma violência patrimonial implícita, a invisibilidade da violência psicológica e moral cotidiana, ou o risco muitas vezes sabido e manifesto de violência física e sexual se configuram como fortes elementos de uma política de subjetivação que afeta jovens LGBTQIA+ na produção de quadros de sofrimento psíquico intenso. Para explicitar esses processos, apresentamos três casos emblemáticos da interseccionalidade dessas modalidades de violência, tendo o estupro como um elemento central. Em todos os casos relatados os nomes são fictícios.
Um estupro estimulado
Samanta é uma jovem negra cisgênero de 20 anos que se identifica como lésbica. No primeiro encontro que participa, ela é a primeira a falar: “como posso ter certeza de que sou lésbica? Tem alguma avaliação psicológica para isso?”. Ela relata uma sensação profunda de confusão interna com relação a sua sexualidade. Confusão que estaria dificultando seu sono, gerando episódios de ansiedade e de choro sem razão aparente. Quando indagada sobre como surgiu esta dúvida, ela conta sobre a relação com sua mãe. Afirmando ter uma boa relação com esta, Samanta diz que ao longo dos primeiros meses de isolamento mais restrito, em virtude da pandemia de Covid-19, sua mãe passou a questionar como ela poderia ter tanta certeza de ser lésbica se ela nunca havia tido relação sexual com um homem. Por diversas vezes Samanta reafirma a boa relação com a mãe, ressaltando a cumplicidade e o apoio mútuo entre as duas que não foram abalados coma sua saída do armário aos 16 anos de idade.
Os constantes questionamentos de sua mãe sobre a certeza da sexualidade tiveram efeitos sobre Samanta. Ela começa de fato a repensar se sua identidade lésbica seria resultado mais de um hábito do que de uma certeza sobre seu desejo, afinal, em suas palavras: “como poderia ter certeza de que não gosto de algo que nunca provei”. Internalizada a dúvida, Samanta decide experimentar uma relação sexual com um homem. Pouco tempo depois surge uma oportunidade em uma festa com amigos. Um rapaz, que já havia demonstrado interesse por ela e do qual ela não tinha nenhum tipo de aversão ou desconfiança, é o escolhido. Ela se coloca disponível para o flerte e os dois se beijam. Samanta diz que esse primeiro momento foi tranquilo, que mesmo não sentido um forte “tesão” pelo rapaz, também não havia nenhum sentimento incômodo ou de repugnância pela situação. Em uma hora mais avançada da noite, os dois sobem para um dos quartos da casa onde acontecia a festa para terem uma relação sexual. Nesse ponto, Samanta diz em meio a choros e soluços: “eu sentia como se eu estivesse sendo estuprada, foi horrível, mas eu não estava sendo estuprada, eu consenti com tudo, eu decide estar ali, então não era estupro. Mesmo assim eu tinha essa sensação de estar sendo estuprada. Mas não podia dizer que estava sendo estuprada, eu disse que queria e ele era meu amigo. Mas foi horrível”.
Neste momento, Jéssica toma a palavra.
Um estupro construído
Jéssica é uma mulher branca cisgênero com cerca de 30 anos de idade. Ela se identifica como assexual, ou seja, como uma pessoa que não tem desejo por relações sexuais ainda que mantenha um relacionamento afetivo com um homem há alguns anos. A sua questão no primeiro encontro do qual participa se relaciona a ideações suicidas. No decorrer dos encontros, Jéssica vai destrinchando sua história revelando que já tinha tentado suicídio duas vezes e que já havia recebido o diagnóstico de esquizofrenia. Com o nosso apoio, ela passa a ter acompanhamento psiquiátrico em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e passa a fazer uso de antipsicóticos.
Após três meses participando dos encontros, Jéssica traz as situações que desencadearam a primeira tentativa de suicídio. Naquele encontro, muito emocionada após o relato de Samanta, ela diz: “eu já fui estuprada e com a ajuda da minha mãe”. Ela relata que anos antes, em um de seus primeiros relacionamentos amorosos, a mãe insistia que ela deveria ter relações sexuais com o namorado pois “não era normal não querer sexo”. Como não cedeu às insistências maternas, a mãe passa a insistir com o então namorado que ele deveria ser mais incisivo e que “se forçasse, ela cederia”. Nesse contexto, a mãe constrói a cena propícia ao estupro. Deixa os dois sozinhos em casa, com a porta da frente trancada, e com autorização e estímulo para que o namorado foçasse uma relação sexual com sua filha. Esse relato é feito com muita dor e com várias pausas e choros. Jéssica diz que a trama materna foi revelada pelo namorado no momento do término do relacionamento e confirmada pela mãe que alegava ter feito aquilo por amor e por querer o melhor para ela.
Poucos meses depois dessa descoberta, Jéssica tem sua primeira alucinação. No início, trata-se de uma missão recebida por deus de mostrar para as outras pessoas que o que elas dizem afetam as outras. Trata-se de uma missão civilizatória de convencer as pessoas a serem mais responsáveis em suas interações sociais. Na sequência começam outras alucinações envolvendo uma figura feminina de roupas brancas e com voz calma e carinhosa. Essa figura, que remete a conteúdos maternais e religiosos, se apresenta como querendo seu bem e colocando que a única saída para a dor da crueldade das pessoas seria ela tirar a própria vida e abandonar a missão impossível dada por deus. É nesse ponto que acontece a primeira tentativa de suicídio.
Um estupro evitado
Melissa tem uma história parecida com a de Samanta. É uma jovem branca cisgênero de 19 anos de idade, morando na mesma casa com sua mãe, sua avó e sua irmã mais nova (16 anos). Ela também chega com a demanda de certeza sobre sua orientação sexual e se isso poderia ser alcançado pela terapia em grupo. Ressaltamos aqui que Melissa nunca encontrou Samanta e Jéssica. Ela participou de um grupo diferente e em um momento anterior ao das outras duas. Possivelmente o encontro e a troca entre elas teriam gerado outras reflexões.
Ao falar mais sobre sua demanda, Melissa afirma ter uma ótima convivência em casa. Sua família repete uma configuração relativamente comum no Brasil; tanto a avó quanto a mãe foram abandonas por seus maridos com crianças pequenas ainda. Esta situação é acionada nos discursos tanto da mãe quanto da avó ao questionarem a jovem sobre sua orientação sexual. As duas argumentavam que, em virtude da uma configuração familiar apenas de mulheres, Melissa teria aprendido a amar apenas mulheres e que isso seria mais uma questão de hábito que de uma verdade sobre si. Ao lado dessa interpelação também aparecia a interrogação sobre a possibilidade de certeza de ser lésbica sem ter tido nenhuma experiência sexual com homens. Tais questionamentos surgiram logo no início da pandemia de Covid-19 quando o convívio familiar se tornou mais intenso, ou melhor, sendo praticamente o único convívio social naquele momento. Estes elementos aproximam sua experiência com a de Samanta.
Havia outro complicador nessa história. Melissa conta que recentemente sua irmã mais nova lhe havia confidenciado que se percebia bissexual, mesmo não tendo tido nenhuma experiência sexual até aquele momento. Como a mãe e a avó sempre reiteraram para Melissa a importância de ela ser um bom exemplo para a irmã, principalmente com relação às responsabilidades domésticas e com os estudos, tal revelação não é recebida sem uma reflexão sobre as possíveis influências exercidas sobre a sexualidade da adolescente. Tomando para si tal responsabilidade, Melissa pensa que deveria ter uma certeza maior obre sua própria orientação sexual para que possa ser um apoio mais firme para sua irmã.
Assim, Melissa começa a cogitar a possibilidade de ter uma experiência sexual com um homem. Pensa em possíveis amigos com os quais se sentiria à vontade para isso, no entanto, relata sensações de nojo e ânsia de vômito sempre que imagina a cena sexual. Ela diz: “eu procurei o projeto para ter mais certeza sobre isso. A psicologia pode me ajudar a saber se eu de fato sou lésbica? Porque, toda vez que penso em sexo com homem, eu tenho nojo, vontade de vomitar, como seu fosse ser estuprada”.
Nos casos de Samanta e Jéssica, nossa intervenção foi de acolhimento e sustentação do discurso para que elas, no lugar de testemunha, pudessem construir uma elaboração conjunta do trauma do estupro, uma vez que este tinha se processado na vida das duas por caminhos que guardavam certa similitude, seguindo a proposta de uma clínica do traumático feita por Rosa13. Já no caso de Melissa, optamos por colocar em questão as duas interpelações familiares: a necessidade de uma experiência que sustente uma certeza sobre a orientação sexual e a obrigação e responsabilidade de ocupar um lugar de exemplo moral e ético para a irmã. Teriam tais interpelações a mesma força simbólica desestruturadora caso Melissa se entendesse como heterossexual?
Suicídio
O suicídio é um fenômeno complexo e multifacetado. Seguimos aqui a compreensão do comportamento suicida como abrangendo tanto ideações, quanto tentativas e realizações. Seguindo a literatura especializada sobre o assunto14, o comportamento suicida envolve fatores de predisposição e de precipitação. Assim, o estupro pode se relacionar com o comportamento suicida tanto como predisposição, nos casos de abuso sexual infantil, quanto como precipitação do ato, nos casos de um estupro recente15. De toda forma, os três casos que trouxemos neste artigo explicitam o caminho sutil e letal da violência familiar contra jovens LGBTQIA+, do qual o estupro é uma ferramenta privilegiada de violência contra mulheres.
O chamado estupro corretivo se caracteriza pelo uso da violência sexual como ferramenta na tentativa de correção de um suposto desvio no desejo e/ou no comportamento sexual da vítima (comumente mulheres, mas não apenas). Os casos apresentados são exemplares de novas formas de execução deste tipo de violência. Se no caso de Jéssica, a violência é cometida em nome do amor materno e sem consentimento da vítima; no caso de Samanta, a violência se processa de forma mais ardilosa, construindo uma cena sem vítima, na qual a vítima só pode se configurar como culpada.
A elaboração do trauma do estupro de Jéssica passou pela ressignificação do amor materno. Em um primeiro momento as alucinações surgem como remendo subjetivo ao trauma. A imagem dócil e materna da figura feminina em vestes brancas que sugere o suicídio é emblemática do processo de elaboração do lugar da mãe nesta história. Nossas intervenções na condução do tratamento foram no sentido de ressignificar a relação com a alucinação, fato que era favorecido pela consciência e clareza de Jéssica em saber quando se tratava de algo irreal. Esse processo foi antecedido pela elaboração grupal da violência materna disfarçada de amor presente em diversas histórias. Jéssica precisou primeiro compreender que de onde ela esperava receber só amor, foi de onde veio a violência mais terrível que sofreu. Na elaboração de tal contradição foi possível remeter à alucinação a mesma contradição, assim não se faria mais necessário seguir “os conselhos” de uma imagem que induzia o suicídio. Ainda que as alucinações não tenham desaparecido, Jéssica não se viu mais na obrigação de segui-las.
Se a esquizofrenia diagnosticada em Jéssica é precipitada pelo estupro ou se configurou-se como uma predisposição que somada ao estupro como ato precipitador desencadeou o comportamento suicida, torna-se uma pergunta tautológica. Fato é que as alucinações aparecem depois do estupro. Ainda que consideremos que a esquizofrenia, nos marcos de uma estrutura psicótica, seja o terreno sobre o qual será elaborado o trauma do estupro e que, portanto, o comportamento suicida se apresentaria como uma forma de solução no real daquilo que é impossível de simbolizar; o problema não está na esquizofrenia e sim no estupro corretivo feito em nome do amor materno.
Já no caso de Samanta, percebemos um mecanismo de apagamento da violência sexual a partir da construção incessante da dúvida sobre a orientação sexual e da experimentação sexual como melhor caminho para solução desta mesma dúvida. Em um primeiro momento se desestabiliza a vítima de suas certezas e percebendo-se à deriva num mar de dúvidas nunca apresentadas, a vítima se torna mais suscetível a processos de sugestão, principalmente quando vindos de uma figura relevante como a mãe. A indução a um ato sexual, consentido, mas não desejado, estabelece-se na relação entre Samanta e sua mãe, ou seja, o estupro é um meio de ser “uma boa filha” e corresponder às expectativas de “uma boa mãe” que é a princípio compreensiva com a sexualidade da filha.
O resultado dessa operação subjetiva é uma violência cujo culpado só pode ser a própria vítima. A culpa é por não ter uma certeza forte o suficiente para não ceder as reiteradas “sugestões” maternas. Certeza esta que só poderia ser alcançada seguindo tais “sugestões”. Parece não haver saída para Samanta fora do estupro como condição de certeza sobre a orientação sexual. Aqui nos deparamos com um fenômeno que não seria adequadamente classificado como estupro corretivo pois não há um agente correcional. Trata-se mais de um estupro de certificação que objetiva uma suposta certeza sobre a identidade sexual da vítima que consente a um ato sem desejá-lo. Como efeito desta certificação, temos a produção de um sentimento de culpa específico em meio a um quadro amplo de desorganização psíquica.
A presença do consentimento sem o desejo é marcante do processo de desestruturação interna e de produção de sofrimento psíquico. Aqui não se trata do mesmo sentimento de culpa que ocorre em diversas vítimas de violência sexual quando se prendem na ideia de que poderiam ter feito algo para impedir o estupro e se culpam por alguma ação que possa ter facilitado ou precipitado a ação do violador. Samanta não foi pega de surpresa, mas foi induzida a ocupar o lugar de agente de seu próprio martírio. Aqui está a chave de compreensão da profundidade e do lastro que o estupro de certificação tem na saúde mental.
Não passa desapercebido o fato de Samanta ser negra e do vínculo familiar também passar por questões raciais. Retomando Sedwick1, famílias estigmatizadas a partir de processos de racialização tendem a produzir vínculos mais fortes como forma de proteção ao racismo cotidiano. Entretando aqui o vínculo que protege do racismo possivelmente se converte em ferramenta de violência lesbofóbica. Apesar desta questão não ter sido aprofundada por Samanta e não ser possível tecer uma análise mais minuciosa, pensamos que seja promissor investigar os efeitos do racismo na produção do vínculo familiar e sua reverberação na vida de jovens LGBTQIA+.
Por último, apesar do caso de Melissa ser o principal exemplo de evitação do estupro de certificação, é notável o grau de desorganização interna com que ela chega ao seu primeiro encontro do grupo. O emaranhado de dúvidas, culpas e responsabilidades é potencializado pela predisposição a se pensar mais no bem-estar dos outros que de si mesma como elemento recorrente na subjetivação feminina nos marcos do heteropatricarcado, segundo Zanello16. Nesse sentido, é importante reforçar que as operações discursivas familiares de questionamento das certezas sobre identidades e orientações sexuais, ainda que não acionem categorias claramente homofóbicas ou transfóbicas, guardam a pressuposição das experiências de jovens LGBTQIA+ como problemáticas.
Essa questão já estava presente no pensamento de Sedgwick1 sobre a epistemologia do armário. A autora argumenta que a saída do armário LGBTQIA+ é envolvida de um constante questionamento sobre a sua verdade e sua permanência, sendo sempre acompanhada de percepções das sexualidades e expressões de gênero dissidentes como algo potencialmente transitório. A caracterização de elementos tão importantes da vida do sujeito, tais como gênero e sexualidade, como transitórios e irreais tem efeitos sobre uma gama de aspectos da subjetividade. Como traçar projetos de vida se o sujeito está em permanente questionamento sobre a estabilidade de sua sexualidade e expressão de gênero? Esta parece ser uma das principais ferramentas de produção de sofrimento psíquico e adoecimento de jovens LGBTQIA+ pelas suas famílias. Estes processos estão, por sua vez, vinculados ao comportamento suicida tanto em termos de predisposição quanto em termos de precipitação.
Apesar da vasta literatura sobre suicídio, os estudos que tratam especificamente de pessoas LGBTQIA+ ainda são poucos. Nagafuchi17 indica uma probabilidade de 2 a 7 vezes maior de um jovem LGBTQIA+ cometer suicídio em relação ao resto da população. Sobre os relatos de pessoas LGBTQIA+ que tentaram suicídio analisados em sua pesquisa, o autor afirma que:
[...] o que teria impulsionado um desejo suicida neles não teria sido exatamente a orientação afetivo-sexual, mas, sim, a forma como ela é lida socialmente e desautorizada pelas normas sociais que regem a sexualidade. A forma com que a sociedade respondia e responde às suas individualidades os causaram imenso sofrimento, que só é aplacado com “força e incentivo” ou com antidepressivos. Alguns dizem lidar bem com o fato de serem homossexuais, mas encontram resistência para uma existência plena, na qual suas experiências sejam reconhecidas de alguma forma como experiência humana. (p. 115)17
As conclusões do autor são corroboradas com diversos relatos feitos nos grupos terapêuticos. A quase totalidade dos participantes já pensaram em suicídio alguma vez na vida. Cerca de um terço dos participantes relatam já terem tentado suicídio. Cientes das questões morais e religiosas que envolvem o tema, é possível inferir que a parcela de pessoas que já tentaram seja ainda maior. Considerando que nossa clientela era em sua maioria jovem e vivendo com a família, o contexto doméstico sobressai como articulador das violências simbólicas cotidianas, explícitas ou não, que produzem o comportamento suicida.
Acompanhamos a percepção de alguns autores no campo que pensando sobre a relação entre suicídio e características estigmatizadas (raça, gênero, sexualidade etc.) apontam que tais sujeitos são suicidados por suas famílias, pelo trabalho, e/ou por uma sociedade preconceituosa e violenta. 15,17,18
Se muitos jovens LGBTQIA+ são suicidados por suas famílias, e se estas se configuram como mecanismo de governo sobre o privado e a intimidade, estamos inevitavelmente no campo da política, da governança das relações sexuais e de gênero. Se esta política coloca dois caminhos possíveis; a correção ou a morte, estamos no campo daquilo que Mbembe19 chama de necropolítica.
Considerações finais
Mbembe19 desenvolve o conceito de necropolítica a partir da insuficiência do conceito foucaultiano de biopolítica para a explicação do constante extermínio de sujeitos racializados no contexto interseccional do colonialismo e neoliberalismo na contemporaneidade. Se nos marcos da biopolítica o que está em questão são os modos de produção da vida e do deixar morrer; nos marcos da necropolítica o que está em questão são as tecnologias de Estado na produção da morte e do extermínio de grupos sociais marcados racialmente e localizados em territórios específicos. A necropolítica seria um efeito simultâneo do neoliberalismo, do colonialismo e do racismo de Estado. Considerando que Mbembe constrói seu raciocínio a partir das tecnologias de guerra e da violência de Estado, a transposição do conceito para situações de violência familiar não pode ser feita de forma leviana.
Nesse sentido, estamos pensando mais especificamente numa microfísica do necropoder. Se em territórios racializados e marcados pelos processos colonialistas, o necropoder é explícito e obsceno; na família ele é essencialmente cínico e dissimulado. Como abordamos anteriormente, a partir do pensamento de Donzelot10, a família se configura como um mecanismo de governo da privacidade e da intimidade. Logo, ela governa o que o Estado alega proteger. Ela é ao mesmo tempo um dos centros da biopolítica e um emanador silencioso do necropoder. Tal silêncio é uma condição para a efetividade biopolítica do mecanismo familiar. Se ela for tão obscena quanto o Estado na execução de seus membros, ela perde o estatuto de família e os membros executores perdem o estatuto antes concedido. Homens que assassinam suas esposas não são maridos de verdade. Filhos que matam seus pais também não são filhos de verdade.
No entanto, a família não é uma instituição autônoma na sociedade. Ela está vinculada a outras instituições que se influenciam reciprocamente com diferentes intensidades. Estamos falando das instituições religiosas; das educacionais; do conjunto de leis que normatiza a família, a infância e a adolescência; das políticas públicas que tomam a família como centro de intervenção; do mercado e de suas datas comemorativas; dos processos culturais envolvidos na construção da ideia de nação; entre outros elementos. Logo, quando falamos em família, estamos pensando nesse produto inevitavelmente híbrido da dialética institucional.
Nesse sentido, a eficácia do necropoder emanado da família depende da sua sutiliza e cinismo, inclusive no apagamento das marcas de outras instituições na sua conformação. São microgerenciamentos da necropolítica na família através de gestos, palavras, expressões faciais resguardadas pelos “valores familiares” e acima de tudo pelo assim chamado “amor”. Trata-se de uma tecnologia leve, porém letal. Ausenta-se da responsabilidade, mas age constantemente para produção da morte. Acima de tudo é silenciosa do início ao fim, pois o suicídio segue sendo um tabu na família. Logo, podemos afirmar que a família se configura como um mecanismo micropolítico do necropoder e que, portanto, ela mata, e mata de forma cínica.
Referências
1 SEDGWICK EK. A epistemologia do armário. Cad. Pagu 2007; 28: 19-54.
2 BOLTANSKI L. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra; 2004.
3 CARVALHO MFL. “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não-binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. Cad. Pagu 2018; (52): e185211.
4 LOURAU R. Terceiro encontro. Mnemosine 2007; 3(2): 49-74
5 LOURAU R. Quarto encontro. Mnemosine 2007; 3(2): 75-92
6 ERIBON D. Reflexões sobre a questão gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud; 2008.
7 HONNETH A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34; 2009.
8 HONNETH A. Redistribution as Recognition: a response to Nancy Fraser. In: FRASER N, HONNETH A. Redistribution or Recognition? A Political-Philosophical Exchange. London & New York: Verso; 2003. p. 110-195.
9 FOUCAULT M. História da sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal; 2007.
10 DONZELOT J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Graal; 1980.
11 GUATTARI F, ROLNIK S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes; 1996.
12 CARVALHO MFL, MENEZES, MS. Violência e Saúde na Vida de Pessoas LGBTI. Rio de Janeiro: Ed Fiocruz; 2021.
13 ROSA MD. Migrantes, imigrantes e refugiados: a clínica do traumático. Rev Cult e Ext USP 2012; 7: 67-76.
14 BOTEGA JN. Crise suicida: avaliação e manejo. Porto Alegre: Artmed; 2015
15 BAÉRE F, ZANELLO V. Suicidal behavior in women of diverse sexualities: silenced violence. Psic. Clin. 2020; 32(2): p. 335-353.
16 ZANELLO V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris; 2018.
17 NAGAFUCHI T. A urgência do debate sobre o suicídio das pessoas LGBTQIA+: experiência e subjetividade. REBEH – Revista Brasileira de Estudos da Homocultura 2018; 2(1): 103-127.
18 LIMA L, PAZ FP. A morte como horizonte? Notas sobre suicídio, racismo e necropolítica. Teoria e Cultura 2021; 16(1): 95-109.
19 MBEMBE A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições; 2021.