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0322/2024 - Um olhar sobre a saúde mental de familiares com entes desaparecidos: scoping review
A look at the mental health of family members with missing loved ones: scoping review

Autor:

• Yzabela Yara de Souza Legramante - Legramante, Y.Y.S - <ylegramante@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8745-6884

Coautor(es):

• Poliana Silva de Oliveira - Oliveira, P.S - <polianasilvaoliveirat@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3197-6017

• Priscila Norié Araujo-Betetti¹ - Araujo-Betetti, P.N - <priscila.araujo@usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0259-5880

• Felipe Lima dos Santos - Santos, F.L - <felipe.lima.fs@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5606-9478

• Karen da Silva Santos - Santos, K.S - <karen-web@hotmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5829-5882

• Cinira Magali Fortuna - Fortuna, C.M - <fortuna@eerp.usp.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2808-6806



Resumo:

Resumo
O objetivo da pesquisa foi analisar a literatura científica sobre a saúde mental de pessoas que possuem familiares desaparecidos. Estudo do tipo revisão de escopo, seguindo a metodologia do Instituto Joanna Briggs e do PRISMA-ScR. Utilizou-se as bibliotecas virtuais: Biblioteca Virtual em Saúde e National Library of Medicine (PubMed), e as bases de dados: SCOPUS, EMBASE, Web of Science e APA PsycNet. Selecionou-se 10 estudos e apreendeu-se dois eixos temáticos: “Os prejuízos à saúde mental de familiares que possuem entes desaparecidos” e “As estratégias utilizadas e apoio encontrado para o enfrentamento do desaparecimento”. O primeiro eixo discute como o sofrimento emocional e psíquico dos familiares de entes desaparecidos é evidente em todos os estudos apontados, sendo fortemente relacionado a Teoria da Perda Ambígua e a ocorrência de transtornos mentais. O segundo eixo, aponta estratégias para enfrentamento ao fenômeno do desaparecimento como a religião, a presença de laços familiares, a continuidade de projetos migratórios e a organização de programas e intervenções voltados a esse público. A revisão destaca que o sofrimento experienciado pelos familiares de entes desaparecidos pode ser profundo, complexo e diverso com repercussões na saúde mental desses indivíduos.


Palavras-chave:

Saúde Mental; Pessoas Desaparecidas; Luto; Saúde Pública; Colaboração Intersetorial.

Abstract:

The aim of the research was to analyze the scientific literature on the mental health of people who have missing family members. This was a scoping review study, in accordance with the Joanna Briggs Institute and the PRISMA-ScR. The following digital libraries were used: Virtual Health Library and National Library of Medicine (PubMed), and the databases: SCOPUS, EMBASE, Web of Science and APA PsycNet. 10 studies were selected and two thematic axes: “The damage to the mental health of family members who have missing loved ones” and “The strategies used and support found to cope with the disappearance”. The first axis discusses how the emotional and psychological suffering of family members of missing loved ones is evident in all the studies mentioned, being strongly related to the Ambiguous Loss Theory and the occurrence of mental disorders. The second axis points out strategies to combat the phenomenon of disappearance, such as religion, the presence of family ties, the continuity of migratory projects and the organization of programs and interventions aimed at this public. The review highlights that the suffering experienced by family members of missing loved ones can be profound, complex and diverse, with repercussions on the mental health of these people.

Keywords:

Mental Health; Missing Persons; Bereavement; Public Health; Intersectoral Collaboration.

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
O desaparecimento de pessoas é um fenômeno comum e frequente em todo o mundo1. As circunstâncias do desaparecimento podem ser apreendidas como um "conjunto de fatores objetivos e/ou subjetivos relacionados ao momento do desaparecimento, e/ou às razões pelas quais os familiares da pessoa desaparecida não conseguem conhecer a sua sorte e o seu paradeiro"1 (p. 7).
O desaparecimento configura-se como um processo multicausal, o qual envolve três motivações para o contínuo não aparecimento da pessoa: 1) quando o desaparecimento ocorre devido a motivações pessoais, sendo um desaparecimento “voluntário” como, por exemplo, em situações de fuga do lar; 2) quando o desaparecimento se dá de modo “involuntário”, ou seja, sem que ocorra vontade própria como em casos de sequestro ou desaparecimentos por catástrofes naturais e 3) quando o indivíduo não possui consciência de sua condição de desaparecido como, por exemplo, em situações de imaturidade psicológica, falta de informações ou problemas relacionados a saúde mental e deficiências intelectuais importantes2.
Nesse sentido, milhares de pessoas desaparecem todos os dias a cada ano, vítimas do fenômeno desaparecimento. Na Austrália cerca de 53.000 pessoas desaparecem por ano3, em países como Grã-Bretanha e Estados Unidos esse número alcança, aproximadamente, 155.0004 e 521.0005, respectivamente. No Brasil, estima-se que esse número seja de aproximadamente 65.000, de acordo com os dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 20216.
Embora uma porcentagem expressiva de indivíduos retorne ao lar ou sejam localizados em aproximadamente uma semana, cerca de 86% das pessoas desaparecidas na Austrália conforme Bricknell7 e aproximadamente 50% no Brasil segundo fontes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública8, é significativo o número de pessoas que provavelmente permanecem desaparecidas por longos períodos, acima de seis meses9.
A lei 13.812/2019 institui a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, a qual cria o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas no Brasil e define o conceito de desaparecido como todo ser humano cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento10, mesmo que para efeitos legais, essa lei alcance somente indivíduos com idade inferior a 18 anos.
Estudos11,12 apontam que o desaparecimento, independentemente das circunstâncias, não afeta somente o indivíduo que vivencia esse fenômeno, mas também influencia a vida de familiares e amigos, visto que o impacto para aqueles que ficaram “para trás” pode ser profundo e sofrido. Com o desaparecimento, as famílias e amigos dedicam tempo, energia e recursos para a busca do ente desaparecido, e esse processo resulta na suspensão da vida particular e de elementos essenciais para a vivência do luto, resultando, portanto, em situações de risco, estresse e prejuízos à saúde física e mental desses familiares11.
De acordo com Canguilhem13 (p. 64) a saúde pode ser definida como “a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas”, ou seja, a possibilidade de enfrentar novas situações e a tolerância ou segurança que cada indivíduo possui para arrostar e superar as adversidades do meio, tem-se que o entendimento de aspectos que circundam a saúde mental de familiares que possuem entes desaparecidos pode auxiliar no desenvolvimento de uma postura acolhedora e empática para com aqueles que sofrem esse fenômeno, auxiliando-os na busca de tolerância e resiliência.
Dessa forma, compreender como o desaparecimento de um indivíduo pode afetar a saúde mental de seus familiares é crucial para que o cuidado prestado pelos profissionais de saúde possa ser humanizado e integral, constituindo uma postura acolhedora das singularidades que cada pessoa apresenta em sua saúde mental, após experienciar o “ser deixado para trás”.
À vista do contexto acima apresentado, e pela não identificação de estudos de revisão que tratassem da temática saúde mental de familiares de pessoas desaparecidas, objetivou-se no presente estudo analisar a saúde mental de pessoas que possuem familiares desaparecidos com base na literatura científica.

MÉTODOS
Tipo de Estudo
Trata-se de um estudo do tipo revisão de escopo (scoping review) que seguiu as recomendações do Instituto Joanna Briggs14 e do Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses Extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR)15. Realizou-se o registro do protocolo de revisão na plataforma Open Science Framework16. Assim, tem-se o seguinte registro: https://doi.org/10.17605/OSF.IO/NAQ9M.
A escolha pela revisão de escopo deu-se por tratar-se de um tipo de estudo que atende a vários objetivos como: examinar a extensão (tamanho), alcance (variedade) e natureza (características) das evidências de um determinado tema ou questão; determinar a necessidade de se realizar uma revisão sistemática, pensando em estudos futuros sobre o assunto; resumir descobertas de um corpo de conhecimento; ou identificar lacunas na literatura a fim de cooperar no planejamento e execução de pesquisas futuras14.

Procedimento Metodológico
Para o desenvolvimento do estudo, empregaram-se as recomendações publicadas no Manual de Revisão do Instituto Joanna Briggs14, o qual estabelece as seguintes etapas a serem seguidas: (1) definir o objetivo e questão da pesquisa; (2) estabelecer os critérios de inclusão e exclusão; (3) determinar a estratégia para busca e extração de dados; (4) busca, seleção e análise das evidências; (5) síntese e apresentação dos resultados.

Questão de pesquisa e critérios de elegibilidade
Para a formulação da questão de pesquisa, utilizou-se o mnemônico PCC (População, Conceito e Contexto), em que P foi definido como os familiares com entes desaparecidos, C a Saúde Mental e C como o desaparecimento de pessoas, obtendo-se como questão norteadora do estudo: O que vem sendo publicado na literatura científica sobre a saúde mental dos familiares que possuem entes desaparecidos?
Os critérios de inclusão foram definidos a partir de busca prévia de estudos primários, secundários e documentos que abordassem a temática, assim, incluíram-se estudos disponíveis na íntegra independentemente do idioma; nas bibliotecas virtuais: Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e na National Library of Medicine (PubMed), e nas bases de dados SCOPUS, Web of Science, EMBASE (Elsevier), APA PsycNet; não foi estabelecido limite temporal. Dessa forma, como critérios de exclusão têm-se os estudos duplicados, não disponíveis na íntegra e aqueles que não atendessem a pergunta de pesquisa elaborada para essa revisão.

Estratégia de Busca e Extração de Dados
Para a determinação da estratégia de busca foram escolhidos os descritores controlados do Medical Subject Headings (MeSH)17 e do Descritores em Ciências da Saúde (DeCS)17 adequados para as bases de dados mencionadas, assim como, adotaram-se também palavras-chave com o objetivo de ampliar a pesquisa e esgotar as possibilidades de busca.
Empregaram-se diferentes estratégias de busca, com o objetivo de adequar a busca às bases de dados utilizadas. O quadro 1 demonstra as estratégias elaboradas por intermédio dos descritores, palavras-chave e operadores booleanos AND e OR; apresenta o quantitativo de estudos encontrados e selecionados de acordo com a questão norteadora da pesquisa. As buscas foram realizadas nos meses de julho, agosto e setembro de 2022. A extração de dados foi realizada a partir da leitura na íntegra dos estudos selecionados.
Quadro 1 - Estratégias de busca utilizadas nas bases de dados e bibliotecas virtuais
Fonte: elaborado pelos autores

Seleção e análise das evidências
Utilizou-se o aplicativo online Rayyan Qatar Computing Research Institute – Rayyan QCRI18 para organização e seleção dos estudos.
A seleção dos artigos foi realizada por duas pesquisadoras de maneira independente, sendo que dúvidas e impasses em relação aos achados da pesquisa foram discutidos com uma terceira pesquisadora buscando-se dessa forma um consenso nas decisões sobre os estudos.
O processo de seleção se deu em três etapas. Inicialmente, foi realizada a exclusão dos artigos duplicados. Posteriormente, foi realizada a leitura dos títulos e resumos encontrados nas bases de dados com o fito de selecionar aqueles que respondiam a pergunta norteadora do estudo. Realizada essa prévia seleção, os artigos que possuíam títulos e resumos incompatíveis com o objetivo da pesquisa foram excluídos e aqueles que, preliminarmente, responderíam à questão de pesquisa, mantidos. Na terceira etapa de seleção, foi feita a leitura na íntegra dos artigos selecionados anteriormente com o objetivo de confirmar se os artigos responderiam à questão norteadora da pesquisa.
Foram identificados 820 estudos durante o processo inicial de busca. A partir da primeira análise, excluíram-se 343 estudos por duplicidade, obtendo-se 477 estudos para leitura de título e resumo. Posteriormente, duas pesquisadoras, de forma independente, realizaram a seleção dos artigos a partir da questão norteadora, dos critérios de inclusão e exclusão e da leitura na íntegra dos referidos trabalhos. Chegou-se, portanto, a 10 estudos que respondiam à pergunta de pesquisa. (Figura 1).
Figura 1 - Sistematização das etapas e resultados dos estudos incluídos na revisão de escopo
Fonte: elaborado pelos autores conforme recomendações do PRISMA-ScR, 2020.

No processo de análise das evidências, extraíram-se as informações com a utilização dos itens propostos pelo Joanna Briggs Institute16 e essas foram apresentadas de maneira sumarizada em um quadro contemplando referências, ano de publicação, idioma, país, tipo de estudo, população, objetivo, principais resultados e conclusões.
Após a identificação e sumarização dos principais resultados foi realizada análise a partir da questão norteadora do estudo e a luz da literatura científica atual. Durante essa fase, foram desenvolvidas tabelas para sistematizar os principais eixos temáticos e as contribuições de cada artigo, além de reuniões online, com três pesquisadoras para discussões acerca dos pontos de convergência e divergência entre os conteúdos dos artigos selecionados. Da análise surgiram dois eixos temáticos destacando os prejuízos à saúde mental e as estratégias de apoio aos familiares diante do fenômeno do desaparecimento.

RESULTADOS
Os 10 estudos identificados foram publicados entre os anos de 2012 e 2021, nos idiomas: inglês, espanhol, português e alemão, nos países: Alemanha (n=1), Austrália (n=1), Brasil (n=1), Itália (n=1), Países Baixos (n=3), Peru (n=1) e Suíça (n=2). Em relação ao tipo de estudo 04 caracterizavam-se como pesquisa quantitativa (01 análise de regressão, 01 análise de mediação, 01 coorte retrospectivo e 01 análise descritiva); 02 como pesquisa qualitativa (01 estudo de casos múltiplos e 01 estudo de caso); 01 documento técnico; 01 revisão de literatura; 01 estudo documental; e 01 estudo piloto. Os contextos estudados foram diversos, compreendendo: Desaparecimento geral; Desaparecimento no cenário de Migração; Conflito armado; Contexto de Violência; Guerra Civil; e Desaparecimento forçado. As características dos estudos, assim como os resultados principais estão apresentados no Quadro 2.
Quadro 2- Caracterização dos artigos incluídos na revisão de escopo
Fonte: elaborado pelos autores

DISCUSSÃO
A partir da análise dos estudos selecionados, apreenderam-se dois eixos temáticos: Os prejuízos à saúde mental de familiares que possuem entes desaparecidos; e As estratégias utilizadas e apoio encontrado para o enfrentamento do desaparecimento.


Os prejuízos à saúde mental de familiares que possuem entes desaparecidos
Os estudos demonstram que o desaparecimento do ente querido pode ocorrer em diversos contextos, dentre eles: desaparecimento no contexto de guerra, conflito armado19, situação de violência20, migração21 e em épocas de paz ou ausência de conflitos (desaparecimento geral). Os estudos apontam para a ocorrência de sofrimento mental em familiares de pessoas desaparecidas, independente do contexto em que o desaparecimento ocorreu.
O sofrimento mental manifestado, em grande parte dos estudos, está relacionado a Perda Ambígua20, 22, 23, 24, 25, 21. A teoria da Perda Ambígua foi proposta por Pauline Boss, sendo definida como “uma situação de perda pouco clara, resultante de não se saber se um ente querido está vivo ou morto, ausente ou presente”26. Desse modo, tem-se que a perda ambígua é o tipo mais estressante de perda, visto que desafia a resolução, ou seja, sua resolução configura-se como um desafio, pois diferentemente da morte, não há verificação oficial da perda, e, dessa maneira, não há a realização de rituais de apoio ao luto27. O experienciar a perda ambígua pode criar percepções confusas sobre os papéis familiares e sobre quem está dentro desse núcleo ou não26.
A perda ambígua relaciona-se a dois problemas base. O primeiro, refere-se ao problema estrutural que pode resultar da perda de um ente querido, levando-se a ambiguidade dos limites, pouca definição dos papéis familiares desempenhados, além das decisões e continuidade das tarefas diárias. O segundo, refere-se a uma questão psicológica, quando existem sentimentos de desesperança e ambivalência, que levam ao sentimento de culpa, imobilização, passividade, ansiedade e depressão26. Assim, tem-se que a perda ambígua não é apenas um fator individual, mas sim uma desordem coletiva, pois há comprometimento da natureza das relações entre o desaparecido e as pessoas que "ficam para trás"28.
Existem duas situações de perda ambígua, uma em que o indivíduo está fisicamente presente, porém psicologicamente ausente; e outra, na qual o ente querido está fisicamente ausente, porém mantido psicologicamente presente, pois é desconhecido seu status de morto ou vivo26. O desaparecimento de pessoas enquadra-se no segundo tipo citado.
Nessa perspectiva, o sofrimento mental de familiares com entes desaparecidos provém do desconhecimento e da incerteza, que provocam o sentimento de não saber o que fazer e o que pensar. Em paralelo a esse processo, a ausência da comprovação de morte impossibilita a realização de ritos de passagens para elaboração da perda, atribuição de significados, fatores importantes para o processo de luto29. A dinâmica e o desenvolvimento gradativo da família se congela, tendo como resultados a negação da perda e a manutenção da esperança.
O desconhecimento dos fatos e a incerteza podem produzir traumas, eventos não simbolizados, sendo que a expectativa do reaparecimento do ente desaparecido, por vezes, pode tornar-se “obsessiva”, dolorosa, pairando sobre a vida dos familiares, em um fenômeno denominado como “lembrança ultra presente”30, 19.
A “lembrança ultra presente” é uma memória de repetição causada pela incerteza, uma lembrança composta pela preocupação em relação ao que o ente querido possa estar passando, uma recordação coletiva e constante do desaparecimento e a esperança de um possível retorno30. Esses fatores, como apontado no estudo de Patiño e Lamego19 impossibilitam o processo de luto.
Nessa lógica, o luto não está ligado apenas à morte, seu processo relaciona-se à separação possivelmente permanente de alguém ou algo que apresenta uma grande importância afetiva31. O processo de luto é importante para o indivíduo e para sociedade e a sua elaboração muitas vezes se dá pela busca da verdade, pelos esclarecimentos, pela sensação de que a justiça foi realizada, pela atribuição de significados ao acontecimento da perda32.
Assim, os sentimentos e processo de “luto mal resolvido” estão relacionados ao conceito da “perda ambígua” referindo-se ao impedimento do processo do luto pela impossibilidade de clareza e resolução da perda26. Desse modo, tem-se o transtorno de luto prolongado, citado em diferentes estudos que compõem esta revisão de escopo20, 23, 33, 34, 25, 32, 24.
O transtorno de luto prolongado é definido como um distúrbio no qual, após a vivência de perda de um ente querido, há uma resposta de luto generalizada e persistente, a qual é acompanhada de saudade do indivíduo, preocupação constante, intensa dor emocional que se dá a partir da tristeza, culpa, raiva, incapacidade de experienciar humor positivo, além de dificuldade em se envolver e executar atividade sociais e diárias. O referido transtorno possui uma resposta de luto em um período atipicamente longo (mais de 6 meses), desse modo, a situação pode levar a prejuízo significativo no funcionamento pessoal, familiar, social, educacional e ocupacional do parente do ente desaparecido35.
Os estudos de Patiño, et al.19 e Mazzarelli, et al.21 destacam o impacto negativo que o desaparecimento ocasionou nos familiares ou amigos de pessoas desaparecidas devido à violência, ocorrendo uma maior gravidade na presença de sintomas depressivos e de luto prolongado quando comparadas a pessoas enlutadas ou com perdas confirmadas.
Outro fator identificado, em pessoas com entes desaparecidos, foi a ocorrência e qualidade dos pensamentos contrafactuais, pensamentos em geral espontâneos e recorrentes, de possibilidades alternativas para eventos que já ocorreram36. O estudo de Kennedy et al.25 identificou forte relação entre pensamentos contrafactuais e a ocorrência de sintomas de transtorno do luto prolongado, transtorno de estresse pós-traumático e sofrimento psicológico.
O pensamento contrafactual apresenta qualidades ascendentes (pensamento com possibilidades mais positivas para o fato ocorrido) e descendentes (pensamento como possibilidades menos positivas para o fato ocorrido). Kennedy et al.25 também identificou que os contrafactuais descendentes não foram associados ao sofrimento psicológico ou reações do transtorno do luto prolongado, sendo positivamente relacionados à mudanças psicológicas positivas após um evento adverso.
Além das perspectivas citadas anteriormente, estudos22, 19, 24 citam a influência do cenário econômico e social e sua relação com o sofrimento mental, uma vez que a insegurança financeira, assim como a ausência de apoio jurídico, administrativo, psicológico, psicossocial e o reconhecimento de justiça configuram-se em condições que potencializam o sofrimento emocional dos familiares.
Ademais, identificou-se a presença de sintomas físicos, como dores de cabeça, dores no corpo, quadros de insônia, sobretudo em contextos de violência, como nos casos de sequestros, guerras e contextos migratórios19, 21. A dor emocional/psíquica desencadeia também dores e alterações orgânicas apresentando como evento base desencadeador o desaparecimento do ente querido.
O estudo de Comtesse e colaboradores37 desenvolveu o “Ambiguous Loss Inventory Plus”, um inventário para avaliar reações psicológicas específicas à perda ambígua em pessoas com entes desaparecidos. O instrumento pode auxiliar na identificação das diversas reações psicológicas exacerbadas, que podem desencadear sofrimento mental, conforme destacado nos estudos incluídos na presente revisão.
O contexto de violência presenciado pelas famílias vítimas do desaparecimento forçado (tipo de desaparecimento relacionado à privação de liberdade de uma pessoa ocasionada por ações de membros ou agentes de um Estado38, 32) estão associadas a quadros de alcoolismo e ansiedade crônica³?, silenciamento, raiva, desespero, exaustão, pensamentos suicidas e alterações no apetite, além de sentimentos como impunidade32 e sensação de desproteção, perda de direitos e extrema vulnerabilidade frente ao Estado perpetrador19.
Embora diferentes estudos tenham contribuído para a compreensão dos diversos impactos à saúde mental e à vida das famílias dos desaparecidos em situações de violência como conflitos armados e guerra civil, por exemplo, nota-se a carência de estudos, principalmente nacionais, que verifiquem as implicações na saúde mental dos familiares de desaparecidos em um contexto de violência urbana.
A violência urbana, ligada por exemplo ao crime organizado, ao tráfico de drogas, às ações de milícias e muitas vezes perpetrada pela própria polícia é frequente nos centros urbanos e periferias brasileiras, atingindo com maiores proporções populações com condições socioeconômicas desfavoráveis, vulneráveis, principalmente a população negra39. Este contexto relaciona-se a processos de precarização de serviços públicos (da saúde à segurança pública), segregação, racismo estrutural, violação de direitos humanos e subversão da dignidade humana40. Como o estado brasileiro apresenta uma política específica de busca de pessoas desaparecidas, destaca-se assim a necessidade de estudos que possam abordar os impactos do desaparecimento de pessoas no contexto de violência urbana, assim como o cuidado a seus familiares.

As estratégias utilizadas e apoio encontrado para o enfrentamento do desaparecimento.
Os estudos analisados apontaram possibilidades de enfrentamento do sofrimento mental ocasionado pelo desaparecimento de um ente querido.
Nesse sentido, o estudo de Mazarelli et al.21 indicou que fatores de resiliência dos participantes, como a religião, a busca pela pessoa desaparecida, a presença de laços familiares e a continuação do projeto migratório na busca de melhores condições de vida, auxiliaram os participantes no enfrentamento do sofrimento que sentiam.
Destaca-se também a atenção que deve-se ter a fatores de proteção, os quais podem influenciar o processo de luto e a saúde mental dos indivíduos. Assim, um fator de proteção que tem sido estudado é a autocompaixão, a qual pode ser definida como um conjunto de atitudes que promovem uma abertura da pessoa ao sofrimento vivenciado, compreendendo-o como inerente à experiência humana. A autocompaixão evita uma autocrítica severa e permite o desenvolvimento dos sentimentos de bondade e auto-respeito41, 23.
O estudo de Lenferink et al.23 buscou relacionar as associações entre autocompaixão e níveis de luto prolongado, depressão e transtorno de estresse pós-traumático entre pessoas confrontadas com o desaparecimento de um ente querido. Lenferink et al.23 por meio de um estudo correlacional, identificaram significativa e negativa associação entre a autocompaixão e a ocorrência de depressão, transtorno de estresse pós-traumático e luto prolongado. Os resultados do estudo sugerem que pessoas com atitudes de mais autocompaixão são menos propensas a manifestar pensamentos ruminantes relacionados ao desaparecimento do ente querido, atenuando a ocorrência de psicopatologias como a depressão e o transtorno do estresse pós-traumático.
Foram identificados também estudos que tratavam da organização de intervenções e programas voltados ao atendimento de familiares com entes desaparecidos24, 38.
O estudo de Andersen et al.24 apresentou um programa desenvolvido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha no Sri Lanka para atendimento de familiares de pessoas desaparecidas, por meio de um acompanhamento nas dimensões jurídicas, administrativas e psicossociais, objetivando apoiar e fortalecer esses familiares na retomada de suas vidas.
As intervenções realizadas contemplaram: 1) realização de visitas domiciliares individuais e encaminhamentos aos serviços da rede de apoio; 2) oito sessões de grupos de apoio que objetivaram a conceituação, identificação e reconstrução do sistema familiar, refletindo sobre o conceito de perda ambígua, reações esperadas e mecanismos de enfrentamento a partir do contexto social e cultural de cada família; e 3) ações de envolvimento e apoio da comunidade local24.
O estudo de Andersen et al.24 identificou significativa diminuição de níveis de ansiedade, depressão, sintomas somáticos e melhora da funcionalidade entre familiares de pessoas desaparecidas que participaram das atividades do programa e relacionam ao fato do mesmo ser organizado a partir de atividades de grupo de pares, ou seja, pela participação de pessoas das comunidades locais, de familiares que já haviam sido atendidos no programa, o que permitiu uma maior vinculação, empatia, identificação e acolhimento para com os familiares que estavam sendo apoiados, rompendo com o isolamento social dos mesmos.
As experiências relatadas por Andersen et al.24 destacam o envolvimento dos indivíduos e das comunidades no desenvolvimento de atividades de cuidado mais ativas e coletivas, enfatizando a importância da vivência coletiva da experiência do luto. Essa perspectiva corrobora com a reflexão feita por Rente e Merhy42 sobre as dificuldades de nossa sociedade contemporânea em lidar com o luto, desvalorizando rituais, processos de passagem, e como o contexto da Pandemia COVID-19 manifestou a necessidade de valorização do caráter coletivo da vivência do luto e dos processos para sua elaboração, fatores também destacados em outro estudo29, 43.
No Peru, o Ministério da Saúde, levando em consideração o período de violência vivenciado entre 1980 e 2000, que causou importantes impactos psicossociais na vida da população peruana, lançou em 2012 um documento técnico com o objetivo de fornecer ferramentas metodológicas à profissionais de saúde para acompanhamento individual, comunitário e social de familiares de pessoas desaparecidas em contexto de violência armada38. Apesar de citar que o objetivo foi fornecer ferramentas metodológicas, a análise do documento fornece diretrizes para o desenvolvimento de um programa específico voltado para o atendimento de familiares de pessoas desaparecidas que deverá ser desenvolvido em postos e centros de saúde e que contará com equipe treinada e capacitada no atendimento psicossocial, identificando também os casos de pessoas que necessitam de atendimento em saúde mental mais específico.
Ademais, o estudo de Hofmeister et al.22 indica a contribuição da ação forense (reconhecimento de corpos) para o enfrentamento das adversidades vivenciadas pelos familiares de pessoas desaparecidas. Dessa forma, tem-se que o foco da ação forense concentra-se no indivíduo desaparecido e seus familiares; os atos, portanto, são empregados de modo a possibilitar: (1) a manutenção da dignidade humana do indivíduo desaparecido, oportunizando assim, o seu reconhecimento e desfecho; e (2) aliviar o sofrimento de parentes, viabilizando a vivência do luto e o encerramento de ciclos.
À vista do exposto, são diversas as estratégias que podem ser empregadas para apoio e enfrentamento do desaparecimento de um querido por familiares. A importância dessas ações pauta-se em construir possibilidades para que os familiares encontrem meios de retornar às atividades diárias e sociais, isto é, para que a sua atenção e vivência sejam voltados para a vida presente e valorização própria. Tais estratégias visam a compreensão do fenômeno do desaparecimento na vida de seus familiares e a busca pelo restabelecimento dos papéis desempenhados no núcleo familiar.

LIMITAÇÕES
Considera-se como limitação do estudo a impossibilidade de acessar alguns estudos na íntegra, pela indisponibilidade de acesso livre em algumas bases de dados utilizadas, os quais poderiam compor informações relevantes para o tema estudado.

CONCLUSÕES
Com esta revisão de escopo, foi possível compreender que o sofrimento experienciado pelos familiares de entes desaparecidos pode ser profundo, complexo, diverso e com repercussões na saúde mental desses indivíduos. Nessa perspectiva, torna-se importante o reconhecimento das necessidades de saúde mental dessa população, bem como o emprego de estratégias que possibilitem o enfrentamento desses problemas, além de circunstâncias que oportunizem o acesso e a continuação dessas ações. Pesquisas futuras são necessárias para compreender a trajetória desses familiares na rede de saúde e o papel da enfermagem no auxílio a essas pessoas.

RELEVÂNCIA PARA A PRÁTICA CLÍNICA
A presente revisão contribui para o conhecimento acerca do impacto que o fenômeno do desaparecimento pode causar na saúde mental de pessoas com entes queridos desaparecidos, abordando também estratégias e experiências de cuidado, realizadas em diferentes países. O conhecimento produzido poderá auxiliar profissionais de saúde e também dirigentes de políticas públicas de saúde e sociais, na organização de programas para prestação de cuidados às pessoas que vivenciam o fenômeno do desaparecimento.

REFERÊNCIAS

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Legramante, Y.Y.S, Oliveira, P.S, Araujo-Betetti, P.N, Santos, F.L, Santos, K.S, Fortuna, C.M. Um olhar sobre a saúde mental de familiares com entes desaparecidos: scoping review. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/ago). [Citado em 23/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/um-olhar-sobre-a-saude-mental-de-familiares-com-entes-desaparecidos-scoping-review/19370?id=19370

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