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Artigos

0415/2023 - Concepções de deficiência de profissionais de saúde em formação e em exercício: um estudo qualitativo
Conceptions of disability among health professionals in training and in practice: a qualitative study

Autor:

• Daniela Virgínia Vaz - Vaz, D. V. - <danielavvaz@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0470-6361

Coautor(es):

• Regiane Lucas de Oliveira Garcês - Garcês, R. L. de O. - <regianelucasgarcez@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0620-6566

• Hiane Aparecida Silva - Silva, H. A. - <hianeaparecida200@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1877-6945

• Luciana Alves Drumond Almeida - Almeida, L. A. D. - <lucianadrumondalmeida@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6081-3968



Resumo:

Profissionais de saúde tem considerável poder para influenciar o conhecimento e a resposta pública à deficiência a partir de suas concepções próprias. Este artigo investigou concepções de deficiência de trinta profissionais em formação ou em exercício, de quatorze profissões da saúde, por meio de entrevistas individuais. Foram elaboradas, por um comitê de especialistas, 34 afirmativas representativas de perspectivas religiosa/moral, médica, social e afirmativa da deficiência. Os entrevistados justificaram seu posicionamento diante de cada afirmativa, revelando a coexistência de compreensões que referentes tanto às perspectivas médicas quanto sociais da deficiência. Foi frequente o argumento de que impedimentos corporais são determinantes de desigualdades sociais e que práticas de saúde devem buscar a normalização do indivíduo, e também apontada a necessidade de mudança social para remoção de barreiras, inclusão e garantia de direitos. Emergiram, em poucas justificativas, críticas a ideologias individualizantes e processos sociais produtores de desigualdade. Foram frequentes as interpretações morais e/ou religiosas. A compreensão da deficiência enquanto fenômeno complexo e multidimensional permanece limitada, revelando a necessidade de atenção à formação profissional.

Palavras-chave:

Pessoas com Deficiência, Estudos sobre Deficiências, Discriminação Social, Pessoal de Saúde

Abstract:

Health professionals wield significant influence over public knowledge and responses to disability, based on their own conceptions. This study aimed to examine the conceptions of disability among thirty professionals in training or practice, representing fourteen distinct health professions, through individual interviews. A committee of experts developed thirty-four representative statements encompassing religious-moral, medical, social, and affirmative perspectives on disability. The participants provided justifications for their positions on each statement, unveiling a coexistence of understandings that encompassed both medical and social perspectives on disability. A recurring argument emphasized bodily impairments as the origin of social inequalities, advocating for health practices that aim to normalize individuals. Simultaneously, the need for societal transformation to dismantle barriers, foster inclusion, and ensure rights was also acknowledged. Some justifications critically addressed ideologies that individualize disability and social processes that contribute to inequality. Moral and/or religious interpretations were frequently used by the participants. However, the study highlighted the limited comprehension of disability as a complex and multidimensional phenomenon, indicating a pressing need for enhanced attention to professional training in this area.

Keywords:

Disabled Persons, Disability Studies, Social Discrimination, Health Personnel

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
As concepções de deficiência de profissionais de saúde, operadores importantes do acesso das pessoas com deficiência a diferentes serviços e benefícios, podem ter impacto social muito importante. Estes profissionais têm considerável poder para influenciar a linguagem, o conhecimento e a resposta pública e institucional à deficiência¹. Pela Lei Brasileira de Inclusão², considera-se pessoa com deficiência "aquela que apresenta impedimento de longo prazo, o qual, em interação com barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas”. Em que medida concepções de profissionais em formação e em exercício se afastam ou se aproximam desta definição? Este estudo original buscou identificar concepções de deficiência articuladas por estudantes e profissionais da saúde, relacionando-as às principais perspectivas explicativas da deficiência identificadas na literatura dos Estudos da Deficiência (Disability Studies)1,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,21.
A mais antiga perspectiva de compreensão da deficiência é a religiosa ou moral, extremamente prevalente no mundo todo 3,4,5. Suas influências, embora sutis, ainda são pervasivas5. Nessa perspectiva, a deficiência é vista como provação de interpretação ambígua: experiência especial de ensinamento e missão nobre de vida e também punição por alguma conduta moralmente reprovável. As pessoas com deficiência ora são vistas como excepcionais e elevadas, ora como desafortunados objetos de pena (que implica tanto compaixão quanto menosprezo). Graça e redenção podem promover a restauração da normalidade3,4. A perspectiva moral interpela o dever moral da caridade. Porém, se por um lado ela foi responsável pela criação de instituições de proteção (segregada), por outro, a institucionalização caritativa da deficiência foi crucial para o fortalecimento dos discursos de invalidez e incapacidade5.
A partir do século XVI, com o desenvolvimento da medicina, as várias formas de deficiência começaram a ser explicadas por anormalidades físico-biológicas5. Na perspectiva médica todas as experiências negativas da deficiência decorreriam de uma característica corporal negativa – alguma lesão, falta, falha ou disfunção – que impediria o desempenho adequado em tarefas importantes do dia-a-dia, levando a desvantagens sociais22. A deficiência é julgada como um déficit ou perda inerente, uma questão de azar ou tragédia pessoal3,4,6. A solução para tal infortúnio está nos tratamentos médicos curativos e reabilitadores que buscam a normalidade e preparam os indivíduos para atender demandas sociais6,7,8,23.
Já na segunda metade do século XX, pessoas com deficiência se articulam politicamente e levantam sérios questionamentos à concepção médica, dando origem ao modelo social da deficiência. Nesta perspectiva, a deficiência é explicada não por causas individuais, mas sociais: são os arranjos coletivos hostis à diversidade que produzem as situações de deficiência. O modelo social julga a deficiência como um sistema de opressão que incide sobre pessoas com certas diferenças corporais. Neste sentido, deficiência não é algo que o indivíduo tem, mas que lhe é imposto pelas estruturas sociais injustas e excludentes. A solução, portanto, está na luta por reforma social e garantia de direitos.
O modelo social abriu pontos de vista que permitiram a valorização das diferenças corporais e funcionais de pessoas com deficiência. Na perspectiva afirmativa essas diferenças, ao contrário de aberração ou tragédia, são parte integral da diversidade humana, maneiras únicas de estar no mundo, e podem ser fruto de orgulho, dignidade e riqueza pessoal9,24,25. Alguns indivíduos rejeitam a cura como solução: eles querem é que se modifiquem as pessoas, valores e recursos ao redor, incluindo atitudes de profissionais de saúde, para que as diferenças sejam celebradas26.
Estas quatro vertentes explicativas não são necessariamente antagônicas ou irreconciliáveis. Na realidade, elementos das perspectivas moral/religiosa, médica, social e afirmativa frequentemente se misturam e originam concepções individuais às vezes consolidadas, às vezes incertas, ambíguas ou conflitantes, o que reflete a natureza complexa do fenômeno da deficiência27,28. Assim, a compreensão das concepções individuais deve considerar o contexto histórico e político, bem como a maneira que seus elementos interagem colocando as diferentes vertentes explicativas em perspectiva e desestabilizando o sentido da deficiência27,28.
Se convidados a se posicionar e justificar seu posicionamento sobre um tema complexo, os indivíduos se veem encorajados a processar cognitivamente as suas experiências pessoais e os seus contextos culturais para comunicar suas interpretações e buscar entendimento mútuo29,30. Assim, ao serem indagados sobre crenças e definições (muitas vezes até então inarticuladas) sobre a deficiência, estudantes e profissionais de saúde podem expressar certezas, bem como questionar visões antes não questionadas, ou ainda, se confrontar com dúvidas, imprecisões, tentativas de redefinição, típicas do processamento de conceitos.
Desse modo, com o objetivo de captar essas as diferentes nuances, exploramos um conjunto de afirmativas representativas de distintas concepções de deficiência, convidando estudantes e profissionais de saúde a justificar sua concordância ou discordância com cada uma delas de modo a refletir sobre diferentes percepções. Dado o impacto das concepções sobre deficiência na atuação desses profissionais de saúde, utilizamos uma combinação de métodos qualitativos com o objetivo de investigar de maneira inédita as concepções de deficiência de profissionais em formação e em exercício. Os conteúdos identificados nas entrevistas foram discutidos à luz das diretrizes nacionais e internacionais que atualmente orientam a assistência à saúde de pessoas com deficiência.
MÉTODOS
Delineamento do estudo
Foi realizado um estudo qualitativo que buscou entrevistar estudantes e profissionais de 14 profissões da saúde, com entrevistas individuais mistas (estruturadas e semiestruturadas). As profissões alvo eram medicina, odontologia, psicologia, enfermagem, educação física, fonoaudiologia, nutrição, medicina veterinária, farmácia, terapia ocupacional, gestão de serviços de saúde, biomedicina, tecnologia em radiologia e fisioterapia. Como referencial teórico, o estudo utilizou a teoria do agir comunicativo29,30 e para a sistematizar os dados, a análise de conteúdo conforme Bardin31, um conjunto de técnicas de pesquisa cujo objetivo é codificar os principais significantes textuais que, agrupados, revelam sentidos e padrões relacionados aos valores e ideias acerca da deficiência. A coleta de dados ocorreu de agosto a dezembro de 2020. Todos os procedimentos deste estudo foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (CAAE: 09674819.9.0000.5149). O relato deste trabalho atende a todos os critérios do Standards for Reporting Qualitative Research32.
Participantes
Foram selecionados estudantes e profissionais da área da saúde, residentes em Minas Gerais. A amostragem intencional foi direcionada para alcançar a variação máxima de áreas da saúde, entre estudantes e profissionais, usando uma abordagem de bola de neve: os participantes iniciais foram contatados por indicação de conhecidos via WhatsApp (HAS) e os demais indicados pelos primeiros entrevistados. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), concordando em participar. Além disso, permitiram a gravação de voz e transcrição das entrevistas, com manutenção do anonimato. Foram selecionados 30 voluntários, sendo 18 estudantes (6 homens e 12 mulheres, uma delas pessoa com deficiência) com idade média de 21,5 (±2,64 anos), e 12 profissionais da área da saúde (6 homens e 6 mulheres), com idade média de 27,25 (±4,34) anos. Dos 30 participantes, 18 se declararam brancos (60%), 10 pardos (33,33%) e 2 pretos (6,66%), e 11 relataram conviver com pessoas com deficiência (36,6%). Para todas as profissões foram incluídos pelo menos 1 estudante e 1 profissional, exceto radiologia (1 estudante apenas) e fisioterapia (2 estudantes apenas). A maioria dos participantes não conhecia os autores do estudo. Os autores não tinham qualquer tipo de relação de supervisão, ensino ou autoridade sobre os participantes.
Procedimentos
A exemplo de Mackenzie et al.33, em uma primeira etapa foi constituído, por meio de convites das pesquisadoras, um painel de ativistas dos direitos das pessoas com deficiência e especialistas ligados aos Estudos da Deficiência. Ao todo, foram 8 pessoas com deficiência e 4 sem deficiência, sendo 9 acadêmicos de áreas diversas do conhecimento (Sociologia, Comunicação Social, Direito, Educação, Letras, Libras) e 3 ativistas. O painel avaliou frases coletadas pelas pesquisadoras na literatura nacional e internacional1,3,4,5,6,8,9,10,11,12,13,14,15,16,17,18,19,20,21 com o objetivo de adaptá-las para compor um banco de frases representativo das diferentes perspectivas de deficiência no contexto brasileiro18. O procedimento resultou na definição de 34 frases (descritas nas Tabelas 1 a 4) que expressam elementos das perspectivas moral/religiosa, médica, social e afirmativa.
Nas entrevistas individuais os participantes foram convidados a definir seu posicionamento sobre cada afirmativa em uma escala linear variando de 1 (discordo completamente) a 5 (concordo completamente). A ordem de apresentação das afirmativas foi definida por um sorteio, e mantida a mesma para todos os participantes. Em seguida a cada resposta de de grau de concordância, os participantes foram solicitados a justificar seu posicionamento. As respostas transcritas de todos os participantes foram organizadas em uma planilha, de modo a permitir comparações entre as respostas de todos os entrevistados, por grau de concordância.
As entrevistas foram realizadas por uma discente do curso de Fisioterapia da Universidade Federal de Minas Gerais, que foi previamente treinada pela equipe para que conduzisse as entrevistas sem interferir na opinião dos participantes. As entrevistas ocorreram durante a pandemia da COVID-19, por meio de reuniões virtuais que foram gravadas pela plataforma digital Zoom, com identificadores anônimos atribuídos por HAS. Os registros do grau de concordância ou discordância foram feitos em um formulário eletrônico simultaneamente à entrevista. O áudio com a argumentação dos participantes para justificar seu posicionamento foi transcrito e revisado por HAS.
Análise
Para a definição do corpus de análise foram primeiramente realizadas leituras exploratórias, com o objetivo de identificar, para todas as 34 afirmativas, o grau de concordância e discordância e as justificativas explicitadas para cada posicionamento. Foram preteridas as falas que não consistiam em uma descrição de razões para o posicionamento em relação a afirmativa apresentada ao participante (por exemplo, apenas repetiam a afirmativa). Em seguida, foram identificadas recorrências dos argumentos e selecionados argumentos exemplares utilizados para justificar as opiniões dos participantes. Esta análise foi realizada por LADA (doutora em sociologia) e HAS (discente da fisioterapia). As justificativas usadas pelos participantes foram interpretadas à luz da literatura dos Estudos da Deficiência. A análise foi realizada por LADA, HAS, RLG (doutora em comunicação social) e DVV (doutora em psicologia experimental) de maneira reflexiva, por meio de discussões e questionamentos de suposições estabelecidas. A partir dessa análise, foram feitas descrições dos resultados obtidos, incluindo as porcentagens por grau de concordância e as justificativas exemplares para cada afirmativa, utilizando expressões usadas pelos participantes sinalizadas entre aspas duplas. Por fim, os dados obtidos foram examinados e discutidos à luz da literatura e do conhecimento e experiência das autoras.
RESULTADOS
As porcentagens por grau de concordância e justificativas exemplares para concordar ou discordar de cada frase estão apresentadas nas Tabela 1 a 4. De maneira geral, os posicionamentos dos entrevistados sobre frases representativas da perspectiva moral/religiosa (Tabela 1) foram bem distribuídos, com leve predominância de concordância. Nenhuma afirmativa provocou mais de 40% de discordância. Duas das afirmativas obtiveram 50% ou mais de concordância: a que atribui uma missão especial ou exemplar de vida às pessoas com deficiência e a que afirma que Deus escreve certo por linhas tortas. Em geral, através de suas justificativas, os entrevistados interpretaram a deficiência como uma condição geradora de “insuficiência”, escolhida em justa medida para quem a possui, necessária para o aprendizado da própria pessoa com deficiência e das outras no seu entorno, e que precisa ser superada pelo indivíduo com ajuda da caridade. A existência de pessoas com deficiência foi também interpretada como um meio de que as pessoas reconheçam o privilégio que possuem e que sejam mais gratos pela sua saúde e “perfeição”. Contrapontos incluíram afirmar que não há nada exemplar em uma pessoa com deficiência fazer atividades básicas do dia-a-dia, ou que a deficiência pode ser atribuída ao acaso ao invés de um propósito maior. Houve também críticas de viés politizado: a visão de pessoas com deficiência como “anjos” com missão especial, alvos de “castigo divino”, objetos de pena, ou instrumentos para a que outras se tornem melhores foi considerada redutiva, inferiorizante e “capacitista”. No lugar de iniciativas de caridade, os participantes apontaram a necessidade de responsabilização do estado e de reforma social.
Em relação às afirmativas de perspectiva médica (Tabela 2), a maior parte foi endossada pelos entrevistados. Seis das nove afirmativas obtiveram índices de concordância variando entre 56% e 80%. Nas justificativas exemplares, a deficiência foi interpretada como um fenômeno evidentemente indesejado por todos, que decorre de problemas que incidem sobre o corpo, que depende de definição médica para sua legitimação, e que diferencia as pessoas com deficiência das demais por suas “limitações” e “dificuldades”. A diferenciação entre casos “extremos”, “totalmente incapacitantes”, de outros casos considerados “mais brandos” foi apontada como um fator que pode comprometer a qualidade de vida. A possibilidade de cura e de impedir a existência de deficiências por meio da ciência foi bem-vista pela maioria, sendo, segundo um participante, um meio de tornar as pessoas mais iguais, avançando assim na solução do “problema do mundo”. Apenas três afirmativas não obtiveram mais de 50% de concordância. Dos participantes, 46% afirmaram que as deficiências precisam ser tratadas, para garantir a sobrevivência, seja como forma de cuidado paliativo, ou para serem “minimizadas” ou “revertidas”. Uma minoria dos participantes concordou com a necessidade de reabilitação para ajustamento às demandas sociais ou com a necessidade buscar a normalidade, argumentando que “infelizmente” esta é a condição de aceitação em uma “sociedade padronizada” e que qualquer pessoa que lute contra a deficiência tem a “pessoa saudável” como ideal.
Entre os motivos para discordar das afirmativas médicas, usados por uma minoria de participantes, figuraram argumentos de que a deficiência é indesejável, porém não é trágica se houver recursos, que a diferença de pessoas com deficiência para as demais está na maneira como são tratadas e nas oportunidades acessíveis a elas, que tratamentos só devem ser feitos se desejados e que deficiência não é doença, portanto não precisa de cura ou de esforço para a correção, mas sim aceitação das diferenças e inclusão. Para alguns participantes, é a sociedade que “precisa de reabilitação” e o avanço científico deve promover o acesso ao invés da eliminação das deficiências.
As afirmativas do modelo social (Tabela 3) também tiveram expressiva adesão dos participantes. A concordância foi maior do que a discordância ou neutralidade em 10 das 12 afirmativas. A necessidade de mudança social para inclusão e garantia de direitos para pessoas com deficiência foi endossada por 96% e rejeitada por 0% dos entrevistados, e 86% concordaram que a qualidade de vida é mais afetada por obstáculos sociais do que por impedimentos corporais. Em geral, os participantes argumentaram que barreiras ambientais podem agravar situações de deficiência, que dificuldades enfrentadas em ambientes não inclusivos são injustas e configuram violação de direitos, que a exclusão pode ser mais incapacitante que os impedimentos corporais e que a própria pessoa com deficiência é quem deve avaliar se a sua condição é boa ou ruim. Entre as razões para discordar da perspectiva social, os participantes apontaram que alguns tipos de impedimentos, por exemplo de natureza mental, podem ser inerentemente negativos e limitantes, causando sofrimento significativo, que a correção ou cura podem ser desejadas e promover melhor qualidade de vida, que algumas incapacidades graves não podem ser minoradas por garantias sociais, e que pessoas com deficiência já conquistaram igualdade formal de direitos. Duas afirmativas foram rejeitadas por mais da metade dos participantes, que argumentaram que a deficiência é um fato anterior e independe de escolhas e arranjos sociais, sendo os processos de exclusão social consequência, e não causa, deste fato. Os posicionamentos foram bem distribuídos em relação à definição da deficiência como restrição de participação ou como algo que varia entre diferentes culturas.
Quatro das oito frases da perspectiva afirmativa (Tabela 4) obtiveram mais de 50% de concordância. Em geral, através de suas justificativas, os entrevistados apontaram que todos somos susceptíveis a nos tornar pessoa com deficiência ou a conviver com alguém que tem deficiência, que todos temos fragilidades ou dificuldades como as pessoas com deficiência, que ser uma pessoa com deficiência pode ser fonte de orgulho na medida em que houver superação das dificuldades que ela impõe, e que a existência da deficiência é valorosa para o mundo como fonte de inspiração e motivação. Como contrapontos, os entrevistados argumentaram que orgulho e felicidade não estão na deficiência, mas na sua cura, tratamento ou superação, que a deficiência não é parte natural da vida de todos por ser ocultada socialmente, e que seria ideal sermos todos iguais, sem deficiência. Para o restante das frases, os posicionamentos foram bem distribuídos. Os argumentos usados apontam para o fato de que todos, tendo deficiência ou não, precisam de ajuda de outros e de que é necessário demarcar quem é ‘pessoa com deficiência’, entendida como categoria médica e política, para que haja garantia de direitos específicos, que poderiam ser prejudicados sem essa demarcação.
DISCUSSÃO
Este estudo investigou as concepções de deficiência de 30 entrevistados, tendo como referência a definição da LBI, elaborada a partir da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas34. Estados que ratificaram a Convenção se responsabilizaram por “realizar atividades de formação…de modo a conscientizar os profissionais de saúde acerca dos direitos humanos, da dignidade, autonomia e das necessidades das pessoas com deficiência”34. Tanto a Convenção quanto a LBI promovem a ideia de que deficiência não se resume aos impedimentos do corpo, pois é o resultado negativo da interação de um corpo com impedimentos com ambientes sociais pouco sensíveis à diversidade das pessoas9. A deficiência é uma questão de desigualdade de participação social plena, decorrente das barreiras impostas à indivíduos com determinados impedimentos corporais35. Assim, as desvantagens sociais frequentemente vividas por pessoas com deficiências não são naturais ou inerentes aos contornos do corpo, mas resultado de valores, atitudes e práticas que discriminam o corpo com impedimentos9.
Conforme antecipamos, nossa análise das justificativas dos entrevistados revelou a coexistência de compreensões que envolvem diferentes perspectivas da deficiência. Por exemplo, enquanto a definição de deficiência como restrição desigual de participação teve relativa aceitação, emergiu também com frequência a concepção de impedimentos corporais como origem de desigualdades entre pessoas, sendo sua cura uma forma de buscar a redução do “problema do mundo”. De forma geral, houve grande adesão dos entrevistados tanto a elementos biomédicos quanto a elementos sociais da deficiência. Emergiram, em uma minoria de justificativas, críticas a ideologias individualizantes da deficiência e processos de exclusão. Ficou clara também a assimilação da deficiência como uma determinação moral e/ou religiosa em boa parte das justificativas. Isso sugere que um contexto sócio-histórico onde a legislação contempla componentes sociais da deficiência e onde as próprias pessoas com deficiência passam a ter mais oportunidades de expressar suas capacidades pode ter tensionado perspectivas mais tradicionais, como a médica e a moral/religiosa27.
Entretanto, a perspectiva médica ainda parece ter hegemonia entre profissionais de saúde4,10,11,12,13,36,37,38, apesar dos esforços da Organização Mundial para divulgar e implantar universalmente a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF – há mais de 20 anos40. A CIF desafia o modelo médico ao incorporar uma compreensão interacionista dos mediadores sócio-políticos e biomédicos da deficiência7,39,40. No Brasil, a Resolução 452 do Conselho Nacional de Saúde41 determina que a CIF seja utilizada no Sistema Único de Saúde e como ferramenta pedagógica na elaboração de programas educacionais. Porém, enquanto é possível encontrar bastante literatura sobre o uso da CIF na formação de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais42,43,44,45, isso é raro para outras profissões na área da saúde. Permanecem muito comuns, portanto, concepções de que impedimentos corporais implicam naturalmente em desigualdades sociais, confundindo-se com estas, sendo assim “logicamente” indesejados39. Na visão da maior parte dos entrevistados, as práticas de saúde devem prevenir, reparar ou reverter sinais de anormalidade a fim de garantir a todas as pessoas um padrão de funcionamento típico à espécie23,46, compatível com preceitos morais de produtividade e adequação às normas sociais9, numa sociedade “infelizmente” “padronizada”. Quanto mais fiel ao simulacro da normalidade, maior o sucesso da medicalização dos impedimentos9. Parece evidente, portanto, conforme um das justificativas exemplares, que “toda pessoa que luta contra a deficiência é para tentar se tornar o mais próximo possível de uma pessoa saudável, que não possui deficiência.”
Apesar disso, afirmativas da perspectiva social tiveram grande aceitação. Esta perspectiva se tornou popular no país com mudanças culturais ao longo de várias décadas impulsionadas pelo ativismo das próprias pessoas com deficiência em diferentes instâncias14. A presença cada vez maior dessas pessoas nas escola, universidades e mercado de trabalho em função das políticas de cota e inclusão; a participação das pessoas com deficiência em instâncias políticas, como os conselhos e conferências de direitos48; e a repercussão cada vez maior de suas lutas por meio de diversas plataformas da internet; são elementos que devem ser considerados essa mudança da cultura política em relação à deficiência. Um estudo da mídia brasileira de massa impressa entre 1960 e 2008 revelou amplas transformações15 como resultado dessas lutas. Até 1980, a deficiência foi predominantemente enquadrada como um problema individual que deveria ser enfrentado com obras de caridade e tratamentos médicos. A partir de 1980, no entanto, os enquadramentos de direitos humanos, acessibilidade, participação social e qualidade de vida ganharam influência, transferindo para a sociedade como um todo a responsabilidade pelo enfrentamento das questões relacionadas à deficiência15.
Assim, a aceitação de perspectivas sociais entre os participantes pode ser interpretada como sinal do progressivo reconhecimento social das pessoas com deficiência por meio de uma 'aprendizagem coletiva' à medida em que diferentes percepções foram sendo tensionadas15. Ou seja, parece ter havido uma generalização de valores e conhecimentos acumulados que proporcionaram aos indivíduos entrevistados pré-interpretações internalizadas em graus variados como senso comum49. Conforme as diferentes justificativas oferecidas, no entanto, a aceitação de preceitos sociais parece ter sido superficial, sem integração em uma síntese multidimensional que considere concepção de deficiência explicitada tanto na Convenção quanto na LBI e na CIF39. Por exemplo, a deficiência ainda foi interpretada como um fato natural, anterior aos arranjos sociais47. Reiteradamente, os entrevistados afirmaram que a desigualdade (as restrições de participação social, por exemplo) não provocam ou constituem a deficiência, mas apenas decorrem dela. Além disso, o ideal de padronização dos indivíduos através das intervenções de saúde23,46, expresso com frequência, subentende localizar e reduzir desigualdade às diferenças.
Foram comuns visões moralizantes da deficiência, que podem ser compreendidas de duas perspectivas. Primeiro, há um reforço da moralidade da eficiência50 ao relacionar deficiência à “insuficiência”, “dificuldade”, “incapacidade”, ou “fragilidade” que “ninguém quer”, ou “fica feliz em ver”. A esfera do trabalho e do desempenho é uma das grandes definidoras da hierarquia moral que se configurou na modernidade, responsável por definir o que tem valor51. Desse modo, a deficiência estaria associada a algo negativo, que não contribui para as expectativas sociais do mundo da produtividade. Segundo, há uma moralidade herdeira da religiosidade que relaciona deficiência a algo justo e necessário para a realização de uma missão de exemplo de vida e aprendizado: para quem as vivencia, de “superação”; para os outros, de “inspiração”, gratidão por serem “perfeitos” e oportunidade de praticar “ajuda”. A atribuição da deficiência a uma razão maior também se ancora na ideia de que há valor na deficiência pois ela é capaz de contribuir com a sociedade trazendo inspiração, gratidão e pessoas melhores.
Historicamente, a contestação da narrativa moral e/ou religiosa pela narrativa biomédica foi recebida como um passo importante para a garantia da igualdade52,53. Mais tarde, a crítica social deslocou o tema da deficiência do nível do indivíduo para a sociedade, do infortúnio para a justiça, da natureza para a política16. Alguns poucos participantes expressaram críticas desta natureza, julgando a visão moralizante como preconceituosa, e apontando a necessidade de responsabilizar o estado e reformar a sociedade. Enquanto isso, frases da perspectiva afirmativa foram ora contestadas, ora aceitas como meio para reafirmar perspectivas morais/religiosas. Por exemplo, a ideia de que a deficiência possa ser fonte de felicidade, orgulho e realização pessoal foi tanto negada quanto endossada com a mesma justificativa de que esses sentimentos seriam possíveis em função da superação da própria deficiência. No material analisado, a autorrealização só seria possível se consideradas as contribuições possíveis da deficiência à sociedade como algo útil e não como uma característica em si mesma. A existência das diferenças corporais ou mentais das pessoas com deficiência no mundo foi valorada positivamente como algo que “serviria de modo motivacional” e também negativamente como um problema que “ninguém gosta de ter” e que nos torna desiguais. O equacionamento entre diferenças e desigualdades foi bastante comum, revelando uma compreensão reducionista e naturalizadora das complexas e injustas dinâmicas político-sociais.
As concepções expressas por profissionais de saúde revelam a necessidade de crítica e atenção à formação, dado que podem constituir facilitadores ou barreiras para os cuidados de saúde de indivíduos com deficiência10,12,13,17,19. As práticas de cuidado estão, na realidade, muito aquém das diretrizes comprometidas com a inclusão e as mudanças atitudinais e culturais sobre esta população. Uma pesquisa da Organização Mundial de Saúde constatou que as pessoas com deficiência foram duas vezes mais propensas a achar as habilidades e equipamentos dos profissionais de saúde inadequados para atender às suas necessidades; tiveram três vezes mais chances de ter o cuidado negado; e quatro vezes mais probabilidade de serem maltratadas pelos prestadores de serviços17,54. Especulamos, em concordância com Andrada18 que na raiz deste problema estão, fundamentalmente, barreiras ideológicas. Parte das dificuldades em implementar ações verdadeiramente inclusivas de cuidado reside na resistência de concepções da deficiência como “tragédia pessoal”, comuns na área da saúde17. A difusão de uma compreensão da deficiência enquanto fenômeno complexo, de natureza multidimensional (biológica, psicológica e social) permanece limitada tanto na produção acadêmica brasileira18 quanto na formação universitária de cursos da saúde nacional e internacionalmente12,13, quanto no discurso dos entrevistados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo é inerentemente limitado em relação à profundidade da investigação das concepções dos entrevistados, dado o formato de entrevista, única e breve, baseada na formulação de justificativas para o grau de concordância com afirmativas pré-definidas. Outros formatos de entrevista poderiam ter elucidado em maior profundidade a intercessão entre perspectivas elaboradas na interação do indivíduo com sua cultura, sua história de vida, e sua formação universitária. No entanto, os resultados confirmam achados anteriores relativos às concepções de profissionais de saúde4,10,11,12,13,55. Acreditamos que uma abordagem complexificada da deficiência na formação profissional - conforme a produção do campo dos Estudos da Deficiência - tem o potencial evidenciar falhas na proteção e promoção dos direitos das pessoas com deficiência no cuidado à saúde e gerar mudanças concretas. Para um aprendizado abrangente e integrado, estudiosos do campo sugerem que formar parcerias autênticas com pessoas com deficiência – tanto como estudantes da saúde ou como experts com os quais os profissionais possam aprender – pode ser o tipo de formação mais transformadora17,19. Encorajar estudantes a refletir criticamente sobre suas experiências, incluindo suas reações emocionais à deficiência, também é fundamental para o aprendizado17,20,55. Com acesso a uma formação crítica que ultrapasse o conhecimento biomédico, incluindo questões psicossociais, políticas e de justiça, os profissionais poderiam assumir um papel fundamental de aliados na luta contra estruturas sociais que oprimem pessoas com deficiência21.

AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por bolsa concedida para a realização desta pesquisa.

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Vaz, D. V., Garcês, R. L. de O., Silva, H. A., Almeida, L. A. D.. Concepções de deficiência de profissionais de saúde em formação e em exercício: um estudo qualitativo. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2023/dez). [Citado em 22/12/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/concepcoes-de-deficiencia-de-profissionais-de-saude-em-formacao-e-em-exercicio-um-estudo-qualitativo/19041?id=19041&id=19041

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