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0294/2024 - Fatores associados a notificação de violência na infância no Brasil
Fatores associados a notificação de violência na infância no Brasil

Autor:

• Deborah Carvalho Malta - Malta, D. C. - <dcmalta@uol.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8214-5734

Coautor(es):

• Regina Tomie Ivata Bernal - Bernal, R. T. I. - <reginabernal@terra.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7917-3857

• Alanna Gomes da Silva - Silva, A. G. - <alannagomessilva@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2587-5658

• Naíza Nayla Bandeira de Sá - SÁ, N. N. B. - <naizasa@ufpa.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1267-1624

• Luís Antônio Batista Tonaco - Tonaco, L. A. B. - <luysantonio@yahoo.com.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9660-2900

• Sther Luna Abras dos Santos - Santos, S. L. A. - <sther.abras@gmail.com>
ORCID: https://orcid.org/0009-0001-4524-0687



Resumo:

Objetivos: descrever as características da violência praticada contra crianças e analisar os fatores associados. Métodos: Estudo transversal, com dados do SINAN de 2022. Realizou-se análise de correspondência para identificar variáveis associadas à violência contra crianças de 0 e 9 anos. Resultados: Foram notificados 38.899 casos de violências, mais frequentes foram contra meninas de 0 a 1 ano (30,1%), 2 a 5 anos (39,4%) e 6 a 9 anos (30,5%). As violências ocorreram principalmente nas residências (88,3%), os agressores foram: mãe (51,7%), pai (40%), padrasto (6,2%). Entre as vítimas de 0-1 ano a ocorrência mais frequente foi na residência, praticada por mãe ou pai, tipo de violência foi negligência. Crianças de 2-5 foi a violência sexual, praticada por conhecidos, na residência. Crianças 6-9 anos foram violências física e psicológica, praticadas pelo padrasto ou conhecidos, com ameaça e força corporal, uso de objetos cortantes/contundentes, o local de ocorrência: escola e via pública. Conclusão: As principais vítimas de violências foram as crianças do sexo feminino de 2-5 anos de idade, o principal agressor foi a mãe e houve variações dos tipos de violência de acordo com as faixas etárias, ocorrendo negligência, violência sexual, física e psicológica.

Palavras-chave:

Violência; Criança; Maus-Tratos Infantis; Vigilância; Sistemas de Informação em Saúde

Abstract:

Objectives: to describe the characteristics of violence committed against children and analyze the associated factors. Methods: Cross-sectional study, with dataSINAN2022. Correspondence analysis was carried out to identify variables associated with violence against children aged 0 and 9. Results: 38,899 cases of violence were reported, the most frequent being against girls aged 0 to 1 year (30.1%), 2 to 5 years (39.4%) and 6 to 9 years (30.5%). Violence occurred mainly in homes (88.3%), the aggressors were: mother (51.7%), father (40%), stepfather (6.2%). Among victims aged 0-1 year, the most frequent occurrence was at home, committed by mother or father, type of violence was negligence. Children aged 2-5 experienced sexual violence, committed by acquaintances, in the residence. Children aged 6-9 years were subjected to physical and psychological violence, committed by their stepfather or acquaintances, with threats and bodily force, use of sharp/blunt objects, the place of occurrence: school and public road. Conclusion: The main victims of violence were female children aged 2-5 years old, the main aggressor was the mother and there were variations in the types of violence according to age groups, including neglect, sexual, physical and psychological violence.

Keywords:

Violence; Children; Child Abuse; Surveillance; Health Information Systems

Conteúdo:

INTRODUÇÃO
A violência é um fenômeno complexo que retrata e influencia a dinâmica de uma sociedade e gera grande pressão sobre os sistemas de saúde, justiça e serviços sociais. A violência constitui-se como um fenômeno multicausal travado ao nível das relações sociais e está presente em todas as regiões do mundo e nos diversos grupos sociais1.
Estima-se que, anualmente, mais de um bilhão de crianças sofre algum tipo de no mundo e ocorre principalmente em crianças e adolescentes de 2 a 17 anos2. em 2020, 58% das crianças na América Latina e 61% na América do Norte sofreram abuso físico, sexual e/ou emocional3,4. No Brasil, dados do Ministério da Saúde revelam que, entre 2015 e 2021, foram notificados mais de 200 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, sendo 41,2% em crianças5. Estudo conduzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública identificou 34.918 mortes violentas intencionais na faixa etária de 0 a 19 anos de idade, no período de 2016 a 2020, o que representa uma média de 7 mil óbitos por ano6.
A violência contra criança pode se manifestar por diversos tipos, seja por meio da negligência, abandono, maus tratos, agressões física, psicológica e sexual, podendo ser agravada pela subnotificação e situação de vulnerabilidade das vítimas2,7. Embora a notificação de violência contra crianças conste na lista nacional de notificação compulsória de agravos à saúde pública no Brasil8, estudos realizados em diferentes regiões do país, ainda evidenciam a subnotificação9,10, o que pode ser explicado pelo fato da violência ser multicausal, pela falta de capacitação dos profissionais da saúde sobre a notificação de violência, não estabelecimento de atendimento em rede de atenção integral à saúde e garantia de direitos para às crianças vítimas de violência, entre outros aspectos9.
Em geral, a violência contra criança, é perpetrada por pessoas próximas, como pais, cuidadores, familiares, além da violência perpetrada na escola, como bullying11 ou na comunidade, por vizinhos e estranhos7.
A violência na infância acarreta traumas que podem permanecer até a vida adulta, além de gerar danos físicos e mentais7,12. Os danos físicos incluem fraturas, lacerações e traumas cranianos, infecções sexualmente transmissíveis e gravidezes indesejadas como consequência de violência sexual, além de vários distúrbios da dor. Os impactos na saúde mental incluem depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, abuso de substâncias psicoativas e comportamentos suicidas13–16. Além disso, a exposição à violência precoce pode predispor doenças como as coronarianas e outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNT)17.
A violência contra crianças impacta as oportunidades e afeta as futuras gerações, as famílias e a comunidade. Crianças expostas à violência têm maior risco de abandono da escola, pior desempenho no trabalho, além de maior risco de serem perpetradores de violência, mantendo o ciclo da violência7.
A violência associa-se a fatores ambientais, psicológicos, sociais e biológicos, além de sofrer influências políticas, econômicas e culturais1. Dessa forma, a violência é um problema da sociedade que a produziu e pode afetar, em maior ou menor intensidade, as várias fases da vida e as mais variadas relações interpessoais18. A violência também é influenciada por fatores familiares como famílias disfuncionais, desestruturadas, laços emocionais frágeis, pelo uso de drogas, problemas mentais e histórico de exposição às violências na família19.
A Organização das Nações Unidas reconhece a importância de acabar com todas as formas de violência contra crianças. Por isso, incluiu a meta 16.2 nos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) “acabar com abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças” 20. A OMS destaca que eliminar a violência contra a criança deve ser uma prioridade dos países, por meio de políticas públicas e notificação dos casos7.
A violência praticada contra criança deve ser continuamente monitorada, dada a sua gravidade, a vulnerabilidade das crianças, bem como a sua impossibilidade de reação e denúncia. O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) constitui um sistema de grande relevância, permitindo monitorar estas ocorrências, possibilitando às equipes de saúde realizarem as medidas de notificação para estabelecer proteção às vítimas. Embora necessários, estudos nacionais sobre o tema ainda são escassos, assim, espera-se que este estudo possa dar visibilidade ao problema e orientar as políticas públicas de eliminação de todas as formas de violência contra criança e avanços para o alcance das metas da Agenda 2030 de proteção à infância.
Nesse contexto, os objetivos do estudo consistem em descrever as características da violência praticada contra crianças e analisar os fatores associados as características das vítimas e agressores.

MÉTODOS
Trata-se de um estudo transversal que utilizou dados secundários do SINAN de 2022. O SINAN tem por objetivo o registro e processamento dos dados sobre agravos de notificação em todo o território nacional, fornecendo informações para análise do perfil da morbidade e contribuindo, desta forma, para a tomada de decisões em nível municipal, estadual e federal.
Os casos de violências contra crianças são notificados no SINAN Net, por profissionais de saúde ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde, em serviços públicos ou privados, mediante preenchimento da Ficha de Notificação Individual (FNI). As Secretarias Municipais de Saúde são responsáveis pelo recolhimento das fichas e pela digitalização e consolidação dos dados. A partir de então, os dados são encaminhados de forma ascendente e concentradas no Ministério da Saúde, que disponibiliza publicamente os dados no sítio eletrônico do DataSUS. Cabe destacar, que pelas notificações serem realizadas em serviços de saúde, como por exemplo em hospitais e unidades de saúde, estas se restringem aos casos que precisaram de atendimento de um profissional de saúde ou que chegaram aos serviços públicos ou privados de saúde21.
Para esse estudo, selecionou-se as notificações de violência interpessoal contra crianças com idade entre de 0 e 9 anos.
A partir da FNI, foram selecionadas as seguintes variáveis: sexo (masculino e feminino), faixa etária (0 a 1, 2 a 5 e 6 a 9 anos); local de ocorrência (residência, escola e via pública); tipo de violência (física; psicológica e negligencia); meio de agressão (força corporal/espancamento, objeto perfurocortante, objeto contundente, objeto quente e ameaça); provável agressor (pai, mãe, padrasto e conhecido), sexo do agressor (masculino, feminino e ambos); consumo de álcool pelo provável agressor (sim ou não).
Estimaram-se as prevalências das variáveis e para verificar possíveis associações empregou-se a análise de correspondência (AC) que permite lidar com grande quantidade de variáveis qualitativas, constituídas de grande número de categorias11,22,23.
A AC constitui uma fase exploratória dos dados e faz uso de tabelas de contingência, também denominadas de tabelas cruzadas, para verificar a dependência entre suas linhas e colunas, empregando o teste qui-quadrado como medida de associação. A AC constitui uma fase exploratória dos dados e faz uso de tabelas de contingência, também denominadas de tabela cruzada composta por variável linha e variável coluna. Nesse estudo, as categorias das variáveis faixam etária e sexo compõem a variável demográfica e as categorias das variáveis relacionadas as notificações compõem a variável violência. Dessa maneira, a tabela é composta por duas variáveis qualitativas: demográfica e violência. Na coluna encontra-se as características demográficas (faixa etária e sexo) e na linha as características relacionadas as violências, totalizando 23 categorias da violência e 5 categorias demográficas. Para verificar a dependência entre as linhas e as colunas, a técnica utiliza o teste de independência qui-quadrado como medida de associação, sendo H0 a independência entre as duas variáveis e H1 a dependência entre elas. Caso a hipótese H0 seja rejeita, significa que as categorias das variáveis podem ser reduzidas em novas dimensões. A escolha do número de dimensões depende do percentual de variação explicada por cada dimensão. A AC sintetiza a estrutura de variabilidade dos dados em termos de dimensões, sendo o número desta menor que o de variáveis. A AC é equivalente à análise fatorial, porém os resultados são apresentados de forma gráfica, em que as menores distâncias entre as categorias linha e coluna representam as mais fortes associações, enquanto as maiores distâncias representam dissociações11,22,23. A análise foi realizada no programa Statistical Package for the Social Science (SPSS) versão 25.0.
Esse estudo fez uso de dados que provêm de bases secundárias de domínio público e, dessa forma, não houve necessidade de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS
Foram notificados 38.899 casos de violências contra crianças em 2022, sendo 21.462 casos ocorrido entre as meninas e 17.437 entre os meninos. As notificações de violência contra criança de 0 a 1 ano ocorreu em 30,1%, de 2 a 5 anos foi de 39,4% e 6 a 9 anos de 30,5%. A residência foi o local de ocorrência mais frequente (88,3%), seguido da via pública (6,9%) e na escola (4,7%). O tipo de violência mais frequente foi a negligência (50,7%), seguido da física (23%) e psicológica (14,5%). Os meios de agressão foram a força corporal/espancamento (21,1%), ameaça (7,7%), objeto quente (3,4%), objeto contundente (2,5%) e objeto perfurocortante (1,65). Os agressores foram o pai (40%), a mãe (51,7%), o padrasto (6,2%) e algum conhecido (8,5%). O sexo do provável agressor foi masculino (37,4%), feminino (28,5%) e ambos (28,5%). O uso do álcool foi referido pelos agressores em 10,6% dos casos notificados (Tabela 1).
Na análise de correspondência, duas dimensões foram suficientes para explicar 98,9% da variabilidade dos dados, sendo que a primeira explica 90,5% e a segunda 8,4% (p-valor < 0,01) (Tabela 2).
As contribuições absolutas das variáveis da dimensão 1 que mais se destacam são agressor com 24,1%, assédio e estrupo com 16,5% e sexo do agressor com 13,8%. Para a dimensão 2, as variáveis que destacam são: tipo de violência (51,0%) e meio de agressão (16,0%) (Tabela 3).
A partir da observação das proximidades das variáveis no gráfico da análise de correspondência, verificam-se as seguintes associações: nas vítimas de 0 a 1 ano, a violência ocorreu na residência, foi praticada pela mãe ou pai, o tipo de violência mais frequente foi a negligência e o meio de agressão foi por objeto quente. Entre as vítimas de 2 a 5 anos, o tipo mais frequente foi a violência sexual, por assédio e estupro, praticadas por conhecidos, o sexo dos agressores foi masculino e feminino e o local de ocorrência na residência. As vítimas com idade entre 6 e 9 anos, sofreram violências física e psicológica, os agressores foram o padrasto ou algum conhecido, o meio de agressão foi ameaça e força corporal, com uso de objetos cortantes e contundentes, a ocorrência foi na escola e via pública (Figura 1).

DISCUSSÃO
De acordo com os dados do SINAN em 2022 foram realizadas cerca de 40 mil notificações de violência contra criança de 0 a 9 anos de idade. As principais vítimas foram as crianças so sexo feminino, de 2 a 5 anos de idade, os agressores mais frequentes foram às mães e a residência como o principal local de ocorrência. Na análise de correspondência foram identificadas três situações: vítimas de 0 a 1 ano (tipo de violência foi a negligência, ocorrida na residência, praticadas pela mãe e pai, e uso de objeto quente); de 2 a 5 anos (violência sexual por assedio e estupro, praticadas por conhecidos e local de ocorrência na residência); as vítimas de 6 a 9 anos (violências física e psicológica, agressores padrasto e algum conhecidos, meio de agressão ameaça, força corporal, uso de objetos cortantes e contundentes e as ocorrência na escola e via pública).
Idade e tipo de violência
A (OMS) define a violência contra crianças como qualquer tipo de violência praticada contra pessoas com menos de 18 anos, podendo ser perpetrada por familiares, cuidadores, pares ou estranhos, podendo incluir violência física, sexual e emocional, assim como presenciar atos violentos. As violências interpessoais são as mais frequentes nesta faixa etária e podem ser classificadas como: maus-tratos, que inclui abuso e negligência; violência juvenil, que engloba bullying, lutas físicas, agressões sexuais e físicas graves, além dos homicídios; e violência entre parceiros íntimos. A criança pode sofrer vários tipos de violência simultaneamente e em diferentes fases ao longo da vida e essas violências podem resultar em danos físicos, psicológicos; prejuízo ao crescimento, desenvolvimento e maturação das crianças24.
O estudo apresentou que as violências praticadas contra as crianças têm variações conforme a idade. Evidências mostram que as crianças menores são mais sujeitas a negligência2,7. A negligência inclui o abandono, a ausência ou a insuficiência de cuidados físicos e emocionais7,25. A negligência pode ocorrer em consequências de situações de vulnerabilidade, como a pobreza e o uso de bebidas alcóolicas e outras drogas por parte dos pais e/ou cuidadores25,26. É importante destacar que, apesar das diversidades familiares, em 2022, 87% das famílias brasileiras monoparentais com filhos eram chefiadas por mulheres, e entre essas mulheres, 60% eram negras27. Essa realidade pode contribuir para a ocorrência de situações negligentes, principalmente quando a mulher não conta com uma rede de apoio, situação agravada pela cultura patriarcal que atribui majoritariamente às mulheres a responsabilidade do trabalho doméstico28.
A violência sexual foi a mais frequente entre as crianças de 2 a 5 anos. A violência sexual contra crianças e adolescentes se configura como um agravo de natureza sociocultural compreendido a partir de diferentes dimensões e que se expressa nas relações sociais de classe, gênero e de raça/cor e suas interseccionalidades. Trata-se de um grave problema de saúde pública que viola os direitos humanos29. De acordo com a UNICEF e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a grande maioria das vítimas de violência sexual é do sexo feminino (80% do total), destas 12% tinham entre 0 e 4 anos, e 22%, entre 5 e 9 anos, somando 34% que tinham entre 0 e 9 anos. Entre 10 e 14 anos estão 47% das vítimas, e entre 15 e 19, 19%. Em relação ao sexo masculino, os casos de violência sexual concentram-se especialmente entre 3 e 9 anos de idade. A maioria dos casos de violência sexual ocorre na residência da vítima e 86% dos autores eram conhecidos das vítimas. Nos últimos quatro anos, foram estupradas no Brasil mais de 22 mil crianças de 0 a 4 anos, 40 mil de 5 a 9 anos, 74 mil crianças e adolescentes de 10 a 14 anos e 29 mil adolescentes de 15 a 19 anos6.
As crianças de 6 a 9 anos sofreram violência física e psicológica. A violência física consiste em qualquer tipo de agressão ao físico da criança ou adolescente com ou sem o uso de objetos30. Além de danos físicos, pode prejudicar o desenvolvimento orgânico e cerebral dos jovens e ser letal31,32. Já a psicológica se dá por meio de agressões verbais, chantagens, regras excessivas, ameaças (inclusive de morte), humilhações, desvalorização, estigmatização, desqualificação, rejeição, isolamento, exigência de comportamentos éticos inadequados ou acima das capacidades30. Destaca-se que o reconhecimento da violência psicológica depende substancialmente do contexto em que se está inserido, visto que muitas vezes, a detecção da fonte da ocorrência pode ser dificultada pela omissão dos casos, tendo em vista que inicialmente esse tipo de violência não deixa marcas tão expressivas33.
Agressores
O estudo evidenciou os familiares como pai e a mãe como principais agressores das crianças, sendo a mãe a perpetradora mais frequente. A violência doméstica impede o desenvolvimento físico e psicológico das crianças, além de inúmeras consequências danosas à saúde e bem-estar na infância, que se estendem a toda vida infantil34. A violência contra crianças é um problema multifatorial e encontra raízes em um conjunto de fatores interligados, desde os individuais até os sociais. Nesse contexto, as normas de gênero se apresentam como um elemento crucial para a compreensão e o combate a este grave problema de saúde pública35.
Estudos também evidenciaram que a violência contra crianças praticada dentro da família, ocorre primeiramente pela mãe, seguida do pai, padrasto, namorado ou companheiro da mãe. Os que deveriam proteger, são os perpetradores da violência o que torna ainda mais complexo o problema e a vulnerabilidade das crianças26,36,37.
A participação das mães nessas práticas é considerada uma consequência da perpetuação do ciclo de violência. Mulheres que enfrentam violência doméstica, por parte de seus companheiros, frequentemente foram vítimas de violência em suas famílias de origem, o que contribui para a propensão a reproduzir essas práticas com seus filhos38. Soma-se a isto as vulnerabilidades sociais em que vivem a maior parte das famílias chefiadas por mulheres27. Entender e abordar esse ciclo de violência é crucial para o desenvolvimento de intervenções eficazes que visem interromper esse padrão e promover ambientes familiares mais saudáveis e seguros.
Local de ocorrência
As ocorrências da violência foram em quase 90% dos casos dentro da própria residência, especialmente entre as crianças de 0 a 5 anos. Assim, o local de proteção e cuidado, torna-se o local de risco às crianças. Este aspecto insere-se no contexto da violência estrutural, resultante de desigualdades sociais, falta de emprego, uso de drogas, com perpetuação de violações interpessoais entre as famílias desestruturadas39. A violência doméstica deve ser compreendida como de interesse público, por violar direitos de pessoas incapazes e que precisam do estado para a garantia de direitos básicos.
A violência contra as crianças de 6 a 9 anos ocorreu em escola e vias públicas. A violência praticada na escola que acontece de forma repetida e no âmbito de uma relação de desequilíbrio de poder, pode ser descrita como bullying e inclui violência física, verbal, intimidação e cyberbullying40,41.
A violência contra a criança acontece, principalmente, em casa e contra adolescentes acontece na rua, especialmente em meninos negros. O local de ocorrência da violência são eventos complementares e simultâneos, contudo é fundamental entendê-los nas suas particularidades, a fim de implantar políticas públicas efetivas de prevenção às violências6.
Torna-se importante mencionar que devido a Pandemia de COVID-19 houve subnotificação dos casos de violências, devido as medidas restritivas de circulação, os estabelecimentos públicos tiveram alterações em horários e dias de funcionamento, as escolas operaram virtualmente e com isso as crianças e os adolescentes deixaram de frequentar o principal espaço em que, usualmente, têm contato com adultos fora do círculo familiar42.
A agenda 2030 estabelece o compromisso de eliminar toda a forma de violência contra crianças20. A OMS criou o “INSPIRE3: Sete Estratégias para Pôr Fim à Violência Contra Crianças”, a saber: 1) Implementação de legislação e leis que possam banir as formas de disciplinação por meio de violência, acesso a armas e álcool; 2) Mudar valores e normas sociais, como por exemplo, de normalização de violência contra meninas e incentivar a agressividade dos meninos; 3) Garantir ambientes seguros, identificando pontos de violência nas vizinhanças e buscando alternativas para melhora-los; 4) Dar suporte aos pais e cuidadores, em especial, apoio aos pais jovens, 5) Fortalecimento de políticas para melhorar renda das famílias, como microcrédito, empoderamento feminino; 6) Melhoria de serviços de suporte de emergência, psicossocial, 7) Investimento em educação no acesso e permanência das crianças a escola3. Entretanto, ainda existe uma grande distância para o alcance deste compromisso mundial e para caminhar em direção ao alcance dessas propostas, deve-se trabalhar na divulgação de dados, garantido que governos e sociedade se comprometam com políticas públicas de proteção e segurança das crianças e famílias. As políticas devem articular a rede de atenção e proteção social, saúde, a educação, os serviços de responsabilização e proteção visando à redução destes agravos e à proteção da vida destas crianças, conforme consta no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Dentre os limites do presente estudo pode-se mencionar que a subnotificação da violência não permite estimar prevalências populacionais. Os dados podem ser ainda mais subnotificados, em função da vulnerabilidade, seu silêncio e as tentativas dos pais e agressores de esconderem os eventos. Por outro lado, o uso de informações do SINAN, refletem a organização da vigilância em saúde e constitui uma das fortalezas dos sistema de informação brasileiro. Embora este número ainda seja subnotificado, foram registradas, quase 40 mil notificações de violência contra crianças. Dado este que permite traçar associações entre variáveis e analisar os perfis referentes aos agressores, tipos de violências e outros aspectos.
Como potencialidades do estudo, destaca-se que a notificação é, o primeiro instrumento de garantia dos direitos de crianças e adolescentes após a ocorrência ou suspeita de violência e a escolha da análise de correspondência possibilitou empregar a análise multivariada e verificar simultaneamente diversos fatores associados ao desfecho “violência contra a criança”, além da utilização do modelo gráfico que facilita a interpretação da relação entre os conjuntos.

CONCLUSÃO
Em 2022, foram notificados 38.899 casos de violências contra crianças de 0 a 9 anos de idade e as principais vítimas foram as meninas, tendo como os agressores as mães e os pais, a residência foi o local de ocorrência mais frequente em relação as crianças mais novas e a escola ou as vias públicas para crianças de 6 a 9 anos.
O Brasil vem registrando indicadores alarmantes com relação as violências, tornando-se um problema de saúde pública e coletiva. Para o seu enfrentamento é preciso uma readequação da organização tradicional dos serviços, com a necessidade de atuação muito mais específica, interdisciplinar, multiprofissional, intersetorial e engajada, visando o cuidado integral, a prevenção e proteção, o que se configura também como um imenso desafio a ser transposto. Além disso, deve ser adotadas estratégias de prevenção que trabalhem a origem da violência e ainda alterar os processos que levam a subnotificação dos casos. Ainda no ambiente intrafamiliar deve ser estimulado e incentivado por políticas públicas, programas e serviços, os cuidados integrais, que permitem às comunidades, pais e cuidadores garantir a boa saúde e nutrição das crianças bem como protegê-las de violências e ameaças, juntamente com a melhoria do vínculo familiar e a parentalidade positiva. Nenhuma violência contra criança é aceitável e todos os eventos podem prevenidos.

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Malta, D. C., Bernal, R. T. I., Silva, A. G., SÁ, N. N. B., Tonaco, L. A. B., Santos, S. L. A.. Fatores associados a notificação de violência na infância no Brasil. Cien Saude Colet [periódico na internet] (2024/Ago). [Citado em 05/10/2024]. Está disponível em: http://cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/fatores-associados-a-notificacao-de-violencia-na-infancia-no-brasil/19342?id=19342

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