0351/2023 - O PAPEL DO PRAZER NA MANUTENÇÃO DA SAÚDE NO TRABALHO DE PESCADORAS QUILOMBOLAS ARTESANAIS DA BAÍA DE TODOS SANTOS
THE ROLE OF PLEASURE IN THE MAINTENANCE OF HEALTH AT THE WORK OF ARTESANAL QUILOMBO FISHERMEN IN BAÍA DE TODOS OS SANTOS
Autor:
• Valerie Ganem - Ganem, V. - <ganemvalerie@gmail.com>Coautor(es):
• Marta Santos - Santos, M. - <martacfsantos@gmail.com>• Luiza Barros - Barros, L. - <lu.bia.barros@gmail.com>
• Rita Gomes - Gomes, R. - <ritaglopes60@gmail.com>
• Kamile Serravalle - Serravalle. K. - <milelacerda@gmail.com>
• Lililane de Jesus Bittencourt - Bittencourt, L. J. - <liliane.bittencourt@ufba.br>
• Mércia Ferreira Barreto - Barreto, M. F. - <merciabarreto.pms@gmail.com>
• Paulo Gilvane Lopes Pena - Pena, P. G. L. - <pena@ufba.br>
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9653-5509
Resumo:
Esse artigo tem o objetivo de compreender o papel do prazer no trabalho para pescadoras e marisqueiras quilombolas e a relação com a saúde no trabalho no contexto da herança escravocrata no Brasil. Procura compreender como o prazer sentido no trabalho entra no contexto da evolução mais lenta e com menor intensidade das Lesões por Esforços Repetitivos - LER observados na profissão de pescadoras marisqueiras quilombolas em comparação com outras profissões dos meios assalariados como no setor de serviços, por exemplo. Desse modo, foram feitas pesquisas em psicodinâmica do trabalho com pescadoras artesanais em comunidades quilombolas de duas regiões da Baía de Todos Santos – Ba, no período de 2021 a 2023. Conclui-se que a sublimação e o prazer inscrito nas atividades de trabalho desses profissionais podem contribuir para a manutenção da sua saúde física e mental, embora estejam submetidos aos constrangimentos e cargas intensas no trabalho. Assim a importância do prazer no trabalho para a construção da saúde mental foi reafirmada por ocasião dessa pesquisa.Palavras-chave:
Saúde mental, Prazer, Trabalho, Quilombo, Pesca artesanal.Abstract:
This article aims to understand the role of pleasure at work for Quilombola fisherwomen and shellfish gatherers and the relationship with health at work in the context of slavery heritage in Brazil. It seeks to understand how pleasure felt at work enters the context the slower evolution and with less intensity of the Repetitive Strain Injuries - RSI observed in the profession of marisfolk shellfish fisherwomen in comparison with other professions in salaried environments such as in the service sector, for example. In this way, research was carried out on the psychodynamics of work with artisanal fisherwomen in quilombola communities in two regions of Baía de Todos Santos - Ba,2021 to 2023. It is concluded that the sublimation and pleasure inscribed in the work activities of these professionals can contribute to the maintenance of their physical and mental health, although they are subjected to the constraints and intense loads at work. Thus, the importance of pleasure at work for the construction of mental health was reaffirmed during this research.Keywords:
Mental health, Pleasure, Work, Quilombo, Artisanal fishing.Conteúdo:
A escravidão transatlântica durante os séculos XVI à XIX encontrava-se inextricavelmente ligada ao desenvolvimento do capitalismo industrial ocidental 1, bem como à criação de sistemas bancários e de seguros, cuja importância aumentou no contexto do comércio triangular das expedições navais que se caracterizavam por serem empreendimentos de altos custos e precisavam ser financiadas e asseguradas. 3 Esse complexo sistema social, econômico e político imprimiu modalidade extremamente violenta de organização e exploração do trabalho, que persistiu por aproximadamente quatro séculos nas Américas, tem apresentado incidências sobre as atuais condutas no trabalho, particularmente na esfera subjetiva da saúde mental no trabalho, conforme estudos realizados por Ganem.3
No Brasil, a discriminação racial contida na hierarquia social ligada à cor da pele tem sido terrível para os herdeiros dos escravizados. Muitas vezes, a violência inerente às diversas formas de racismo encontra-se inscritas em contextos de grande precariedade com impactos diretos na relação subjetiva com o trabalho4. Para sobreviverem na situação de extrema exploração a que estavam submetidos, muitos tiveram que recorrer às estratégias de defesa específicas que envolviam a manutenção da alegria nas relações sociais de trabalho 5. Isso também pode ser herdado da escravidão, porque a literatura histórica mostrou que cultivar a alegria era de fato apreciada pelas pessoas escravizadas para suportar as difíceis condições de vida em que viviam6, 7.
Nessa perspectiva, parece particularmente urgente e interessante analisar a relação subjetiva com o trabalho das comunidades quilombolas que resistiram à exploração desde a escravidão, para inspirar-nos na nossa busca atual por emancipação. O termo quilombo ou mocambo refere-se aos grupos escravizados fugitivos que em todo o país se formaram em lugares de difícil acesso: nas colinas, cavernas ou nas imensidões das florestas 8. Na atualidade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística com base no censo de 2022, o Brasil tem 1,3 milhão de quilombolas em 1.696 municípios 9. Trata-se de fenômeno extremamente expressivo e tipicamente brasileiro dentre os remanescentes do longo período e escravidão nas américas, e a persistência desse expressivo número revela a importância de saberes tradicionais e modos de vida neste domínio, inclusive no âmbito do trabalho e da saúde. Entretanto, são raros estudos sobre saúde do trabalhador e, particularmente, na saúde mental. Tais condições aparecem como reflexos da persistência de modalidades de racismo institucional, inclusive no âmbito da pesquisa acadêmica.
Seria, portanto, do nosso interesse entender melhor como os povos escravizados se defenderam com esse sistema original de gestão da força de trabalho e os vestígios que permanecem na relação subjetiva e na saúde mental com o trabalho atual. Com esse objetivo foi lançado o projeto de pesquisa em cooperação entre a Université Sorbonne Paris Nord e a Universidade Federal da Bahia chamado: "Saúde, ambiente e trabalho dos pescadores artesanais quilombolas da Baía de Todos os Santos”. Ele está em consonância com uma conferência intitulada: « Des femmes, la mangrove et la pêche (mulheres, o mangue e a pesca)»10, apresentado no 11º Colóquio internacional de psicopatologia e psicodinâmica do trabalho (CIPPT 11) que ocorreu em 2021, que teve como tema o prazer no trabalho.
Nesta conferência, foi recordado uma observação resultante de uma longa pesquisa-ação realizada com essas mulheres marisqueiras 11, como segue:
"apesar da carga de trabalho, da exposição intensa ao fator de risco ergonômico, desenvolvem lesões oeteomusculares tardiamente, considerando o tempo médio de mariscagem de 38,7 anos e o início precoce do trabalho de em torno de cinco a sete anos. Este fato pode ser atribuído às micropausas existentes na realização do modo operário". (p. 211)
Os estudos com pessoas diagnosticadas com LER no setor de serviços mostram que elas desenvolvem esses sintomas com menos de 40 anos e tempo médio de exposição a movimentos repetitivos impostos pelo trabalho de 12 anos 12, enquanto a intensidade da exposição ao constrangimento dos movimentos repetitivos é mais ou menos equivalente à das pescadoras marisqueiras13, 14, 15, 16.
Sabemos que o sistema de organização do trabalho nas atividades de pesca artesanal permite desenvolver sua própria organização, contrariamente aos sistemas centrados nos princípios tayloristas dos assalariados. A pescadora marisqueira pode adotar modos operacionais no desenvolvimento das atividades com base em saberes tradicionais e sentir-se assim mais satisfeita em seu trabalho, apesar de condições de vida precária e economicamente vulnerável. Esta situação representa precisamente a existência de condições para a mobilização da engenhosidade e da satisfação psicológica no trabalho, que pode se expressar de duas formas: concreta e simbólica 17. Sabendo-se que o sedentarismo é um fator de desenvolvimento das LERs 18, é verdade que a organização autônoma e o trabalho não sedentário dessas pescadoras marisqueiras constituem fatores favoráveis para a saúde.
Além disso, Ganem10 defendeu a ideia de que esta evolução mais lenta e com menor intensidade de LER nestas mulheres poderia estar relacionada com o prazer que sentem no exercício do seu trabalho. O prazer no trabalho é insubstituível para a saúde mental e para a saúde em geral, ao significar a nossa capacidade de superar os limites impostos à nossa ação pelo mundo, pelos outros e pelo nosso próprio inconsciente e, portanto, teria algo a ver com a subversão desses limites 10. Nesse sentido, induziu o interesse de investigar mais amplamente as relações entre o prazer no trabalho e a saúde mental em pescadoras artesanais quilombolas a partir dos fundamentos teóricos, conceituais e metodológicos da psicodinâmica do trabalho. Com isso, o presente artigo tem o objetivo de compreender o papel do prazer no trabalho para pescadoras e marisqueiras quilombolas e a relação com a saúde no trabalho no contexto da herança escravocrata no Brasil.
Metodologia
Essa pesquisa faz parte do que chamamos uma pesquisa ação, que procura transformar as situações estudadas. Incluiu várias atividades, sendo que, neste estudo, apresentaremos resultados da pesquisa em psicodinâmica do trabalho e da atividade de educação em saúde mental por meio de aulas. Os trabalhos iniciaram em dezembro de 2021 e persistiram até março de 2023.
O estudo foi realizado com mulheres pescadoras marisqueiras quilombolas dos municípios de Maragogipe e Santo Amaro da Purificação – Ba.
Importante considerar que a metodologia da pesquisa de psicodinâmica do trabalho 17 19 é qualitativa e não diretiva e por isso, não se utiliza roteiro nas sessões com as pessoas participantes. Consiste em um desenvolvimento coletivo da experiência de trabalho a partir de reuniões, lideradas por duas pessoas e reunindo diferentes profissionais interessados no sistema de análise.
Nessa perspectiva, primeiramente objetivou-se produzir, a partir das palavras dos participantes, uma descrição subjetiva do trabalho e de suas contradições que puderam ser utilizadas para deliberação e ação. Essa dinâmica mobilizou a reflexão dos participantes sobre a análise de problemas concretos e os recursos ou espaços de manobras que eles tinham para resolver as dificuldades inerentes à realização do trabalho em contextos específicos. Em seguida, a descrição foi transcrita e sistematizada, bem como o novo entendimento nascido desses encontros sob forma de um relatório validado pelos participantes. São os extratos desses relatórios da pesquisa que compuseram as fontes dos dados utilizados e colocados em destaque nesse artigo. Trata-se de material específico da psicodinâmica do trabalho que não é constituído de narrativas brutas das participantes nem de comentários ou interpretações das pesquisadoras, mas o resultado do pensamento em andamento dessas duas categorias durante a pesquisa. O processo de pensamento que foi descrito no relatório e validado pelas participantes durante a última sessão da pesquisa representa a dimensão empírica do presente artigo, conforme a metodologia da psicodinâmica do trabalho.
Esse tipo de investigação tem princípios metodológicos importantes a serem respeitados, como: a pesquisa deve ter como ponto de partida a solicitação dos participantes. Quer dizer um assunto, um problema concreto sobre o qual o coletivo esteja pronto a refletir a participação das pessoas nas reuniões ocorre mediante a expressão clara da vontade de participar ao final da primeira reunião chamada “reunião de informação”; ao menos duas pessoas devem pesquisar juntas com o coletivo de participantes;
Os participantes devem ser do mesmo nível hierárquico no contexto desse tipo de pesquisa; cada participante da pesquisa representa a si mesmo. O relatório final deve ser validado pelos participantes que, automaticamente são os destinatários e decidirão sobre sua divulgação.
Tecnicamente, a formação dos grupos é de quatro a quinze pessoas; deve haver, no mínimo, dois dias de intervalo entre as 4 reuniões de 3 horas realizadas a fim que os participantes tenham tempo de reflexão sobre os comentários dos outros e dos seus próprios, além da reflexão sobre a realidade do trabalho vivida entre as sessões.
Duas pesquisas foram realizadas segundo essa metodologia com as comunidades de pescadores artesanais quilombolas do município de Santo Amaro de um lado, e do município de Maragogipe de outro, seguida de apresentação conjunta dos relatórios, ambos situados na Baía de Todos os Santos – Ba.
Nesse projeto também foram realizadas formação como atividade educativa sob a forma de quatro sessões de 2 horas para as pessoas voluntárias das comunidades pescadoras quilombolas das duas regiões, com o tema: Saúde mental e trabalho:
Sessão 1. Como se constrói e se destrói a saúde mental (Situação antropológica fundamental e construção do inconsciente segundo Laplanche 1920, subversão libidinal e seus acidentes e sublimação segundo Dejours 21, triângulo da dinâmica da identidade de François Sigaut 22).
Sessão 2. As condições favoráveis à mobilização da inteligência individual e coletiva no trabalho.
Sessão 3. As estratégias de defesa coletiva
Sessão 4. Compreender a resistência à mudança.
Esses cursos fizeram parte diretamente do dispositivo de pesquisa porque, ao pedir aos ouvintes que ilustrassem os conceitos a partir de sua própria experiência para verificar se eles haviam entendido corretamente, foi possível obter informações valiosas sobre as especificidades da relação subjetiva com o trabalho no âmbito do exercício particular desta ocupação de pesca e mariscagem. Ademais, essas práticas educativas representaram um compromisso ético da pesquisa ação no atendimento de demandas para uma melhor compreensão sobre a saúde mental nas comunidades.
São apresentados, aqui, os resultados essenciais, focados nas pesquisas de psicodinâmica do trabalho com as pescadoras marisqueiras e quilombolas e, em menor escala, os resultados do curso sobre saúde mental e trabalho.
As solicitações das pesquisas de psicodinâmica do trabalho formalizadas com as comunidades foram as seguintes:
Santo Amaro:
“Descrever e entender o papel da conservação dos saberes e fazeres ancestrais para manter a saúde mental da comunidade e do meio ambiente na frente da violência do modo de desenvolvimento imposto e quando a luta não dá resultado e pelo contrário é criminalizada.”
Maragogipe:
“Como cuidar da saúde mental de cada um na comunidade através do trabalho?”
O projeto de pesquisa que resultou no presente artigo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Bahia, UFBA, com o número CAAE: 58505821.
Resultados e discussões
Desde as primeiras sessões, as pescadoras marisqueiras das duas regiões insistiram sobre o caráter terapêutico da alegria que elas mantinham nas situações de trabalho que se expressava na forma de cantos e danças muito ligadas ao samba:
“E de repente uma participante se levantou e tomou um lugar de fala carregada de força e disse: ‘Olha, vocês querem saber o que é o samba pra nós?’ E, numa representação corporal ela se virou contra a parede, elevou os braços acima da cabeça e construiu a imagem de um negro amarrado no tronco em açoite. Ela, mudando de voz e de forma muito intensa, com a voz carregada de emoção disse: ‘Enquanto meu irmão apanhava, todos em volta cantavam samba para ele suportar a dor.’ Nesse momento uma outra participante começou a puxar a música o canto das três raças e todo mundo canta como um coral orquestrado pela identificação com o sofrimento dos antepassados açoitados no tronco. Bateram palma encadeando o ritmo até o final da música. A voz de uma participante mais velha se sobressaia e com a cabeça erguida parecia uma incentivadora às mais jovens. O canto era bonito, forte e impactante e nós, pesquisadoras, nesse momento, sentimos o quanto cantar assim podia dar uma força mental.” (Fonte: Extrato do relatório de Santo Amaro)
O caráter terapêutico se apresentava também na forma de brincadeiras:
“Elas contaram que qualquer coisa é motivo de rir, o jeito de arrumar o cabelo e de pintar as unhas por exemplo. Uma brincadeira sempre puxa a outra; não tem fim. Diante do silêncio entre elas no momento da pesca, uma vai dizer ‘A bateria acabou?’ e vai recomeçar as brincadeiras. Durante a terceira sessão que tinha como objetivo validar o plano desse relatório, as pesquisadoras perguntaram o porquê da escolha dessa expressão ‘a bateria acabou?’. Elas responderam que significa ‘descarregou’, ‘esgotou’, tal qual ocorre também com pilhas. A metáfora da bateria é empregada para figurar a energia que elas precisam para trabalhar, uma espécie de motivação para continuar o ânimo entre o grupo, bem como a manutenção da autoestima elevada também” (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe)
Verifica-se, nesses extratos dos relatórios, que a procura dessa alegria é de natureza coletiva:
“A alegria ocuparia a mente e teria um caráter coletivo que evitaria uma percepção errada da realidade. Elas contaram a história de uma pescadora só com 3 filhos que, um dia, foi pescar sozinha. Ela ouviu um pássaro cantando: ‘Bem Te Vi’, achando que ele estava cantando: ‘Triste vida’ e ouvindo o pássaro repetindo isso, ela começou a perder a razão. Ela chegou na comunidade suja, ferida, com os apetrechos perdidos. Segundo as companheiras, se elas estivessem presentes isso não tinha acontecido.
Elas contaram que há entre elas essa vontade em cada uma de manter essa alegria. Se alguém não está bem e mais isolada, elas vão deixá-la até que encontram o momento que ela volta novamente, se incluir na risada quando estará pronta.
Duas companheiras de pesca contaram que uma delas não tinha mais condições de pescar e a outra foi até sua casa para brincar com ela. Nessa situação, essa última ia pescar escondida para não chatear sua companheira.” (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe).
Ouvindo esses relatos, as pesquisadoras perguntaram para elas se o que era terapêutico era só o fato de rir, cantar juntas ou se tinha outra coisa de terapêutico na pesca. Nesse momento elas relataram que era uma cooperação mais ampla que existia entre mulheres pescadoras marisqueiras.
“Entre elas, não era só rir e brincar. Elas se ajudavam mutuamente o quanto possível ao perceberem que alguma companheira está com alguma dificuldade, buscando dentro de seus conhecimentos trocar orientações sobre diversos assuntos domésticos e familiares ou até mesmo relacionados às necessidades de indicações de profissionais capazes de ajudá-las como Médicos, Advogados etc. Ressaltam que às vezes não possuem recursos financeiros, mas possuem uma rede de ajuda e companheirismo.
Elas afirmaram que essas conversas, brincadeiras e cantos entre elas aconteciam não só na pesca, também quando elas estavam catando o marisco, lavando a roupa no rio, fazendo óleo de dendê, farinha de mandioca, no transporte e até mesmo andando na rua. Não se sentiam sozinhas, pois sabem que podem contar com as companheiras. Em qualquer situação problemática, elas conversam entre si, o que muito ajuda a não tomar decisão com a cabeça quente.” (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe)
Um outro assunto que foi colocado por elas que diz respeito a fonte de saúde ser atribuída ao fato de estarem no manguezal, também relatado e discutido nas atividades educativas.
“Depois, uma outra acrescentou que o ar puro da Maré era uma terapia, o fato de poder sair da casa, de ver a linda paisagem, os pássaros voando, nesse momento ela se dizia: ‘Estou com você, sobrevivendo graças a você’. (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe).
Retomando os achados na literatura sobre a evolução mais lenta das LERs em pescadoras e marisqueiras artesanais, pergunta-se o que pode ser desenvolvido apoiando-se na teoria da psicodinâmica do trabalho para compreender características desses processos de adoecimento e sofrimento psíquico? Pesquisas realizadas por Ganem mostraram que a alegria poderia constituir uma estratégia de defesa coletiva contra o sofrimento dos herdeiros das pessoas escravizadas de serem explorados e discriminados, como foi o caso em uma cooperativa de catadores de resíduos recicláveis estudada em Brasília 3, 5, 23. O processo psicológico dessa alegria defensiva era manter a alegria nas relações de trabalho para evitar pensar nessa exploração e discriminação.
Nas comunidades quilombolas não existe a exploração e discriminação na organização do trabalho, pois a terra é coletiva, e não tem também recusa ou falta de pensamento da realidade, pois as participantes falaram muito das dores e constrangimentos do trabalho da pesca (condições de trabalho e saúde também descritas nas atividades educativas das aulas):
“Então para ela a pesca era realmente terapêutica apesar das dores dos joelhos, dos perigos: 'às vezes, na lama você pode afundar sem poder mais sair, tem que assegurar-se com o braço ao galho de uma árvore’. Elas podem também pegar problemas ginecológicos naquela lama.” (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe)
“Depois elas falaram que a maré é uma terapia, embora gere sofrimento também. Um exemplo trazido foi o fato de irem pescar e a produção ser baixa, ‘não dá a pesca’. Também quando elas têm que trabalhar sem ter provisão na casa para alimentarem a família. Elas contaram que uma pescadora perdeu 4 gravidezes dentro da maré desde os 18 anos e que, com 27 anos ela entrou em menopausa precoce. Para esta pescadora, a maré também traz a velhice precoce pelo esforço e condições de trabalho. Elas falaram que tinha riscos também nesse trabalho: ‘de machucar o pé e cortar a mão, por exemplo’. Também lembraram da fumaça ruim para os pulmões, pois é uma prática quando elas cozinham o marisco utilizam fogão à lenha.” (Fonte: Extrato do relatório de Santo Amaro).
Então o que poderia ser terapêutico nesse trabalho das pescadoras-marisqueiras quilombolas seria o fato que esse trabalho seria fonte de sublimação e então de prazer para elas bem como o presumimos. Freud 24 foi o primeiro a definir sublimação. Esta última dá conta do caminho que, partindo da pulsão sexual, leva ao investimento do indivíduo em uma atividade socialmente valorizada.25
Como foi dito por C. Dejours 25, na sua palestra introdutória do colóquio sobre o prazer no trabalho, a teoria da sublimação de Freud é o ponto de partida, mas o desvio pela clínica do trabalho leva a propostas de reelaboração, talvez de enriquecimento, dessa teoria.
Assim C. Dejours 25 identificou 3 níveis da sublimação:
1. A “corpspropriation” 26
2. O reconhecimento
3. O nível extraordinário
O primeiro nível é a apropriação do real pelo corpo, (“corpspropriation”) que envolve a subjetividade como um todo. Ao final desse primeiro nível de sublimação, segundo C. Dejours 25, a pessoa adquire novas habilidades. Ela é mais inteligente depois do trabalho do que antes. A “corpspropriation” tornou-se uma demanda de trabalho para a psique por causa de sua relação com o corpo.
A aquisição de uma nova habilidade implica uma transformação do eu, passa por uma ampliação da capacidade de habitar e mobilizar o próprio corpo, também dá acesso a novos registros de sensibilidade do eu que antes não existiam. Para ilustrar seu argumento, C. Dejours25 cita o exemplo do carpinteiro que, à força de trabalhar a madeira adquire um melhor conhecimento da madeira. Ele pode aplicar a mão em uma madeira ou bater em uma tábua com os dedos para testá-la, tantas maneiras de sentir a madeira, de adivinhá-la. E agora, ao acariciar um móvel, consegue sentir no seu corpo uma sensação desconhecida do profano, que o faz estremecer, e pode até, às vezes, levá-lo às lágrimas: assim se sente o abraço da vida em si mesmo, graças a novos registros de sensibilidade que não existiam antes da obra. Aumento do poder de experimentar a vida em si que é nada mais do que um aumento, um enriquecimento da subjetividade.
Esse nível de sublimação as pescadoras, marisqueiras quilombolas atingiram, sem dúvida, e assim elas desenvolvem seu repertório de sensibilidade frente ao manguezal, ambiente em que trabalham e que as alimenta e a sua família.
“Uma outra participante pegou a fala para dizer que era muito terapêutico pegar o barco, olhar essa paisagem maravilhosa com flores, orquídeas, as montanhas na beira, os vários tipos de vegetações... Diz: ‘Quando você está chegando num lugar onde tem um tapete de sururus, que você corta e tira, enche o saco, suspende na cabeça’. Nesse momento ela estava pensando: ‘com esse monte de sururu vou fazer uma moqueca deliciosa’ e assim se esquecia de todos os problemas.” (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe)
Para C. Dejours 25 o segundo nível, é o reconhecimento que gera a sublimação e o prazer. Em psicodinâmica do trabalho o reconhecimento é definido como a formulação de um julgamento sobre o trabalho realizado. Esses julgamentos podem estar formulados tanto pelos chefes (julgamento de utilidade), como pelos colegas (julgamento de beleza) ou clientes (gratidão) e deveriam ser direcionados ao trabalho e não à personalidade do trabalhador. O julgamento sobre o trabalho será repatriado depois pelo sujeito para consolidar sua identidade e então sua saúde mental 17.
O reconhecimento que existe nas comunidades de pescadores quilombolas constitui principalmente nos julgamentos de beleza, já que não tem hierarquia nessas comunidades, além de poucas relações com os consumidores. Em relação a esses julgamentos de beleza, C. Dejours17, 25 explicou que eles confirmam a integração num coletivo, numa equipe de trabalho e, além disso, por vezes numa comunidade a que pertenço, numa comunidade profissional. As marisqueiras não mencionaram muito esses julgamentos das formas de pescar, elas o mencionaram mais no que diz respeito às formas de cozinhar frutos do mar (exemplo o sururu). Ainda assim é óbvio que as marisqueiras cooperam, mas isso não parece passar sobretudo pela formulação de juízo sobre o trabalho realizado, mas sim por uma atenção permanente ao outro e ao ambiente em que trabalham.
O terceiro nível é qualificado de extraordinário por C. Dejours25, por sempre ter consequências éticas positivas sobre o sujeito e a sociedade inteira contrariamente aos outros que podem ser alcançados fazendo um trabalho ruim pela sociedade como nas indústrias das armas ou dos agrotóxicos. Esse terceiro registro de sublimação envolve a busca de uma forma de dominar as incidências sobre o outro externo, por meio de uma relação específica com ele, descrita por Christian du Tertre sob o nome de “coopération transverse” (Cooperação transversal) 27.
Para as comunidades quilombolas pescadoras-marisqueiras, esse outro externo, elaboramos a hipótese que é o meio-ambiente: o mangue ou a roça.
“A roça e a maré parecem pessoas no discurso das participantes como uma parceira (fantasma vitalista). Percebe-se claramente na fala de uma participante sobre a maré, o quanto refere-se a ela como salvadora. Neste momento da reflexão coletiva, a participante que tem a roça como alívio, revela que a roça também é sua parceira, tanto que a noite a roça estava trabalhando sozinha.” (Fonte: Extrato do relatório de Maragogipe)”
Segundo C. Dejours25, esse nível da sublimação permite subir dois degraus na autorrealização. O primeiro abre o acesso a uma forma de comunidade humana que La Boétie 28, no Discurso sobre a Servidão Voluntária, designa pelos termos de “amizade” e “companhia”. que diz respeito a laços de estima e confiança. Estaria próximo da camaradagem, no sentido nobre deste termo. É graças a isso que o trabalho dá acesso a uma transcendência em relação a si mesmo, a um além do trabalho vivo que constitui um meio de engajar a própria inteligência e a própria subjetividade para honrar a vida. Esta é uma dimensão de autorrealização, no plano social, que é uma admirável fonte de prazer no trabalho.
As marisqueiras constituem este tipo de comunidades humanas, esperamos tê-lo mostrado aqui, e assim contribuem para honrar a vida que nela existe e que existe dentro das outras e que se manifesta no mangue, na roça. Esta capacidade seria sua principal fonte de prazer no trabalho e saúde.
O segundo grau, ao qual a companhia dá acesso, segundo Dejours 25, diz respeito, desta vez, ao retorno a si mesmo dessa experiência: é o que La Boétie 28 designa pelo termo “franquia” (franchise em francês). A franqueza refere-se primeiro à emancipação, (l’affranchissement em francês que significaria a palavra “alforria” em português), ou seja, à liberdade. Emancipação de si mesmo, ou seja, das forças pulsionais que nos animam. Talvez seja porque essas comunidades quilombolas são herdeiras de pessoas que souberam conquistar sua liberdade da escravidão que elas tenham essa capacidade, mais do que simples mortais, de acessar juntas esse terceiro nível de sublimação, descrito por C. Dejours 25 como extraordinário.
Conclusão
No começo dessa argumentação, nos pressupostos originários do estudo foram sublinhados que a alegria manifestada pelas pescadoras marisqueiras quilombolas não constituía uma estratégia de defesa coletiva, mas era o resultado de uma sublimação. Poderia parecer uma falta de rigor científico falar nessa perspectiva, porque Freud situava a sublimação nas defesas do eu como lembrava-nos Dejours 25. Mas esta defesa é diferente das outras, na medida em que estas envolvem sempre um estreitamento do eu, quando, segundo Dejours, a sublimação pela medida do trabalho vivo resulta em um aumento do eu e da subjetividade, e no aumento do amor-próprio. E o amor-próprio é uma condição de saúde mental.
Se as LERs das pescadoras marisqueiras quilombolas apresentam evolução mais lenta e de forma menos intensa, no que diz respeito aos constrangimentos a que estão expostas seria, portanto, também graças ao prazer no trabalho que conseguem sentir através da sublimação de primeiro e terceiro níveis a que acedem. Esse acesso seria possível segundo as condições e o modo de vida do trabalho como pescadora associadas ao modo de vida quilombola, à ocasião do que elas estão produzindo esforços permanentes para manter a vida dentro de cada uma através da alegria, e honrando a vida que se manifesta em seu ambiente de trabalho, que elas descrevem como sagrado.
Para ilustrar essa ideia e finalizar com as falas das pescadoras marisqueiras quilombolas:
« A esse momento, uma participante contou que quando ela estava na Maré, pescando, ela estava satisfeita com o vento do mar, achava que estava em presença de Deus que ele se manifestava naquela natureza. Elas concordaram sobre essa ideia da manifestação de Deus através do Manguezal e do meio ambiente em geral, deixando a liberdade a cada um de adorá-lo do jeito que queria. » (Fonte: Extrato do relatório de Santo Amaro)
REFERENCIAS
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